Processo Penal pop obriga uma nova abordagem de ensino
5 de agosto de 2016, 8h00
O obstáculo inicial é conseguir estabelecer um fio condutor, adequar a comunicação para um auditório que entre em aula, muitas vezes, como uma imagem pré-concebida de que processo penal serve para gerar impunidade. Falar em direitos fundamentais nas primeiras aulas pode ser um pecado mortal, pois o aluno-no-mundo é um aluno com medo, que também sofre com a violência urbana e que confunde direitos fundamentais com tutela da impunidade. Obviamente, até pela imaturidade característica, ele somente se identifica com a vítima e nega completamente o seu eu-selvagem. Ele repete, sem qualquer consciência, o chavão popular da “tolerância zero”, ainda que pratique a tolerância zero com outro, e exija tolerância dez para ele e os seus.
Uma boa tática para iniciar as aulas de graduação é colocar no quadro uma premissa: punir é necessário; punir é civilizatório. Não faremos campanha de coitadismo ou “adote um corrupto e leve pra casa”. Sim, podemos punir. Agora observe a reação e verá olhares de espanto e de surpresa tomando conta do ambiente. Alguns finalmente olham para o professor e até ensaiam um aceno “positivo” com a cabeça. Quebrou-se o gelo e a barreira invisível que existia entre o acadêmico-idealista-alienado e o aluno-na-vida-como-ela-é. Isso é uma estratégia para facilitar o alinhamento grupal e a comunicação. Parafraseando Einstein, uma cabeça que se abre para o conhecimento, não se fecha mais. O problema é abrir essas cabeças. É claro que outros alunos, mais maduros e críticos, podem até desconfiar de que isso é mais um discurso punitivista-datenizado, mas eles verão a continuação que não é disso que se trata e, como já tem "cabeça aberta", não terão dificuldade de compreender onde se quer chegar.
Compreendido que “punir é civilizatório”, passemos para o que é mais relevante e complexo, que são as três perguntas (também feitas por Ferrajoli, que é melhor nem mencionar, porque é um `herege’…): quem punir? O quê punir? Como punir?
Pronto, está aberta a janela da complexidade do Direito Penal, da criminologia e do processo penal. Estão criadas as condições de possibilidade da comunicação. A partir daqui é mais fácil o aluno compreender que podemos e devemos punir, mas dentro das regras do jogo, dentro do devido processo. Que o processo é um caminho necessário (principio da necessidade — Gomez Orbaneja) para chegar na pena ou na não pena e que, para legitimar isso, é crucial respeitar as regras do devido processo, do due process of law, as regras do jogo. Que essas garantias são para ‘eles’, os maus, mas também para o “cidadão de bem”.
Temos insistido de que o Processo Penal como garantia do sujeito (nós, você e os acusados do momento) em face do Estado sofre o ataque de modelos autoritários que pensam o processo penal na junção do que há de conveniente. De um lado a mentalidade autoritária[1] acoplada ao modelo pragmático de adjudicação de sentido, importando da filosofia pragmática anglo-saxã. O mix teórico em que vivemos atualmente impede o ensino de um modelo de Processo Penal[2]. São tantas as perspectivas e abordagens que sequer temos coragem de afirmar a autonomia do campo antes ocupado pelo regime do Processo Penal.
Mais do que isso, estamos assistindo — parafraseando Morin e Prigogine — um “processo penal em busca de valores”, em profunda crise identitária. Parece que cada juiz/tribunal tem o “seu” Código de Processo Penal; que a cada operação policial em que o processo penal é “lavado a jato”, surgem novos limites na elasticidade conceitual e na (extrema) flexibilização de direitos e garantias fundamentais.
Por isso reafirmamos que a escolha democrática da punição merece um Processo Penal de qualidade. O nosso desafio é refinar a abordagem, apontar os paradoxos e demonstrar que do jeito que a coisa está sendo decidida nos tribunais, talvez seja vintage o nosso modo de ensinar, ou seja, de pensar o Processo Penal como limitação do Poder Punitivo[3].
Quem sabe seja necessário adentrar ao campo do processo penal negociado, de seus pressupostos diferenciados para que, então, possamos nos aperceber que o modo de produção de verdades anteriormente existente, a saber: (a) apuração preliminar; (b) acusação; (c) produção probatória; (d) argumentação das partes/jogadores; e (e) decisão fundamentada, tenha se transformado em acordo de vontades sobre o objeto da conduta e a pena aplicada. É o império do pacta sunt servanda, sem sequer adaptar-se aos limites democráticos do contrato.
O perigo de não nos darmos conta do que se passa e das perplexidades decorrentes é o de assumirmos o novo modelo no piloto automático, “como se” as novidades não fossem, no fundo, o nascedouro de um novo/velho modo de pensar. A ideia da coluna Limite Penal nos últimos anos foi a de apontar a responsabilidade de assumir o por quê e desafiar você a refletir.
Dentre os diversos desafios do semestre é o de demonstrar que não podemos compreender o novo Código de Processo Civil como sendo o novo Processo Penal. Por mais que tenhamos impactos do novo CPC no Processo Penal, alguns têm feito uma confusão assustadora. Claro que o novo CPC pode ser aplicado analogicamente, nos termos do artigo 3o, do CPP, mas somente quando houver omissão. Pensar o contrário é confundir os registros — Civil e Penal — com os riscos daí inerentes.
Por isso sublinhamos a importância do reconhecimento de distinções marcantes, especialmente sobre o objeto do Processo Penal, para que tudo não vire negociação irrestrita de Direitos Disponíveis. Marcamos, assim, ampla necessidade de revisão das açodadas práticas que começam a aparecer na lógica processual civil. E bons estudos.
[1]MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[2]MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[3]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
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