Opinião

Sanção para quem mente em delação premiada precisa ser revista

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4 de agosto de 2016, 9h31

A colaboração ou delação premiada é uma técnica relacionada à investigação criminal, trata-se de um meio de obtenção de prova na condução de procedimentos criminais que vem sendo aplicado na persecução penal de crimes econômicos.

Embora a lei utilize a expressão colaboração premiada, cuida-se, na verdade, da delação premiada. O instituto, tal como disposto em lei, não se destina a qualquer espécie de cooperação de investigado ou acusado, mas aquela na qual se descobre dados desconhecidos quanto à autoria ou materialidade da infração penal. Por isso, trata-se de autentica delação, no perfeito sentido de acusar ou denunciar alguém.

O tema está na ordem do dia, sendo diariamente mencionadas as colaborações efetivadas no seio da operação "lava jato", principalmente, embora o instituto tenha sido utilizado em diversos procedimentos.

Na prática forense a delação ou colaboração premiada tem amparo principalmente na legislação que dispõe sobre o crime organizado. No entanto, outras normas tratam sobre o assunto como a Lei Drogas e a Lei de Lavagem de Dinheiro, bem como a Lei de Defesa da Concorrência e a Lei Anticorrupção, as quais discorrem sobre o acordo de leniência, instituto semelhante ao acordo de colaboração, mas destinado às pessoas jurídicas.

Pois bem. A Lei 12.850/2013 estabelece que a formalização do acordo de colaboração ocorrerá entre o delegado de polícia e o investigado e seu defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou entre Ministério Público e investigado ou acusado e seu defensor. Posteriormente, o acordo de colaboração deve ser remetido ao juiz que o homologará apenas se verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade.

Ocorre que, apesar de a voluntariedade ser exigência legal, a possibilidade de mascarar uma coação com a maquiagem de uma opção voluntária do acusado é evidente. A prisão e a subsequente sugestão de colaborar é uma prática que se alinha à tortura psicológica, sendo, contudo, uma técnica declarada do Ministério Público[1].

É bom lembrar que o texto constitucional consagrou direito ao silêncio, o direito de não se auto-incriminar, decorrência do previsto no artigo 5°, LXIII, da Constituição Federal, e do princípio do nemo tenetur se detegere.

O direito ao silêncio do investigado ou acusado jamais deve ser confrontado pelo uso da força, coerção ou intimidação. Não há ressalva deste direito no ordenamento jurídico que preveja a utilização da ameaça de prisão para relativizar este direito. Aliás, este proceder não é amena questão moral — é tortura.

Devemos ressaltar que o acusado, ainda que tenha cometido o crime pelo qual é investigado, tem a seu dispor garantias processuais para se defender do não raro excessivo poder punitivo do Estado e, sendo o caso, deverá responder apenas na justa medida das transgressões que cometeu.

A prática de delação, no entanto, subverte esse caminho natural, beneficia um transgressor com penas menores, ao mesmo tempo que retira de sua defesa todas as garantias processuais. Pior, contudo, é o efeito da delação sobre as garantias processuais e materiais dos demais acusados, posto que a prática demonstra que a delação não vem sendo utilizada como meio de obtenção de prova, mas sim como legítima fonte de prova, sendo a palavra do delator considerada como verdade mesmo quando este não apresente outros indícios ou elementos probatórios — e, ainda mais preocupante, mesmo em face de elementos apresentados pelas defesas que contrariem ou mesmo desmintam as colaborações.

O que se vê é que, pela própria constituição do acordo de colaboração, ouvir o delator nesta condição gera um impasse, um conflito de interesses. Enquanto o Ministério Público pretende, com a colaboração, provar a acusação, a defesa quer provar suas teses defensivas e até expor fragilidades nas declarações do acusado delator, e por sua vez o delator, tem interesse particular em seus depoimentos — ele deve provar que foi útil à investigação, terá que demonstrar que seu depoimento abordou tópicos pelos quais se obrigou em seu acordo e, mais importante, terá de ter tratado de temas e acusados que tenham grande interesse à investigação.

Confrontado com as diversas pressões que advém de responder a um processo criminal, e sobretudo sujeito à prisão, é compreensível o acusado se sinta seduzido (ou pressionado) a fornecer ao processo qualquer informação para auxiliar na investigação com o propósito de se beneficiar do acordo — e de sua imediata libertação[2].

Assim, a assunção de colaboração premiada pelo acusado, com a finalidade se ver livre da prisão e até manter fração do proveito que obteve com o crime, pode valer o risco de criar informações — mentir — para obter os benefícios oferecidos pelo delegado de polícia ou pelo ministério público.

A tomada de decisão por transgredir passa por um cálculo utilitarista: enfrentar mais uma acusação, mais um processo, correr o risco de ser preso e de perder seus proventos, ou, por outro lado, a benesse, valiosíssima, de obter uma quase impunidade. Fatalmente, é de se ponderar que diante do dilema pontuado pela assunção do risco de falsear informações para assumir a posição de colaborador muitos acusados correrão o risco, sobretudo ao se verificar a primazia que se dá à palavra do delator.

A Lei 12.850/2013 prevê que o colaborador que apresenta informações falsas, incorre no artigo 19 da referida legislação. Será, portanto processado criminalmente por “imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas”, delito cuja sanção corresponde ao limite de um a quatro anos de reclusão e multa.

Além disso, a inverdade proferida pelo delator culmina na perda de efetividade do acordo de colaboração. Se o processo continuar em curso, tornar-se-á um réu sem qualquer particularidade, e caso o processo estiver suspenso, este voltará a tramitar. Além disto, tudo o que declarou será conservado e poderá ser amplamente utilizado contra si, e bens entregues, e valores cujo prestação foram condição para efetivação do acordo de colaboração, evidentemente, não serão revistos pelo delator.

Ocorre que o acusado que pretende ludibriar o Judiciário almejando obter benefícios pode não necessariamente empregar uma categórica inverdade como ardil para alcançar seu objetivo. Poderá empregar meias verdades, obscurecer fatos, lançar dúvidas sobre situações e posteriormente alegar que se empenhou em colaborar, de forma que o dispositivo criminal inserido na Lei 12.850/2013 pode ser contornado, facilitando por demais a prática de imputação falsa em delação premiada.

A gravidade do que se constata reside na inobservância à proporcionalidade da pena da imputação falsa pelo colaborador em comparação a tipos penais que delimitam sanções mais graves a comportamentos semelhantes — como a denunciação caluniosa e o falso testemunho —, bem como na subversão do sistema penal de garantias, que em um primeiro momento coloca a inverdade do delator, apenas pela condição esposada por este, como prova contundente contra os demais indivíduos, bem como, caso descoberta a mentira, retira da Defesa todas as garantias. De fato, o colaborador faltoso não apenas frustra o Estado, danificando uma justa persecução penal, como implica, com suas mentiras, pessoas que se tornam alvos da ludibriada acusação, destruindo com isso reputações e vidas, em busca do tão almejado benefício.

Não se desconhece que, como bem apontado por Gustavo Badaró, a norma prevê, indiretamente, uma regra de corroboração, ou seja, exige que o conteúdo da colaboração seja confirmado por outros elementos de prova, sendo a presença e o potencial corroborativo desse outro elemento probatório a conditio sine qua non para o emprego da delação premiada para fins condenatórios.[3]

Contudo, o que se verifica é a flexibilização desta condição necessária, de forma que em muitos casos a palavra do delator é a única fonte, soberana. Assim, com o potencial de delações com pontos inverídicos — ou até mesmo completamente fabricadas —, percebe-se o risco às garantias constitucionais, principalmente a presunção de inocência.

Nem se diga que a preocupação ora externada encontra-se dissociada do dia-a-dia forense. Ao menos um delator já foi exposto como tendo supostamente fabricado partes de sua delação, como é o caso de Fernando Moura[4], que colaborou com o Ministério Público Federal em procedimento pertencente à operação "lava jato" e, posteriormente, teve anulados os benefícios que obtivera com a delação.

Assim, pelo exposto, percebe-se que é imperativo que se passe a adotar com firmeza a necessidade da regra de corroboração como condição para a validade da colaboração premiada, de forma que se evite não apenas a desmoralização da Justiça, como também a operacionalização de injustiças guiadas pelo desejo dos delatores de se beneficiarem em detrimento de terceiros, culpados ou não. O respeito a tal lógica é premissa para o defendente em acusação alavancada por delator, mas é igualmente salutar ao envolvido que almeje obter benefícios por meio do instituto da delação premiada.


1 http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes

3 BADARÓ, Gustavo. O Valor Probatório Da Delação Premiada: sobre o § 16 do art. 4º da Lei nº 12.850/13, Consulex, n. 443, fevereiro 2015, p. 26-29. Disponível em: http://badaroadvogados.com.br/o-valor-probatorio-da-delacao-premiada-sobre-o-16-do-art-4-da-lei-n-12850-13.html. Acessado em: 31.7.2016.

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