Opinião

Relatório influencia na agilidade e qualidade dos julgamentos

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4 de agosto de 2016, 6h02

Tribunais, como todos sabem, são órgãos que funcionam em sistema colegiado. Para o adequado funcionamento desse sistema, impõe-se que, em cada processo, incidente ou recurso que se instaure perante um tribunal seja designado um dos integrantes do colegiado para exercer a função de relator. A este magistrado caberá estudar o processo, incidente ou recurso com profundidade, apresentando aos demais integrantes do órgão julgador um resumo da causa: o relatório.[1] Pois será com base neste resumo que os demais integrantes do colegiado proferirão seus votos (sempre ressalvada, evidentemente, a possibilidade de algum integrante do órgão colegiado não se sentir em condições de proferir desde logo seu voto, caso em que poderá pedir vista dos autos na forma do artigo 940).

O objetivo deste breve trabalho é examinar o relatório que se elabora quando uma causa está pendente perante um tribunal, buscando determinar suas finalidades.

Vale lembrar, de início, que o único dispositivo do CPC que versa sobre o conteúdo do relatório é o artigo 489, que o inclui entre os elementos essenciais da sentença, determinando que ali se contenha “os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo”. É preciso recordar, porém, que o artigo 489 foi redigido tendo-se em conta o relatório das sentenças proferidas pelos juízos de primeira instância. E isto implica reconhecer uma diferença fundamental: é que na primeira instância o relatório é, como a própria dicção do artigo 489 indica, um dos elementos formadores da própria sentença, ou seja, o relatório integra o “corpo” da sentença. Já nos tribunais não é assim: o relatório é elaborado e lançado nos autos antes do início da sessão de julgamento, e não integra o “corpo” do acórdão. É o que se verifica pela leitura do artigo 931, por força do qual uma vez “distribuídos, os autos serão imediatamente conclusos ao relator, que, em 30 dias, depois de elaborar o voto, restituí-los-á, com relatório, à secretaria”.

Fácil perceber, então, que o relatório fica disponível nos autos antes da inclusão da causa em pauta (ou, excepcionalmente, em mesa) para julgamento. E isto permite que as partes e os demais integrantes do colegiado, ainda antes da sessão de julgamento, tenham acesso ao seu teor. Por conta disso é até mesmo possível que qualquer das partes ou algum integrante do órgão colegiado solicite ao relator esclarecimentos ou ajustes no relatório.

Consequência disto é a necessidade de se interpretar o artigo 937 (que descreve a dinâmica das sessões de julgamento nos tribunais) levando-se em consideração o fato de que, por força do artigo 931, o relatório já estará lançado nos autos e acessível a todos os interessados. É que, por força do artigo 937, os advogados das partes e o Ministério Público terão a palavra para suas sustentações orais após a “exposição da causa pelo relator”. Ora, se essa “exposição da causa” nada mais é do que a apresentação do relatório, e se o relatório já está disponível para consulta antes da sessão, pode-se considerar perfeitamente possível a dispensa da leitura do relatório.

Esta, aliás, é prática frequente nas sessões de julgamento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: o presidente do colegiado, tendo em vista o fato de o relatório já estar disponível com antecedência nos autos, pergunta aos advogados e aos integrantes da turma julgadora se dispensam a leitura do relatório e, caso todos concordem, já se passa diretamente à fase seguinte, com as sustentações orais (ou, quando não houver sustentação a ser feita, com a prolação do voto do relator). Tal prática produz um enorme ganho de tempo. Basta pensar em uma sessão de julgamento em que haja quarenta processos na pauta, e que a leitura do relatório dure em média cinco minutos. Já se terá, aí, uma diminuição do tempo total de duração de mais de três horas, sem que haja com isso qualquer supressão de garantias. A leitura do relatório seria absolutamente inútil quando todos já conhecem seu teor, mera formalidade despida de qualquer utilidade prática. Evidentemente, isto não poderia acontecer se o relatório não fosse disponibilizado com antecedência, na forma do que dispõe o artigo 931 (que passa, com esta interpretação, a ser dispositivo de grande importância no trato da dinâmica do funcionamento dos tribunais).

Há, porém, outro ponto a considerar, e que diz respeito ao próprio teor do relatório: nele deve haver a indicação de todos os argumentos que precisarão ser enfrentados no julgamento colegiado, a fim de orientar a atuação dos demais integrantes da turma julgadora.[2] O que se pretende, aqui, é afirmar que em alguma medida o relatório exerce, nos tribunais, função análoga à que, no procedimento comum, incumbe à decisão de saneamento e organização do processo, com a delimitação das questões de fato e de direito que terão de ser enfrentadas no julgamento colegiado, de modo a viabilizar que todas elas sejam objeto de instrução e julgamento.

Caso o relatório indique, com precisão, quais são as questões de fato e de direito a serem enfrentadas no julgamento, isto não só permitirá aos interessados que solicitem esclarecimentos ou ajustes, como já mencionado (sendo possível afirmar a aplicação a este ponto, por conta da inegável analogia, do disposto no artigo 357, § 1º, que permite seja formulada solicitação de esclarecimentos e ajustes com referência à decisão de saneamento e organização do processo), como tornará possível que os advogados, em suas sustentações orais, limitem-se a abordar pontos que já tenham sido expressamente indicados como sendo relevantes.

Além disso, a elaboração de um relatório que delimite as questões que, ao ver do relator, serão relevantes para o julgamento da causa pendente perante o tribunal permitirá que todos os integrantes da turma julgadora se pronunciem sobre todas essas questões. Isto é capaz de evitar fenômeno que na prática se revela muito comum: o da prolação de julgamentos colegiados em que não há qualquer “diálogo” entre os votos, mais parecendo que cada integrante da turma julgadora profere uma espécie de “decisão monocrática” acerca da causa, de modo que ao final comparam-se as conclusões de cada pronunciamento se proclama o resultado simplesmente “somando-se” as conclusões. Em outros termos, seria possível passar-se do modelo seriatim de deliberação, em que são proferidos votos de maneira autônoma, comparando-se ao final as conclusões de cada um,[3] para um modelo de deliberação per curiam, em que se elabora um acórdão que aponta as conclusões do colegiado sobre cada uma das questões enfrentadas e resolvidas no julgamento.[4]

Esta função do relatório já foi reconhecida pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, cujo enunciado 522 assim dispõe: “O relatório nos julgamentos colegiados tem função preparatória e deverá indicar as questões de fato e de direito relevantes para o julgamento e já submetidas ao contraditório”. É possível, pois, a partir do conteúdo deste enunciado e do quanto aqui foi dito, estabelecer-se uma espécie de “roteiro” a ser seguido quando da elaboração do relatório.

Evidentemente, nele deverá encontrar-se uma síntese dos acontecimentos do processo que sejam relevantes para o julgamento do processo, incidente ou recurso pendente de apreciação. Importante, aqui, ter em conta o fato de que nem sempre haverá necessidade de se fazer uma síntese de todos os acontecimentos relevantes do processo. Assim, por exemplo, no relatório preparatório do julgamento de um conflito de competência só se terá de fazer referência aos acontecimentos relevantes para a resolução da questão da competência, e nada mais. Caso se trate, porém, de um processo de competência originária do tribunal (como o processo da ação rescisória), o relatório precisará apresentar, de forma sintética, todos os acontecimentos relevantes do processo.

É fundamental, porém, que o relatório indique todas as questões suscitadas pelo demandante ou recorrente e que sejam relevantes para o julgamento da causa. Em seguida, impende sejam indicadas todas as questões suscitadas pelo demandado ou recorrido. E, por fim, devem ser indicadas com precisão as questões suscitadas de ofício pelo relator e que tenham, na forma do disposto no caput do artigo 933, submetidas ao contraditório.

Isto assegurará que, no momento de apresentar suas sustentações orais, as partes (por seus advogados) e o Ministério Público limitem-se a tratar das questões verdadeiramente relevantes para o deslinde da causa. E permitirá, também, aos integrantes do colegiado, que se manifestem sobre todas as questões que precisam ser resolvidas para que se possa julgar a causa pendente perante o tribunal, sem que nada passe despercebido (e, pois, evitando-se omissões que gerarão embargos de declaração que, afinal, poderiam ser evitados). Será também possível que algum outro magistrado integrante da turma julgadora identifique questões relevantes e cognoscíveis de ofício que ainda não tenham sido submetidas ao debate das partes, o que levará à incidência do disposto no artigo 933, § 1º.[5]

Como se vê, pois, o relatório tem, nos tribunais, funções da maior importância, contribuindo não só para a agilidade das sessões de julgamento, mas também para a melhora qualitativa dos pronunciamentos jurisdicionais.

1 O relator, nos órgãos colegiados, é também o primeiro a votar. Além disso, o CPC atribui ao relator uma série de funções e poderes, os principais deles enumerados no art. 932.

2 Abordei o ponto anteriormente, ainda que de passagem, em CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo CPC e os julgamentos colegiados. In: http://www.justificando.com/2015/07/08/o-novo-cpc-e-os-julgamentos-colegiados/, acesso em 31/07/2016.

3 Como explica André Rufino do Vale, “o modelo de decisão seriatim se caracteriza pela produção de um agregado das posições individuais de cada membro do colegiado, cujos votos são expostos ‘em série’ em um texto composto – aí está o significado do termo em latim seriatim” (VALE, André Rufino do. É preciso repensar a deliberação no Supremo Tribunal Federal. In: http://www.conjur.com.br/2014-fev-01/observatorio-constitucional-preciso-repensar-deliberacao-stf, acesso em 31/07/2016.

4 No julgamento per curiam, o órgão colegiado apresenta apenas um opinião, que é o entendimento do tribunal. Este é apresentado como um entendimento institucional, e não pessoal. Sobre o ponto, JACOBSON, Arthur J. Publishing dissent. In: Washington and Lee Law Review, vol. 62, n. 4, 2005, pág. 1.609. Vale registrar que os tribunais ingleses decidem per curiam desde aproximadamente 1760 (HENDERSON, M. Todd. From seriatim to consensus and back again: a theory of dissent. In: http://www.law.uchicago.edu/files/files/363.pdf, pág. 4, acesso em 31/07/2016).

5 E, neste caso, suscitada a questão durante a sessão de julgamento, deverá este (o julgamento) ser suspenso para que os advogados possam manifestar-se imediatamente sobre a matéria. Não tenho dúvida de que a palavra deve ser dada aos advogados imediatamente e, caso não estejam presentes ou, ali estando, não queiram fazer uso da palavra, haverá preclusão da possibilidade de manifestar-se. Isto, porém, não impede a celebração de negócio processual que disponha sobre este procedimento, estabelecendo que se fixará prazo maior para que as partes se manifestem, negócio este que pode ser celebrado até mesmo durante a sessão de julgamento.

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  • Brave

    é desembargador do TJ-RJ, presidente do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Internacional de Direito Processual. Doutorando em Direito Processual pela PUC Minas.

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