Constituição segundo decreto

Foi por saudade da ditadura que a juíza proibiu reunião de alunos da UFMG?

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30 de abril de 2016, 18h50

Quarta-feira, 29 de abril, vai ficar na história da Faculdade de Direito das Minas Geraes. Foi o dia em que a juíza Moema Gonçalves repristinou os decretos 477, 228 e o próprio AI-5. Incrível como o autoritarismo está no nosso sangue estamental. Temos de censurar. Proibir. Impedir que ideias “perigosas” venham a lume. Perigosas para quem? E quem é o Judiciário para fazer a censura das reuniões de estudantes?

Explico: no dia 27 de abril o Centro Acadêmico Afonso Pena, da Faculdade de Direito da UFMG, lançou uma convocatória de Assembleia Geral Extraordinária (AGE) com o objetivo de discutir o momento político vivenciado pelo país. A pauta de convocação da Assembleia elencava os seguintes pontos para discussão e deliberação: 1. Posicionamento político das alunas e dos alunos do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais perante o processo de Impeachment da Presidente da República; 2. Possíveis desdobramentos e medidas a serem tomadas;

Foram fixadas convocatórias em todos os andares da Faculdade de Direito, dando-se a ampla publicidade exigida pelo estatuto (Artigo12 parágrafo 2º do Estatuto do Centro Acadêmico Afonso Pena). Além disso, o edital foi amplamente divulgado pela internet, e representantes do centro acadêmico passaram em sala de aula de modo a se divulgar a reunião e convidar todos os alunos a dela tomarem parte.

Pois no dia 29 chegou um oficial de justiça, comunicando que houvera sido decidido por uma juíza de direito que a reunião estava proibida. Inacreditável. Alguém judicializou “a coisa” por intermédio de uma "ação de obrigação de não fazer" em sede de tutela de urgência, visando a determinar a nulidade da convocatória, a não-realização de quaisquer AGEs sobre o processo de impeachment da presidenta da república, e vetando eventual deflagração de "movimento grevista". Interessante é o nome da ação: obrigação de não fazer. Isso. Não fazer democracia; não protestar; não se reunir; não cumprir a Constituição e todos os nãos possíveis e imagináveis.

A decisão foi mais fundo do que se imagina: proibiu, inclusive, a convocação de qualquer nova assembleia versando sobre o mesmo assunto, ainda que dentro das formalidades estatutárias. A decisão baseava-se em: alegações de aparelhamento do Centro Acadêmico; ligação com partidos políticos; conivência com a presença de moradores de rua no prédio da faculdade e uma suposta convocação de movimento grevista, dentre outras. Só uma pergunta: qual seria o conceito de aparelhamento? Isso quer dizer o que? Alguém dirá: ora, é obvio; isso é coisa de esquerdista. Pois é. Mas em se tratando de uma decisão judicial, há que se tomar cuidado para não politizar justamente aquilo que se quer combater. A propósito: Eduardo Cunha manipulou o regimento interno da Câmara; presidiu o impeachment na Câmara mesmo sendo réu; seu pedido de afastamento está no STF há meses. E o judiciário quer impedir que meninos e meninas digam o que pensam sobre o impeachment? Por liminar?

Ora, leiamos a Constituição. Os preceitos da nossa Constituição, nomeadamente os arts. 3 e 5, IV e XVI, como, igualmente, ao art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e art. 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Brademos a todos os brasileiros e ao mundo: existe uma Constituição que garante direitos de liberdade de expressão e de reunião.  Pensemos: milhares de pessoas, nas redes sociais e até nos jornais, defendem a “liberdade” de Bolsonaro homenagear um torturador. Mas não defendem o direito de alunos de uma Faculdade se reunirem para falar sobre o impeachment? Em uma Faculdade de Direito? Enlouquecemos todos?

Antes que alguém diga que a juíza se houve bem porque “interpretou” o estatuto do Centro Acadêmico, digo apenas: minha Faculdade em que estudei não era tão como a UFMG, mas ali aprendi que as leis (e os estatutos e regimentos internos) se interpretam de acordo com a Constituição e não como fez a juíza: ela fez uma coisa que poderíamos chamar, ame alemão, de Verfassung der Auslegung in Übereinstimmung mit den Statuten von Studenten. Claro que inventei isso agora. Mas a juíza também não foi, digamos assim, criativa?

De todo modo, vamos jogar o jogo da juíza. Por exemplo,  ao estabelecer em seu art. 2º, as competências do Centro Acadêmico, o estatuto social é cristalino:

Art. 2º – São competências do CAAP:

(…)

d) Participar de movimentos estudantis ou sociais e apoiá-los, desde que estejam fundados em princípios democráticos e objetivem valorizar o bem estar da comunidade ou defender os interesses e a soberania nacionais;

Essa decisão mais vale pelo seu aspecto simbólico. Pode ser o ovo da serpente de algo que está sendo gestado no meio e por intermédio do direito. Parcela dos juristas brasileiros é coautora de tudo isso que está aí. Quando juristas aplaudem o uso de prova ilícita, quando cientistas políticos falam de direito e os juristas falam de política – sim, é bem isso – , é porque algo está errado. O direito foi carcomido pela moral e pela política. Pior: de forma canibal. Os próprios juristas (lato sensu) canibalizam o seu próprio produto. Devoram a própria Constituição.

Há uma figura que mostra bem o estado da arte da crise do direito de Pindorama: é o animal chamado ascidia, um canibal por excelência. É um animal marinho. Quando ele encontra um lugar bem confortável, ali se instala. E começa a devorar suas próprias energias. Quando não há mais o que comer, a ascídia devora o próprio cérebro. Uma espécie de canibalismo autopoiético. Pois parece que é isso que está acontecendo. Folgamos com a democracia. Em vez de fazermos reflexões profundas sobre o direito, preferimos o caminho da instrumentalização do direito.

Vamos mal. Muito mal. O que fizemos com o direito? Deixamos que os manuais e livros simplificados destruíssem o seu próprio objeto. E formamos gente autoritária. Que se multiplica dia a dia. Hoje temos milhares de mestres e doutores em direito. Que até sabem muito. Mas ficamos mais autoritários. Fragilizamos o nosso próprio material de trabalho. Tornamo-nos intolerantes. Com certeza, pagaremos caro por isso.

Minha solidariedade aos alunos da Faculdade de Direito das Minas Geraes. O valente Estado de Minas não merecia uma decisão destas.

Post scriptum: para quem não sabe,

O Centro Acadêmico foi fundado em 1908, sendo a mais antiga entidade estudantil de Minas Gerais, tendo desde então atuado fortemente em movimentos políticos na defesa dos interesses estudantis, democracia e justiça. Em 1937, por exemplo, lutou contra a supressão dos direitos e garantias individuais pela Carta Autoritária de 37, trazendo importantes nomes em debates sobre Democracia, como Afonso Arinos, Pedro Aleixo e Virgílio de Melo Franco. Organizou também mobilização em solidariedade às nações democráticas que participavam da II Guerra Mundial. Inúmeros foram os movimentos e campanhas em que esteve envolvido, com destaque para a "Petróleo é Nosso", que rendeu inclusive uma Torre de Petróleo na Praça Afonso Arinos em 1958, na comemoração do cinquentenário do centro acadêmico.

Outro capítulo de destaque da história do CAAP se deu em tempos da ditadura militar. Com o golpe de 64, a Polícia do Exército invadiu a sede e roubou os arquivos do CAAP. Vários de seus membros foram perseguidos e mortos, dentre eles, José Carlos Novaes da Mata Machado, que dá nome ao pátio do terceiro andar, ex-presidente do CAAP torturado pelo DOI-CODI e morto em 1973. Foi nesse pátio do terceiro andar, Território Livre José Carlos da Mata Machado, que ocorreu conhecido protesto de estudantes de Direito contra a ditadura militar, protesto que durou cerca de três dias. A Faculdade de Direito, cercada por militares enquanto estudantes gritavam e estendiam frases contra a ditadura nas fachadas do Território Livre, assistiu ao impedimento de acesso dos policiais pelo reitor da UFMG e Diretor da Faculdade de Direito à época em nome da liberdade de expressão e resistência dos estudantes.

Já em 79, em tempos de Campanha pela Anistia, o CAAP capitaneou o I Encontro Nacional dos Estudantes de Direito (ENED), e trouxe à discussão a volta da Democracia e o fortalecimento da luta pelo que chamavam de "anistia ampla, geral e irrestrita". Na década de 80, o CAAP foi um dos coordenadores das "Diretas Já" em Minas Gerais e acompanhou a Assembleia Nacional Constituinte em 86. Em 90, serviu de centro das reuniões e articulações do Movimento Estudantil do estado durante o Impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello. Mais recentemente, no ano de 2013, o CAAP teve destaque em várias pautas, como o envolvimento nas manifestações de Junho de 2013 que ocorreram em Belo Horizonte.

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