Academia de Polícia

Novo CPC é garantia de acesso a
uma ordem jurídica penal justa

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

26 de abril de 2016, 11h16

Spacca
Estamos em pleno século XXI, mas será que a mentalidade e as práticas daqueles que atuam no sistema de justiça criminal são deste século? Como alertou Cançado Trindade ao criticar a resistência do poder judiciário em avançar na jurisprudência comparada: "O problema não é de direito, mas sim de vontade, e para resolvê-lo, requer-se sobretudo uma nova mentalidade"[1]. Em outras palavras, não adianta alterar o corpo e permanecer com a mente no passado.

As alterações trazidas pelo novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) introduzem no ordenamento mecanismos processuais que deverão refletir no processo penal, inclusive na investigação criminal, por traduzir o amadurecimento político e democrático do acesso a uma ordem jurídica justa. Em particular, ordem jurídica justa penal.

A novatio legis materializa o devido processo legal em seu aspecto formal e substancial, tendo em vista que sua concepção eminentemente dialética se aplica no âmbito da autoridade administrativa, como no escólio de Adriano Moura da Fonseca Pinto et al, ao lecionarem sobre a Teoria Geral do Processo, na obra Curso do Novo Processo Civil[2]: "A observância do contraditório nessa dimensão está vinculada ao próprio respeito à dignidade da pessoa humana e, axiologicamente, aos ditames da democracia, que adquire melhor expressão e referencial, no âmbito processual” E prossegue o festejado autor, citando o RMS 28.517 AgR/DF, em 25 de março de 2014, voto do ministro Celso de Mello, na qual decidiu que[3]:

à cláusula constitucional do 'due process of law' a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova, que, por compor o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, deve ter seu exercício plenamente respeitado pelas autoridades e agentes administrativos, que não podem impedir que o administrado produza os elementos de informação por ele considerado imprescindíveis e que estejam eventualmente capazes, até mesmo, de infirmar pretensão punitiva da Pública Administração."

Hodiernamente, a investigação criminal deve ser vista como filtro a acusações infundadas. Deve exercer a função de um dispositivo[4] republicano, um poder para contenção de outro poder, no sistema processual, pois este, na visão de Rui Cunha Martins[5]:

"é o microcosmo do Estado de Direito, (….) não é apenas o instrumento de composição do litígio, mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade, afigurando-se para tanto imprescindível a coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminho da Constituição."

Abrimos um parêntese para afirmar que, não obstante o novo Código de Processo Civil se ater à composição de conflitos no âmbito civil, axiologicamente converge ao mesmo ponto mencionado por Rui Cunha Martins, conforme se depreende nos ensinamentos de Fredie Didier Jr[6] ao explicar o devido processo legal, asseverando que o "Processo é método de exercício de poder normativo."

A democraticidade nos contornos de Rui Cunha Martins é capaz, inclusive, de emancipar o procedimento da investigação criminal em verdadeira categoria autônoma, incidindo nela, características de judicialidade, face à necessidade premente de se estabelecer nesta fase (pré-processual) contornos de aplicação da lei ao caso concreto, ainda que a título provisório, como o direito à liberdade, seja por atipicidade ou como contracautela, dimensão de uma verdadeira garantia a uma ordem jurídica justa, posto que necessariamente democrática.

 A democraticidade deve ser o elemento axiológico e principiológico de uma teoria geral do processo ou de uma teoria geral do processo penal e garantir o acesso à justiça na porta de entrada do sistema de justiça criminal, ou seja, na investigação criminal, haja vista a necessária incidência dos mecanismos de incidentes de uniformização, que passam a ser fonte de diálogo entre as normas.

As fontes normativas atualmente possuem diversos níveis, que vão de atos abaixo das leis, como a resolução 1805/06 que trata da ortotanásia e impede que esta prática seja considerada crime de homicídio, além das leis, dos tratados internacionais de direitos humanos, a constituição e os tratados de direitos humanos aprovados como emenda constitucional, a jurisprudência constitucionalizante, como o aborto de anencéfalo, permitido através de jurisprudência, na forma da ADPF 54, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como por exemplo a estipulação da súmula vinculante 25 que aplica o artigo 7, item 7 da Convenção Americana de Direitos Humanos, invalidando o artigo 5º, LXVII da CR/88.

O delegado de polícia é notadamente aquele que primeiro avalia o caso concreto e, por isso, é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal em 2012[7], norteando-se com o cariz de órgão imparcial na investigação criminal, pois totalmente desprovido de pretensão acusatória ou defensiva.

O novo CPC lança luz à hermenêutica da teoria geral porque deixa imanente a adoção de um sistema nitidamente anglo-saxão, originário da common law, que prestigia os precedentes jurisprudenciais lhes conferindo densidade normativa e verniz diretivo na consolidação da segurança jurídica diante da diminuição dos conflitos de teses jurídicas, uniformizando-as.

Neste sentido, leciona Didier[8] que precedente judicial "é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos." Ao nosso ver, um mecanismo de freio ao ativismo judicial.

Neste condão, os tribunais ao fixarem as teses nas suas decisões para os casos repetitivos, prossegue Didier ao se referir à “holding” norte-americana é preciso investigar a ratio decidenci dos julgados anteriores, encontrável em sua fundamentação[9].

Na tradição da civil law estes precedentes não possuem eficácia vinculativa, sendo possível decisões monocráticas em razão da autonomia funcional dos julgadores, no entanto, quando adotamos como regra, no ordenamento atual, da eficácia vinculante dos precedentes, como enumerado no art. 927 do NCPC, como por exemplo à vinculação da tese resultado do incidente de resolução de demandas repetitivas, conforme artigo 985, I e II do novo CPC, em razão do risco à segurança jurídica, conforme art. 976, II do novo CPC, estamos diante da adoção de tradição nitidamente do common law.

Diante deste viés consagradamente de conectividade democrática, conforme já dispusemos, verifica Didier que "trata-se de regra que deve ser interpretada extensivamente para concluir-se que é omissa a decisão que se furte em considerar qualquer dos precedentes obrigatórios nos termos do artigo 927 do CPC."[10]

Em outras palavras, na omissão do Código de Processo Penal de adotar um procedimento de uniformização de jurisprudência, torna-se forçoso concluir a sua aplicação deste mecanismo por ser a segurança jurídica imanente ao sistema de justiça criminal, corolário lógico do devido processo legal substancial, razão maior do que a simples ilação sobre integração da norma processual penal pela analogia (artigo 3º do CPP). A mesma segurança jurídica que se busca nas relações civis, por mais razão ainda devem ser buscadas nas relações que tutelam o direito de liberdade, intimamente relacionados ao status dignitatis do investigado ou réu.

Neste espeque, não nos restam dúvidas de que no processo penal os precedentes jurisprudenciais de eficácia vinculativa servirão de bússola norteadora de acesso a ordem jurídica justa, principalmente se entendermos que pela mesma razão principiológica da segurança jurídica, consagrada na constituição, fundamento do dever dos tribunais de uniformizarem jurisprudência[11], bem como "devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente", conforme artigo 926, do novo CPC.

Não se pode esquecer que deverá o Brasil, ao também adotar, como razão principiológica, que nas relações internacionais se regerá pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, conforme artigo 4º, II da Constituição, os precedentes internos deverão dialogar com os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos em qualquer matéria jurídica.

Na doutrina Internacionalista esta técnica de diálogo entre cortes, ou seja, entre a Suprema Corte e demais Tribunais com a Corte Interamericana de Direitos Humanos denomina-se de interpretação inter-cortes ou de viva interação[12], por consubstanciarem os precedentes da Corte IDH como expressão da última autoridade em matéria de interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, não admitindo, a doutrina que os países signatários realizem formação de uma ratio decidendi desassociada dos fatos idênticos já decididos pela Corte IDH, se evitando a denominada nacionalização do Pacto de San Jose de Costa Rica.

Neste sentido, Mazzuoli entende que o direito interno de um Estado-parte não pode criar uma interpretação particular em detrimento daquela já realizada pela Corte IDH, tendo em vista que o Brasil declarou expressamente que se submete à Jurisdição da Corte Internacional pelo Decreto Legislativo 89/98, sendo obrigatória não somente a observância de decisões contrárias ao Estado-parte como também a forma com que os tratados são interpretados pela Corte em casos de outro Estado-parte. Não há, portanto, discricionariedade e livre interpretação do pacto, que o autor denomina de "nacionalização" dos tratados internacionais de direitos humanos.

Percebe-se a inquinação explícita da uniformização de jurisprudência como elemento de conectividade democrática, fazendo com que as relações internacionais tendam a uma universalização das questões decididas internamente em um Estado-parte com outros casos idênticos já decididos para outros países na Corte IDH.

Citemos, na oportunidade do julgamento do Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentencia 24 de noviembro de 2010, o trecho da sentença que deixa bem claro que a Corte é o órgão legitimado realizar a hermenêutica mais adequada à Convenção Americana:

“19. (….)En esta tarea, deben tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.”[13] (Destaque nosso)

[…]

“22. (….)Por tanto, resulta contrario a las obligaciones convencionales de Brasil que se interprete y aplique a nivel interno la Ley de Amnistía desconociendo el carácter vinculante de la decisión ya emitida por este Tribunal.” (Destaque nosso)

Será esse o fiel da balança do acesso à ordem jurídica justa penal, a iniciar pela investigação criminal. A incidência em cascata dos precedentes da Corte IDH na elaboração da ratio decidendi  dos precedentes vinculantes internos dialogando com os precedentes internacionais vinculativos ao Brasil, consequentemente, com princípios e regras orientadas por decisões, jurisprudência, opiniões consultivas e demais manifestações do contencioso da Corte, que formarão o que a doutrina denomina de bloco de convencionalidade[14] ou também denominado de eficácia construtiva ou efeito positivo de suas decisões em todos os países signatários, tenham sido eles parte no processo ou não.

Não é por outro motivo que advogamos o entendimento de que a defesa na investigação criminal, delegado natural, audiência de custódia, contraditório, devido processo penal, motivação das decisões se aplicam à investigação criminal por força de um princípio universal, acima da Constituição, denominado de princípio pro homine ou pro persona.

No ordenamento jurídico brasileiro, o Delegado de Garantias é quem deve efetivar com total legitimidade e respaldo internacional o princípio pro homine, na esteira da proteção à interpretação da Convenção Americana, na qual trazemos a baila outro precedente na qual fica clara a possibilidade do Delegado de Polícia exercer (e já exerce) função materialmente judicial quando exerce sua função de aplicar ao caso concreto interpretação das normas penais e processuais penais, in verbis:

"Dichas garantías (do conduzido ser ouvido por um juiz ou outra autoridade que exerca funcões judiciais) deben ser observadas en cualquier órgano del Estado que ejerza funciones de carácter materialmente jurisdiccional, es decir, cualquier autoridad pública, sea administrativa, legislativa o judicial, que decida sobre los derechos o intereses de las personas a través de sus resoluciones."[15] (Grifo nosso)

Devem os precedentes citados servir como uniformização de jurisprudência no ordenamento brasileiro para expandir as liberdades públicas ainda em sede policial, como garantia a uma devida investigação criminal, corolário lógico da garantia ao acesso a uma ordem jurídica justa penal.


[1] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. in: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional,, Brasília, nº 113/118, p.91, jan/dez. 1998.
[2] ARAÚJO, Luis Carlos; e MELLO, Clayson de Moraes (org). Curso do novo processo civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 54
[3] Ibidem, p. 21
[4] AGAMBEM, Giorgio. O amigo & O que é um dispositivo?. Trad. Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó: Argos, 2014, p. 29
[5] MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 3
[6] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento 17ª ed. . Vol. 1. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 63
[7] Min. Celso de Melo, STF, em sede do HC 84548/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/6/2012.
[8] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela 10ª ed. . Vol. 2. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 441
[9] Ibidem, p. 446
[10] Ibidem, p. 456
[11] Ibidem, p. 470
[12] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. São Paulo, 3.ed. revista, atualizada e ampliada, Revista dos Tribunais, 2013, p. 104, na qual o autor também faz menção a uma outra expressão sinônima da "inter-cortes", denominada de "viva interação", cunhada pelo juiz Diego Garcia-Sayán.
[13] Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 17 de octubre de 2014.
[14] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Ob. cit., p. 99/100. "Tais decisões das cortes somadas demonstram claramente que o controle nacional da convencionalidade das leis há de ser tido como o principal e mais importante, sendo que apenas nmo caso da falta de sua realização interna (ou de seu exercício insuficiente) é que deverá a Justiça Internacional atuar, trazendo para si a competência de controle em último grau (decisão da qual tem o Estado o dever de cumprir. (….) Os direitos previstos em tais tratados, assim, formam aquilo que se pode chamar de "bloco de convencionalidade", à semelhança do conhecido "bloco de constitucionalidade"; ou seja, formam um corpus iuris de direitos humanos de observância obrigatória aos Estados-partes."
[15] Caso Nadege Dorzema e outros Vs. República Dominicana, no parágrafo 195, ao analisar em conjunto o art. 7.5 e 8.1 do Pacto de San Jose da Costa Rica e citando como precedente a opinião consultiva, OC-9/87 del 6 de octubre de 1987. Serie A Nº 9, p. 27.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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