Observatório Constitucional

Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC

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23 de abril de 2016, 8h00

Spacca
A Constituição do Brasil, na esteira dos ordenamentos contemporâneos, estabeleceu o dever de fundamentação no artigo 93, IX. Na verdade, lida na melhor luz, a Constituição diz que a fundamentação é condição de possibilidade de uma decisão ser válida. Mais do que isso, esse dever de fundamentação coloca uma pá de cal sobre antigos entendimentos de que uma decisão poderia ser dada por livre convencimento, desde que esse fosse “motivado”. Evidentemente que motivação não é o mesmo que fundamentação. Admitir que motivação seja igual ou possa substituir o conceito de fundamentação é afirmar que o juiz primeiro decide — e para isso teria total liberdade — e, depois, apenas motiva aquilo que já escolheu. É/seria a morte da Teoria do Direito e do Direito Processual, porque a decisão ficaria refém da (boa ou má) vontade (de poder) do julgador. Se isso é/fosse verdade, o processo seria inútil. E tudo se transforma(ria) em argumentos finalísticos-teleológicos. O processo seria apenas um instrumento ou algo que coloca uma flambagem em escolhas discricionárias, quando não arbitrárias. Perguntemos aos que pensam que motivação é o mesmo que fundamentação ou àqueles que dizem que o juiz primeiro decide para, só depois, “fundamentar” (sic), se, no aeroporto, desejam que o funcionário escolha quem deve passar pelo aparelho de raios X. Qual seria a resposta? Deixemos que o funcionário seja discricionário? Que escolha? Que “decida”: “você, sim”, “você, não”? Afinal, ele pode “motivar” depois…

Portanto, processo é condição de possibilidade. E, nele, a fundamentação da decisão é condição da democracia. Fechando o cerco sobre velhos adágios e serôdias teses, o legislador do CPC estabeleceu algumas blindagens contra a subinterpretação do artigo 93, IX, da CF: os artigos 10 (proibição de não surpresa), 371 (fim do livre convencimento), 489 (os diversos incisos que trazem uma verdadeira criteriologia para decidir) e o 926 (que estabelece a obrigatoriedade de a jurisprudência ser estável, integra e coerente)[1].

Pois é sobre o artigo 926 que recai uma carga epistêmica de infinito valor. Por várias razões. Primeiro, porque um modo de evitar a jurisprudência lotérica é exigir coerência e integridade; segundo, a garantia da previsibilidade e da não surpresa; terceira, o dever de accountability em relação à Constituição, justamente ao artigo 93, IX. E um quinto elemento: o Supremo Tribunal Federal deve também manter a coerência e integridade nas suas próprias decisões. Em todas. Nesse sentido, cresce igualmente o papel do STJ, locus da unificação do Direito infraconstitucional.

Conceitualmente: haverá coe­rên­cia se os mes­mos preceitos e prin­cí­pios que foram apli­ca­dos nas deci­sões o forem para os casos idên­ti­cos; mais do que isso, esta­rá asse­gu­ra­da a inte­gri­da­de do Direi­to a par­tir da força nor­ma­ti­va da Constituição. A coe­rên­cia asse­gu­ra a igual­da­de, isto é, que os diver­sos casos terão a igual con­si­de­ra­ção por parte do Poder Judiciário. Isso somen­te pode ser alcan­ça­do por meio de um holis­mo inter­pre­ta­ti­vo, cons­ti­tuí­do a par­tir de uma circularidade her­me­nêu­ti­ca. Coerência significa igualdade de apreciação do caso e igualdade de tratamento. Coerência também quer dizer “jogo limpo”.

Já a inte­gri­da­de é dupla­men­te com­pos­ta, con­for­me Dworkin: um prin­cí­pio legis­la­ti­vo, que pede aos legis­la­do­res que ten­tem tor­nar o con­jun­to de leis moral­men­te coe­ren­te, e um prin­cí­pio juris­di­cio­nal, que deman­da que a lei, tanto quan­to pos­sí­vel, seja vista como coe­ren­te nesse sen­ti­do. A integridade exige que os juí­zes construam seus argu­men­tos de forma inte­gra­da ao con­jun­to do Direi­to, constituindo uma garan­tia con­tra arbi­tra­rie­da­des inter­pre­ta­ti­vas; colo­ca efe­ti­vos ­freios, por meio des­sas comu­ni­da­des de princípios, às ati­tu­des solip­sis­tas-volun­ta­ris­tas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Ou seja: por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrar a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso — a morte do personagem — não fosse condição para a construção do capítulo seguinte. Exemplo interessante exsurge desde já: pode parecer, para os procuradores do Estado de todo o Brasil, que seja injusto, inadequado ou impertinente que o governador do estado possa nomear livremente o procurador-geral do Estado. Entretanto, a integridade do Direito aponta para a prerrogativa do chefe do Poder Executivo, conforme deixou claro o Supremo Tribunal Federal na decisão do ministro Lewandowski, ao deferir liminar na ADI 5.211 suspendendo a eficácia da Emenda à Constituição da Paraíba 35/2014, que, no caso, impedia o governador de escolher o procurador-geral dessa unidade da federação (ver aqui).

Parece óbvio que o dever de coerência e integridade não é o mesmo que a velha segurança jurídica. Quem assim pensa se apega a categorias jurídicas pré-modernas e a todo o contexto teórico metafísico (clássico) em que submergem a discussão doutrinária. Já li e ouvi manifestações despistadoras, no sentido de que a coerência e integridade do CPC não seria aquilo que é propalado por autores como Dworkin e MCormick. O que fazer? Apenas posso dizer e lembrar que segurança e certeza aparecem na praxe jurídica como "valores" autorreferentes, desarticulados, descarnados, ontologicistas e algo teológicos. Portanto, isso deve ser considerado como ultrapassado. Afinal, se valores valem mais que o Direito, então não há mais Direito.

A integridade é virtude política a ser adotada por uma autêntica comunidade de princípios (para além de uma associação de indivíduos meramente circunstancial, ou pautada num modelo de regras), e se expressa pela coerência principiológica na lei, na Constituição e na jurisprudência. Aqui já de pronto transparece uma questão nova: a coerência e integridade são antitéticas ao pamprincipiologismo, pela simples razão de que a “invenção” de um “princípio” sempre é feita para quebrar a integridade e a cadeia coerentista do discurso. Portanto, eis aí um bom remédio contra essa construção arbitrária de coisas que os juristas chamam de “princípios” e que não passam de álibis retóricos para fazer o drible da vaca na lei e na própria Constituição. O STF e o STJ devem, armados com esses dois poderosos mecanismos, assumir o papel de snipers epistêmicos.

Coerência não é simplesmente se ater ao fato de que cada nova decisão deve seguir o que foi decidido anteriormente. Claro que é mais profunda, porque exige consistência em cada decisão com a moralidade política (não a comum!) instituidora do próprio projeto civilizacional (nos seus referenciais jurídicos) em que o julgamento se dá. A ideia nuclear da coerência e da integridade é a concretização da igualdade, que, por sua vez, está justificada a partir de uma determinada concepção de dignidade humana.

A integridade quer dizer: tratar a todos do mesmo modo e fazer da aplicação do Direito um “jogo limpo” (fairness — que também quer dizer tratar todos os casos equanimemente). Exigir coerência e integridade quer dizer que o aplicador não pode dar o drible da vaca hermenêutico na causa ou no recurso, do tipo “seguindo minha consciência, decido de outro modo”. O julgador não pode tirar da manga do colete um argumento (lembremos do artigo 10 do CPC) que seja incoerente com aquilo que antes se decidiu. Também o julgador não pode quebrar a cadeia discursiva “porque quer” (ou porque sim). 

Vamos a alguns exemplos concretos de nosso Direito:

a) O STF decidiu na ADI 2.591, corretamente, que o Código do Consumidor se aplicará às instituições financeiras. Por exemplo, seria coerente continuar a decidir pela não aplicação do CDC aos contratos bancários. Ou seja, pode-se ser “coerente no erro”. Todavia, haveria aqui integridade decisória? Poderíamos encontrar diversos padrões de ajuste normativo para esta decisão exclusivista.

b) O STF ter permitido a pesquisa com células-tronco foi uma imposição da integridade, em um sistema que autoriza o aborto decorrente de estupro e, ao mesmo tempo, a reprodução in vitro.

c) Violou a coerência/integridade do Direito o julgamento proferido pelo STF no RE 428.991, em que foi acolhida a pretensão de servidor público no sentido de ter um benefício financeiro reajustado com base em interpretação de lei e decreto estaduais. A justificativa para isso foi a suposta insubsistência da tese de que a ofensa à Carta da República suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário há de ser direta e frontal. Porém, essa tese permanece sendo aplicada pelo STF em situações idênticas, uma vez que decorrente de sua tradição jurisprudencial (súmulas 279 e 280).

d) Violou a integridade do Direito o julgamento proferido pelo STF no RE 522.771, no qual os embargos de declaração foram transformados em agravo regimental e aplicada à parte embargante a multa cominada ao agravo tido por protelatório, prevista no artigo 557, parágrafo 2º, do CPC, a qual, além de mais alta do que a multa fixada para o manejo de embargos (não reiterados) protelatórios (artigo 538, parágrafo único), exige o depósito de seu valor para a interposição de novo recurso. Esse julgado atenta contra os princípios da segurança jurídica e da legalidade, ferindo de morte a integridade do Direito. Isto é, por mais esdrúxulos (e inconstitucionais em face do artigo 93, X, da Constituição Federal) que sejam os embargos de declaração, isso nunca foi declarado e, portanto, devem ser recebidos quando a parte deles se vale.

e) Quebrou a integridade a decisão do STF que, ao julgar o HC 126.292, deu uma sobre-super-interpretação à expressão “trânsito em julgado” prevista no artigo 5, inciso LVII, da Constituição, silenciando acerca da exigência prevista no artigo 283 do Código de Processo Penal.

Para registrar: no aporte que faço do e sobre o tema Teoria da Decisão Judicial, o respeito à coerência e integridade entra nos cinco princípios que constituem o “minimum aplicandi” na decisão judicial, conforme explicito amiúde em Verdade e Consenso, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica e nos Comentários a Constituição do Brasil, feitos em companhia de JJ Gomes Canotilho, Gilmar Mendes e Ingo Sarlet. Os cinco princípios (padrões) que devem ser obedecidos em cada decisão são os seguintes: a) preservar a autonomia do direito; b) estabelecer condições hermenêuticas para a realização de um controle da interpretação constitucional; c) garantir o respeito à integridade e à coerência do direito; d) estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental dos juízes e tribunais; e) garantir que cada decisão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada.

A coerência e a integridade são, assim, os vetores principiológicos pelos quais todo o sistema jurídico deve ser lido. Em outras palavras, em qualquer decisão judicial a fundamentação — incluindo as medidas cautelares e as tutelas antecipadas — deve ser respeitada a coerência e a integridade do Direito produzido democraticamente sob a égide da Constituição. Da decisão de primeiro grau à mais alta corte do país. Se os tribunais devem manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, logicamente os juízes de primeiro grau devem julgar segundo esses mesmos critérios.

É exatamente esse conjunto íntegro e coerente de princípios que diminuirá aquilo que com o novo CPC está proscrito: o “livre convencimento” que constava em quatro dispositivos e que agora desaparece — espero que para todo o sempre — para o bem da Constituição, da democracia e da teoria processual. E não se diga que isso é para “inglês ver”. Basta uma simples comparação com o antigo artigo 131 do CPC/73. Aliás, o dever de fundamentação previsto no art. 93, IX da CF e a coerência e a integridade já por si impediriam o livre convencimento. Coerência e integridade são incompatíveis com o voluntarismo judicial.

Então, de um modo mais simples, decisão íntegra e coerente quer dizer respeito ao direito fundamental do cidadão frente ao poder público de não ser surpreendido pelo entendimento pessoal do julgador, um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição, que é que, ao fim e ao cabo, sustenta a integridade. Na feliz construção principiológica de Guilherme Valle Brum, sempre que uma determinada decisão for proferida em sentido favorável ou contrário a determinado indivíduo, ela deverá necessariamente ser proferida da mesma maneira para os outros indivíduos que se encontrarem na mesma situação[2]. Mais simples ainda: decidir com coerência e integridade é um dever e não uma opção ou escolha: o direito não aconselha meramente os juízes e outras autoridades sobre as decisões que devem (oughtto) tomar; determina que eles têm um dever (have a duty to) de reconhecer e fazer vigorar certos padrões[3].

Numa palavra final: nestes tempos em que “todos os gatos são pardos” e que há uma amálgama de política, ideologia, valores e opiniões pessoais, o Direito já não consegue se reconhecer. Então, primeiro, temos de reconhecer o Direito no seu grau de autonomia; segundo, abrir uma clareira (Lichtung), desbastando o que está em volta para que ele possa vir à luz. Em Hermenêutica Jurídica e(m) crise, escrevi clamando pela necessidade de abrirmos uma clareira no Direito. Em ele aparecendo, para sobreviver, deve ser coerente e íntegro, cuja transparência somente se dá pela fundamentação (Grund). Eis o banho de imersão que o novo CPC deve receber das águas da Constituição.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Como é do conhecimento, as redações dos artigos 371 e 926 tiveram minha direta intervenção.
[2] BRUM, Guilherme Valle. Uma teoria para o controle judicial de políticas públicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 124-150. Outro livro recomendado é de Rafael Tomaz de Oliveira. Decisão Judicial e Conceito de Princípio. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.
[3] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 78

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