Simples: Ninguém é culpado pela destruição do Direito de Pindorama
21 de abril de 2016, 8h00
Ninguém disse nada em face da tese de que era possível encontrar a verdade real e que isso era (e continua sendo) repetido nas faculdades de Direito, de forma impune.
Ninguém também disse nada em relação ao fato de que, mesmo com o advento da Constituição Federal de 1988, os juristas continua(ra)m a acreditar e sustentar que a ratio do processo é(ra) o livre convencimento e a livre apreciação da prova, uma vez que a cereja do bolo é(ra) a palavra “motivado”… Quem se importa ou se importou com isso? Nem João, nem Pedro. Ninguém também não se importou com isso. Afinal, o que isso teria a ver com a aplicação do Direito, mormente “porque isso sempre foi assim”? Ninguém disse “bingo”.
Ninguém, mais uma vez, disse nada e todos acha(ra)m lindo e maravilhoso quando aqui se importou a tese de que “princípios são valores”…mas, e daí? Afinal, o juiz boca-da-lei estava morto mesmo, certo?
Ninguém nada disse e todos aplaudiram a importação da “ponderação”, espécie de Katchanga Real, pela qual é possível decidir de qualquer jeito… mas poucos reclamaram disso. Ao contrário: escreveram teses e aplicaram a ponderação pindoramensis. Afinal, quem tem coragem de criticar essas coisas tão fofinhas? Ninguém? Mas não mesmo. Todo o poder aos ponderadores.
Ninguém nada disse — e também não se importou nem um pouco — em relação à abertura da fábrica de princípios, que foi bem recebida pelo operariado do Direito…assim como pela patronagem. Afinal, sempre é possível comprar um princípio novo para resolver o problema. Chama-se de fator Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros”. No atacado, há princípio para tudo e para todos. E a preços baixos. Quem se importa? Ninguém?
Ninguém nada disse e começaram a fazer dissertações e teses sobre a “tese” de que “princípios são valores” e, graças a esse enunciado performativo, puderam defender qualquer coisa: da manutenção da prisão preventiva por mais de um ano, do usucapião em terras públicas, do direito de indenização por abandono afetivo até a possibilidade de fragilizar o dispositivo de que a casa é(ra) o asilo inviolável… Quem critica? Quem criticar, é um retrogrado. E alguém teria coragem? Ninguém?
Ninguém disse nada e o ativismo judicial virou “principio”… e a tese foi recebida sob aplausos. Afinal, depois do princípio da colegialidade, o que mais a comunidade jurídica iria querer? Sem dizer que depois que veio a internet mais um ingrediente no caldeirão do ativismo: sim, agora habemus o princípio da conexão, fazendo do juiz uma espécie de Big Brother, para desespero do Bial, ameaçado de perder o emprego. Ninguém se importou? Não, ninguém se importa.
Ninguém nada disse em relação ao fenômeno dos workshops feitos para elaborar enunciados, que se multiplicaram. Como psicotrópicos, os enunciados servem para aliviar a angústia dos juristas em face da “incertitumbre” da lei. E os enunciados passaram a valer mais do que a legislação e os códigos, podendo-se citar como caso mais alarmante a prodigalidade de enunciados em torno do novo Código de Processo Civil, feitos antes mesmo do início de sua vigência… E poucos se importaram. Ninguém se deu conta de que aqui é a civil law? Ninguém, é claro, sabe disso. Em vez de combater o inimigo, passaram a fazer mais enunciados, sempre pensando que o próximo pode ser a favor de sua tese. Ninguém não duvida disso.
Ninguém nada falou sobre a relevante circunstância de que, na medida em que todos gostaram da tese de que “princípios são valores” e o respeito aos limites semânticos da Constituição e das leis passaram a ser uma coisa “feia” e/ou “conservadora” (ou mal epitetada de positivista), a “coisa” ficou incontrolável. Será que ninguém pensou no estado de natureza interpretativo? Difícil dizer. Poucos ou quase ninguém fala sobre isso. Ninguém, talvez. Ninguém talvez dissesse: eu não advogo, sou professor e não tenho interesse em lidar com a “prática” ou essas discussões são para a jurisprudência (afinal, o Direito é o que o Judiciário diz que é) ou por razões ideológicas, “neste caso não importo com isso, porque “a lei que se dane”… Ninguém bem sabe que as consequências vêm sempre depois. Ninguém é leitor de Eça de Queiroz.
Ninguém nunca se importou com o crescimento do número de cursinhos e o modo prêt-à-porter de ensino que passou a dominar os concursos públicos. Afinal, isso é um assunto que interessa a quem ainda não passou em concurso ou “quem sabe, sobra uma boquinha nesse butim para mim”. E as publicações então? Direito mastigado, simplificado, em palavras cruzadas. Da noite para o dia, surgem, dia a dia, centenas de “novos” livros. Ninguém até hoje não se importou. Talvez agora, sim.
Ninguém nada falou a respeito do fato de parte das pós-graduações cada vez mais admitirem dissertações e teses monográficas, apenas repetindo conteúdo da graduação. Ninguém pensou que isso apenas demonstra que o Direito foi transformado em uma ferramenta, manipulável, feito um machado ou uma picareta, por qualquer estudante ou decorador de textos? Ninguém falou algo a respeito de teses sobre agravo de instrumento. E sobre a natureza jurídica do cheque. Em curso sobre meio ambiente, dissertação sobre uniões homoafetivas. E tese sobre o poder cautelar do árbitro. Mas ninguém ouviu nada do que foi dito sobre isso. Ninguém deixou por isso mesmo.
Ninguém disse nada e não se importou com o fato de que as prisões cautelares banalizaram e passaram a ser regra (existem 300 mil presos cautelares) e os prazos de prisão preventiva ultrapassaram de longe os 169 dias “fixados” pelo CNJ. Ninguém se importa com os presos. Ninguém, no entanto, se deu a pachorra de ler o que a Constituição diz sobre isso. Afinal, para quê(m) serve a Constituição? Só os “formalistas e gente fora do mundo real” ainda defendem a Constituição (Ninguém entende ironia). Quem defende a CF é retrógrado, dizem os ingênuos que pensam que o Direito é uma mera racionalidade instrumental. Ninguém é néscio.
O tempo foi passando… Ninguém nem se deu conta de que o ovo da serpente estava em gestação. Foi quando passaram a atacar a Constituição mais de frente. Passaram a ultrapassar mais e mais os limites semânticos. Ninguém nada disse quando os juristas — incluído o Supremo Tribunal Federal — esqueceram que esse processo levava à canibalização do Direito. Ninguém rememorou a história do Direito Constitucional contemporâneo? Parece que não. Ninguém é alienado, mas alguém deveria saber um pouco de história: diante do fracasso de duas guerras mundiais, em que o direito não “valeu nada”, o período pós segunda guerra trouxe um novo direito. Ninguém chegou a ler sobre isso. Trata-se do fenômeno da transformação das Constituições em norma jurídica, enfim, em um dever ser, incorporando uma espécie de ideal de vida boa (e não de boa vida — na minha terra, o vagabundo é chamado de “boa vida” quando se aproveita da vida boa dos pais). Muito já escrevi sobre isso. A democracia passou a ser “pelo Direito” e “no Direito”, ao ponto de Hesse ter falado em força normativa, Ferrajoli em Constituição normativa e Canotilho em Constituição Dirigente, que ele foi buscar na tese da dirigierende Verfassung, do alemão Lerche. Democracia só é possível no Direito e pelo Direito. Quem não entendeu isso não entende(u) o papel do Constitucionalismo Contemporâneo.
Parece que pouco aprendemos com isso. Ninguém estudou isso. Mas parece que não aprendeu. Enquanto na Europa as democracias se consolidaram, por aqui a Constituição continuou a ser desprezada, podendo valer menos que a política, a moral e a economia, predadores “naturais” da autonomia do Direito. Os predadores exógenos contaram, é claro, com o auxílio dos predadores internos. Que também são muitos. Eficazes. De livros simplificadores à sala de aula, passando por manuais de baixa densidade até à ode ao protagonismo, tudo conspirou e conspira contra o Direito.
A Constituição perdeu sua condição de garantidor da politica para ser refém da política. Misturaram Hobbes com Rousseau e esqueceram o do meio: Locke. E esqueceram a metáfora de Ulisses. E se entregaram às sereias. Ninguém assistiu ao espetáculo burlesco proporcionado pela Câmara que admitiu o processo de impeachment. Ali não se disse coisa com coisa. O Direito virou a Geni. O jornal Der Spiegel, da Alemanha, disse que, no dia 17 de abril, houve no Brasil uma Aufstand der Scheinheiligen (conspiração da hipocrisia). Sim, as sereias, nesse processo de Aufstand der Scheinheiligen, homenagearam a ética (sic), as mães, os filhos, Deus, Jesus, a ditadura, um torturador, os filhos, os caititus fora do bando, o marido p(e)r(e)feito (que acabou preso no dia seguinte), além de assassinarem os “esses”. Sim, impicharam a letra “s”. Ninguém nunca pensou que tantos deputados tivessem tanta afetividade em relação às suas famílias. Pobres sereias. Pobre Constituição. O assustador é o precedente (já que isso está na moda no novo CPC) que se abre. A partir de agora, Rousseau venceu: qualquer maioria derruba um governante. Desde que dele não goste. Ou o ache incompetente. Ou feio. Ou antipático.
Ninguém ficou pensando: onde está o erro? Se ao menos a votação tivesse sido por painel… Pelo menos, poderia ter a ilusão de que há(via) um parlamento em Pindorama. De todo modo, qual é a diferença entre o comportamento dos edis federais e o (comportamento) de um procurador da República (Carlos Fernando) que posta no Facebook uma foto sua com uma camiseta estampando a inscrição “República de Curitiba” e a foto dele (ver aqui), do procurador Deltan Dallagnol e do juiz Sergio Moro com o epiteto de Liga da Justiça? Não sabe (ou sabe) sua Excelência que a Liga da Justiça não respeita o devido processo legal nas historinhas da DC Comics? Sabe o procurador o sentido simbólico da Liga da Justiça e da palavra “justiceiro”? Basta ver o filme Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado, em que o inimigo do Surfista Prateado é torturado. Legalmente torturado. É. Pois é. Liga da Justiça. Ninguém sabe. Ninguém viu. Bom, se o procurador postou com orgulho a camiseta, é porque gostou da ideia da tal “república” e da “liga”. Retratos do Brasil. Camisetas brasileiras.
Pois é. Como no poema famoso No caminho com Maiakóvski, no início decidiram dar a metade da herança para a amante. Ninguém nada disse. Depois, negaram a presunção da inocência. Ninguém de novo disse nada. Também passaram a permitir o uso de prova ilícita em nome dos fins. Ninguém outra vez disse nada. Defender a Constituição virou sinônimo de formalismo vazio. Ninguém sabe. Ninguém viu. Mas ninguém fez nada.
Ninguém, agora, sabe mais nada sobre como vai ser o futuro do Direito, que foi predado pela moral e pela política. Claro. Ninguém nada disse. No início, não era com ele. Ninguém nunca se importou com nada disso.
E, agora? Ninguém não tem ninguém para reclamar. Afinal, como consta no início da coluna: Ninguém é alienado. E uma pessoa alienada, mesmo sendo NINGUÉM, ali-é-nada. Isto porque ninguém é alienado. E o inferno são os outros.
Observação: Esta coluna é uma homenagem aos clássicos. Cuidado ao ler. Há uma palavra que pode assustar e que se repete a todo momento. A palavra remete à mitologia grega. No caso, à Odisseia, livro IX. Resumindo, é assim: Odisseu (Ulisses) e seus homens chegam na ilha dos ciclopes. Foram procurar comida na caverna onde um ciclope guardava as ovelhas. O ciclope Polifemo aprisiona os marinheiros e passa a comê-los. Ele só tem um olho no meio da testa. Odisseu elabora um plano e oferece vinho a Polifemo, que pergunta “quem lhe ofereceu a bebida”, ao que Odisseu responde: "foi Ninguém".
Quando Polifemo adormece, Odisseu e seus homens afiam uma vara e a espetam no olho do ciclope e o cegam. No dia seguinte, os marinheiros pegam as ovelhas e saem correndo. Polifemo sai gritando aos outros ciclopes que "Ninguém o tinha cegado". Bingo. Foi Ninguém. Por isso, os demais ciclopes o ignoraram…
Voltando: afinal, quem fragilizou tanto assim o Direito? Foi Ninguém, ora!
Post scriptum: Pego, ao final, uma passagem de um texto de Geraldo Prado, contando que, andando pelas ruas de Buenos Aires nos anos 1990, entrou em uma livraria jurídica e viu, fechada dentro de uma pequena caixa de cristal, uma Constituição de bolso. Por fora um aviso escrito: En el caso de una emergencia rompa el cristal. Bingo!
Alguém se importa(rá)? Penso que sim. Por isso, sou um otimista. Olho para a frente. Com um olho no retrovisor. Para poder analisar o Direito que foi e compará-lo com o que está sendo, para poder dizer como deve ser. Sem desistir. Essa é a tarefa de um jurista crítico. No meio de grande barulho, as pessoas ouvem o que querem. O jurista deve se concentrar e fazer um silêncio pelo qual possa bem ouvir. Cuidar para não cair em armadilhas. Quando bem jovenzinho, chumbei em um concurso para Caixa Econômica Federal. Em datilografia. Pateticamente. Ouvindo o barulho das máquinas, pensei que todos datilografavam rápido. Eu não soube distinguir os sons. E paguei caro.
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