Anuário da Justiça

Tribunais passam a dar preferência a casos de maior repercussão

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21 de abril de 2016, 8h10

Será lançada nesta terça-feira (26/4), no salão Branco do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, a décima edição do Anuário da Justiça Brasil 2016. Trata-se de um especial com o retrato dos últimos 10 anos do Judiciário brasileiro. Na oportunidade, também será inaugurada a exposição “1215: Magna Carta Libertatum – 1824: A Primeira Constituição Brasileira”, que homenageia os 800 anos da Magna Carta inglesa, a primeira constituição da história da humanidade, e os quase dois séculos da Constituição brasileira de 1824.

Leia a seguir a íntegra de reportagem que será publicada no Anuário da Justiça Brasil 2016.

Nunca a cúpula do Poder Judiciário brasileiro trabalhou tanto. E nunca de maneira tão focada. O ano de 2015 marcou o início da segunda década de vida da Emenda Constitucional 45, a chamada Reforma do Judiciário. Foi ela quem inscreveu na Constituição Federal de maneira definitiva a ideia de que as cortes de Brasília existem para definir teses, e não para decidir casos.

Ao longo dos primeiros dez anos a noção foi distorcida para dizer que as maneiras de pacificação de entendimentos, como a repercussão geral no STF ou a escolha de um recurso como representativo de controvérsia repetitiva no Superior Tribunal de Justiça, eram “filtros de acesso”. Na verdade, a intenção era dizer que uma decisão desses tribunais deve ser aplicada pelas cortes locais como uma forma de evitar que litígios iguais tivessem soluções diferentes, causando insegurança jurídica e instabilidade social, como costuma alertar o decano do Supremo, ministro Celso de Mello.

Da retrospectiva que este Anuário da Justiça Brasil traz em suas páginas, é possível analisar que foram necessários dez anos para que houvesse um despertar dos protagonistas desta história para o fato de que a melhor forma de resolver conflitos não é julgando a maior quantidade de processos. Nesse sentido, o ano de 2015 foi um marco na história da parte de cima da Justiça brasileira.

Tome-se o Supremo por exemplo. Em dez anos, julgou um milhão de processos. Em 2006, o tribunal havia batido a marca dos 100 mil processos distribuídos. Um ano depois, com a entrada em vigor da repercussão geral, a demanda caiu mais de 60%. Em 2015, o tribunal voltou a registrar a chegada de 93 mil processos, entre recursos e ações originárias. Em relação a 2014, a alta foi de 17%, a maior vista em pelo menos cinco anos.

Há diversos fatores que explicam esse fenômeno. Um deles é o aumento da facilidade de acesso à Justiça. O principal deles é a Constituição de 1988, que elevou a fundamentais direitos ligados à cidadania e deu ao povo meios de enfrentar a virulência com que o Estado desrespeita suas próprias regras. Não por acaso, quase 40% de toda a demanda à Justiça brasileira seja de responsabilidade estatal, conforme atesta o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça.

Mas 2015 também foi o ano em que o Supremo apurou a maior produtividade de sua história. Foram julgados 116 mil processos, o que resultou numa baixa no acervo pelo segundo ano consecutivo, o que não era visto desde 2010. O tribunal fechou 2015 com 53 mil processos por julgar, quando um ano antes tinha 56 mil – a despeito de ter recebido quase 100 mil novas causas nesse meio tempo.

Isso não quer dizer que só foram tomadas milhares de decisões interlocutórias, ou que toda essa produtividade se refere apenas aos chamados “despachos de mero expediente”. De fato, houve mais de 10 mil deles. Mas 2015 foi um ano atípico para o Supremo diante da abundância de julgamentos relevantes tanto jurídica quanto socialmente proferidos pela corte.

Exemplo é a discussão sobre se a declaração de inconstitucionalidade de uma lei pelo STF atinge, de pronto, sentenças já transitadas em julgado. Por unanimidade, o Plenário seguiu o voto do ministro Teori Zavascki e decidiu que não. Para que a coisa julgada seja desconstituída é “essencial” o ajuizamento de ação rescisória, definiu o Pleno.

Foi uma das discussões históricas sobre controle de constitucionalidade feitas pelo Supremo. De acordo com o ministro Teori Zavascki, as decisões tomadas pelo tribunal em controle concentrado, ou abstrato, têm duas características principais. A primeira é a “eficácia normativa”, ou a consequência direta da decisão de declarar uma lei inconstitucional. Ela tem seus efeitos aplicados à lei desde que ela foi editada, já que uma lei não pode passar a ser inconstitucional ou constitucional, ela nasce assim.

A decisão do Supremo é apenas um reconhecimento de sua harmonia ou conflito com a Constituição. Mas há ainda a “eficácia executiva”, que é o efeito vinculante que tem uma decisão do STF em controle concentrado. “Seu termo inicial é a data da publicação do acórdão do Supremo no Diário Oficial”, escreveu Teori em seu voto. “É, consequentemente, eficácia que atinge atos administrativos e decisões judiciais supervenientes a essa publicação, não atos pretéritos.”

Notório defensor da liberdade de expressão, o Supremo deu mais um passo em direção à livre circulação de ideias no país ao declarar inconstitucional a exigência de autorização prévia para se publicar e divulgar informações sobre alguém. A ação foi movida por editoras de livros pressionadas por processos ajuizados por personalidades visando à proibição da publicação de biografias por conta da falta de autorização dos biografados. Alegavam que a publicação de fatos da vida particular de alguém não interessa ao grande público e é usada com propósito de difamar o biografado e de ganhar dinheiro.

O Supremo entendeu que submeter a publicação de uma biografia à autorização do biografado significa uma forma de censura, o que é inconstitucional. Prevaleceu o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia: “Não se faz a história apenas após se ultrapassarem os umbrais da porta de casa”, disse. “Não se admite, na Constituição da República, sob o argumento de se ter direito a manter trancada a sua porta, se invadido o seu espaço, abolir-se o direito à liberdade do outro. No caso do escrito, proibindo-se, recolhendo-lhe a obra, impedindo-se a circulação, calando-se não apenas a palavra do outro, mas amordaçando-se a história. Pois a história humana faz-se de histórias dos humanos.”

Pois se o melhor sismógrafo para medir os níveis de democracia de uma sociedade é a forma como ela conduz seu processo penal, na definição do jurista James Goldschmidt, o Supremo também deu grandes contribuições ao Direito Penal brasileiro entre 2015 e 2016.

Trouxeram o tribunal de volta para o centro do debate sobre direitos fundamentais os julgamentos sobre a situação do sistema carcerário. Primeiro, o tribunal decidiu que o princípio da reserva do possível, usado pela administração pública para se furtar de investir em determinadas áreas, ainda que haja obrigação constitucional, não pode ser usado para o desrespeito a direitos fundamentais.

Depois, o Supremo reconheceu o “estado inconstitucional de coisas” em que se encontra o sistema prisional brasileiro, seguindo entendimento do ministro Marco Aurélio. Ali ficou definido que todas as esferas do Executivo devem trabalhar para garantir o respeito à dignidade dos encarcerados, independentemente de reserva orçamentária: “O Supremo tem o dever de tirar os demais poderes da inércia”, afirmou Marco Aurélio.

Outra importante decisão foi tomada já em 2016. Trata-se da definição de que a pena de prisão pode ser executada depois que o tribunal de segundo grau confirma a sentença penal condenatória. Com isso, o Supremo retomou sua jurisprudência que vigeu até 2006.

Naquele ano, uma decisão da 2ª Turma, baseada em voto do ministro Celso de Mello, entendeu que, como a Constituição diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a prisão só pode ser executada depois de esgotados todos os recursos.

Em 2009, o Plenário consagrou o entendimento inaugurado pelo ministro Celso e confirmou que se deve esperar o trânsito em julgado, com direito a discurso do relator, o ministro Eros Grau: “A prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete!”.

Em 2016, o Supremo revirou o jogo e voltou ao entendimento antigo. Seguiu o voto do ministro Teori Zavascki, segundo o qual depois da decisão do tribunal de segunda instância se esgota a fase de análise de fatos, provas e materialidade. Os recursos ao Supremo e ao STJ só podem discutir matérias de direito, e não fatos.

Essa discussão voltou à tona depois de provocação do ministro Gilmar Mendes, em discussão na 2ª Turma, em março de 2015. Disse ele, então, que o Supremo tinha “encontro marcado com essa questão”. O ministro Gilmar Mendes foi o único que mudou o voto em relação ao julgamento de 2009. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, os dois mais antigos, saíram do julgamento de 2016 transtornados. O decano disse que o tribunal adotou uma posição “conservadora e regressista”, ao passo que o vice-decano disse que a corte “acaba de rasgar a Constituição”.

E em dezembro de 2015, outra decisão histórica do tribunal, tomada pela 2ª Turma: a prisão de um senador em exercício do cargo. O senador Delcídio do Amaral, então líder do governo na Casa, foi gravado oferecendo dinheiro para a família de um ex-diretor da Petrobras para que ele não assinasse acordo de delação premiada na operação “lava jato”, e também montando um plano de fuga para ele.

A conversa era entre Delcídio, seu chefe de gabinete e o filho do executivo. A prisão foi pedida pela Procuradoria-Geral da República, que acusava o senador de integrar, junto a seu chefe de gabinete e ao ex-presidente do banco BTG, uma organização criminosa. A 2ª Turma entendeu que, embora não tenha havido flagrante da conversa, fazer parte de organização criminosa é crime permanente – e, portanto, quem o comete está em situação de constante flagrância.

Os últimos tempos foram tão intensos que num espaço de seis meses o Plenário decidiu um assunto pendente há muito duas vezes, e de maneira diametralmente opostas. Em agosto de 2015, a corte entendeu que era cabível o Habeas Corpus impetrado contra decisão monocrática de ministro do Supremo. A decisão se deu por empate, já que Teori Zavascki, autor da decisão atacada, não votou. E prevaleceu o entendimento do ministro Dias Toffoli, complementado por Marco Aurélio, para quem “o Habeas Corpus de tão elogiado passou a ser execrado. E se desconhecendo a letra expressa da Carta da República quanto a essa garantia constitucional, se vislumbra uma série de obstáculos à impetração”.

Seis meses depois, em fevereiro de 2016, num agravo contra HC do ministro Cezar Peluso, já aposentado, a composição completa do Pleno votou, e decidiu que não cabe Habeas Corpus contra ato de ministro do Supremo. Por seis votos a cinco, prevaleceu o voto do ministro Teori de que, para questionar atos de ministros do STF, cabe o agravo interno.

Também no Superior Tribunal de Justiça, o espírito não foi outro senão o de definições de teses, e não apenas de decisões em cima de casos concretos. Não que o tribunal tenha trabalhado menos. Com 461 mil julgados em 2015, o STJ foi outro tribunal a bater o próprio recorde de produtividade, que alcança índices inéditos a cada ano. Mas o que guiou o tribunal em 2015 foi a inauguração da “nova era do respeito aos precedentes”, como definiu o ministro Luis Felipe Salomão em retrospectiva sobre o ano publicada na revista eletrônica Consultor Jurídico.

A corte passou o ano assombrada pela possibilidade de o novo Código de Processo Civil acabar com o juízo prévio de admissibilidade de recursos especiais feito pelas cortes de origem. Isso dobraria a demanda pelos serviços do tribunal, previu um estudo comandado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Mas no segundo semestre o Congresso aprovou uma série de alterações no texto do novo código, que manteve o juízo de admissibilidade de recursos nas cortes locais, e não mais no tribunal superior a que se destinam. Foi um alívio para todos, e abriu espaço para que os esforços se concentrassem na vida jurisdicional.

O próximo passo em relação ao CPC era adequar o Regimento Interno do tribunal à nova lei. A expectativa era de briga. Quem acompanha a Corte Especial e as sessões plenárias sabe o quão apegados os ministros são às suas posições, especialmente as jurisprudenciais. Mas o que se viu foram discussões rápidas e em duas semanas a maior parte do trabalho estava feita. O Regimento Interno do STJ estava adaptado ao novo CPC um dia antes de ele entrar em vigor.

Ainda foi definida uma série de questões administrativas em relação à mudança de código. Por exemplo, que aos recursos interpostos antes da entrada em vigor do novo CPC se aplicam as regras de admissibilidade da lei anterior, de 1973. Os novos prazos valem a partir da entrada em vigor do novo código. Também ficou definido que, nesses casos, contam os prazos da lei antiga, sem direito à extensão prevista no novo CPC. Outra importante definição foi que os honorários de sucumbência recursais só podem ser arbitrados aos recursos ajuizados depois da entrada em vigor da nova lei.

Em questões jurisprudenciais, o STJ avançou sobre temas de interesse direto do cotidiano da sociedade, como quando definiu que a amante de um homem casado também deve receber parte da herança. No caso concreto, o relacionamento extraconjugal durou mais de 40 anos, e por isso o tribunal não considerou que fosse apenas um namoro fora do casamento, mas praticamente um casamento paralelo. Ou ainda a definição, pela 2ª Turma, de que é abusivo dar desconto para quem faz compras com dinheiro ou cheque, cobrando a mais para quem paga com cartão.

No âmbito tributário, decisão importante foi a que deu os contornos fiscais dos chamados juros sobre capitais próprios. Por maioria, a 2ª Seção seguiu o voto do ministro Mauro Campbell Marques para dizer que os juros sobre capitais próprios são faturamento, independentemente de sua classificação contábil e, portanto, devem ser incluídos na base de cálculo do PIS e da Cofins.

Não é uma discussão simples. Apesar do nome, os juros sobre capitais próprios são uma forma de distribuição de remuneração de acionistas. Parece uma questão ligada apenas a grandes empresários, mas envolve diretamente os planejamentos fiscais e contábeis das empresas. Para a CVM, eles são juros pagos aos acionistas como remuneração por operações feitas com capital da própria empresa.

Mas a 2ª Seção do STJ, seguindo voto do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, decidiu que eles são “parcela do lucro a ser distribuído aos acionistas”. Mas ficou claro que os efeitos societários e tributários dessa forma de remuneração devem ser separados. E o efeito tributário, segundo o ministro Mauro Campbell, é o de que são uma categoria independente dos dividendos, sobre os quais não incidem imposto de renda nem CSLL.

Até mesmo o Tribunal Superior Eleitoral, que tem como principal função organizar e regulamentar as eleições, foi tomado por ares especiais em 2016. O presidente, ministro Dias Toffoli, se impôs a meta de definir a jurisprudência aplicável às eleições municipais enquanto a composição da corte, feita de ministros “emprestados” de outros tribunais, estivesse estável. Pela primeira vez desde a redemocratização, em 1985, o tribunal editou todas as resoluções referentes ao pleito local antes do início do período eleitoral, e mesmo tomando por base uma reforma eleitoral aprovada ainda em 2015.

O tribunal teve de passar por sérias mudanças diante da decisão do Supremo de que o financiamento eleitoral por pessoas jurídicas é inconstitucional – e, portanto, proibido. Empresas são as principais financiadoras das campanhas desde 1993, quando uma reforma eleitoral passou a autorizar que elas doem dinheiro a candidatos. Isso resultou em eleições cada vez mais caras e em relações cada vez “menos republicanas”, para usar um eufemismo corrente, entre políticos e o mercado. A própria Ação Penal 470, o processo do mensalão, é uma decorrência da forma obscura com que políticos e empresas atuam conjuntamente. A midiática operação “lava jato” é um passo para dentro, mostrando como interesses de mercado conseguiram adentrar a máquina pública.

A principal mudança  apagou da resolução sobre financiamento eleitoral as punições a empresas que doam acima do limite legal. Agora, qualquer doação feita por empresa acarreta em punição para a companhia e para a campanha. O tribunal começou a discutir o que fazer com as ações por doação acima do limite que estão pendentes de julgamento na corte, mas o caso foi interrompido por pedido de vista e não tem previsão de retorno à pauta.

Toffoli e os ministros do TSE chegaram ao consenso de que as eleições precisam ser mais baratas, como uma forma de tentar reaproximar a classe política da sociedade. Aplicaram uma espécie de congelamento de preços: resolução editada em dezembro de 2015 estabeleceu que as campanhas para prefeito em 2016 só podem gastar até 60% do total gasto pela campanha mais cara de 2012. No caso de vereadores, até 50% do maior gasto do pleito anterior.

Ainda no sentido de aplacar a crise de responsabilidade, o TSE entendeu que era preciso levar transparência para os partidos, e viabilizar maior participação dos eleitores nos processos internos da legenda. Uma resolução acabou com o sigilo bancário dos partidos e obrigou-os a ter três contas: uma para receber doações, uma para receber dinheiro do Fundo Partidário e a terceira para “outros recursos”, como sobras financeiras de campanha e valores recebidos com a promoção de eventos.

Foi imposta, também, a obrigação de os partidos transformarem suas comissões provisórias em diretórios regionais, como manda a lei. O tribunal havia dado prazo de 120 dias para as legendas fazerem a mudança, sob pena de não terem o registro para a campanha de 2016.

 Os partidos reclamaram, disseram que a medida era uma afronta à autonomia partidária. O tribunal decidiu esticar o prazo para um ano desde a decisão em plenário, tomada em março de 2016. Muitos partidos, para não criar diretórios regionais com diretorias eleitas, criaram comissões provisórias com chefias indicadas. Isso acabou transformando os cargos de liderança em moeda de troca e criando mais um ponto de afastamento entre filiados e políticos.

O relator do questionamento à resolução, ministro Henrique Neves, negou qualquer afronta à autonomia partidária. Disse que “os partidos são livres para se organizar da maneira que acharem melhor, desde que isso seja feito de forma democrática”. Ou, como resumiu o ministro Toffoli, “não podemos mais aceitar que os partidos definam quem serão seus candidatos em mesas de restaurantes, ou em reuniões fechadas com cinco ou seis lideranças”.

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