Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo neozelandês (parte 43)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

20 de abril de 2016, 9h55

Spacca
1. As faculdades de Direito neozelandesas  
Qualquer estudo sobre o ensino jurídico neozelandês é simplificado, ao menos em termos de análise quantitativa, pelo pequeno número de faculdades de Direito autorizadas no país.

Na origem das instituições de ensino superior, esteve a Universidade da Nova Zelândia, que funcionou de 1874 a 1961, na condição de única escola superior de natureza pública do país, mas com diversos campi no território neozelandês. No ano de 1961, deu-se seu fracionamento e, com isso, nasceram as atuais universidades, embora não todas em simultâneo. Hoje, a Nova Zelândia conta com as seguintes universidades: a) Universidade Tecnológica de Auckland; b) Universidade Lincoln; c) Universidade Massey; d) Universidade Auckland; e) Universidade de Canterbury; f) Universidade de Waikato; e g) Universidade Victoria de Wellington. Como adiantado na coluna anterior, nem todas possuem cursos jurídicos. As faculdades de Direito existentes são vinculadas às universidades de Auckland, Waikato, Wellington, Canterbury e de Otago, além de um curso jurídico vinculado à Universidade Tecnológica de Auckland.

De acordo com o ranking da consultoria internacional Quacquarelli Symonds (QS), limitado aos cursos jurídicos, as melhores faculdades neozelandesas são: a) Auckland; b) Canterbury; c) Otago; d) Victoria-Wellington; e e) Waikato[1]. A Faculdade de Direito da Universidade de Auckland está em 32º lugar na classificação das instituições mundiais[2].

Todas as faculdades de Direito são vinculadas a universidades públicas. No entanto, o financiamento dá-se por meio de cobrança de anuidades e taxas dos alunos, além de doações privadas e parcial custeio do governo da Nova Zelândia. De acordo com dados de 2013, o custo anual do sistema universitário do país é de 3,5 bilhões de dólares neozelandeses. Desse total, 40% são oriundos de receitas públicas, o que corresponde a 1,4 bilhões de dólares neozelandeses. Os 60% restantes são decorrentes da arrecadação de anuidades, taxas, direitos de propriedade industrial, consultorias e doações privadas. Os custos fixos com pessoal abrangem 60% do total gasto com o sistema[3].

2. Estrutura curricular da graduação em Direito
Na Nova Zelândia, diferentemente do que se dá em outros países de tradição jurídica de common law, tem-se uma diretriz curricular nacional mínima, firmada pelo Conselho de Educação Jurídica. São cinco as disciplinas que todo currículo universitário deve obrigatoriamente conter: a) Direito dos Contratos; b) Responsabilidade Civil; c) Direito Penal; d) Direito Público; e d) Property Law, que pode compreender diferentes conteúdos jurídicos em comparação com o Direito das Coisas de tradição de civil law, como Direito de Propriedade, contratos de transferência dominial, fundos e regras sucessórias. É curioso anotar que se considera uma grade mínima muito reduzida. Sua configuração atual data de 1987, quando se iniciou um processo de ampla desregulamentação administrativa no país, e, nesse âmbito, até os cursos jurídicos sofreram com essa ânsia por um “estado regulador mínimo”[4]. Não deixa de ser curioso quando, em muitos países do terceiro mundo, especialmente no Brasil, a defesa por matrizes curriculares com menos disciplinas obrigatórias seja um discurso que une tanto esquerdistas quanto liberais.

Outra mudança interessante, determinada pelo Conselho de Educação Jurídica, foi a introdução de um curso para os que concluem a graduação em Direito, com o seguinte conteúdo: a) deontologia geral e deontologia profissional, com análise de questões como conflito de interesses, confidencialidade, deveres de respeito à corte, deveres de fidelidade e de lealdade; e b) responsabilidade social do profissional do Direito. Esse curso é obrigatório para os que desejam habilitar-se para o exercício de profissão jurídica, especialmente a advocacia. Essa questão também evoca a experiência brasileira de introdução da ética profissional no Exame de Ordem e o esforço de inclusão dessa disciplina nas matrizes curriculares das faculdades de Direito. Seria muito conveniente que se fizessem estudos sobre o impacto das alterações curriculares para dar ênfase à ética profissional nos indicadores relativos às condutas infracionais.

Se existe uma diretriz curricular nacional na Nova Zelândia, tal norma não inibe que as faculdades de Direito organizem suas grades de modo singular. Veja-se o exemplo da Universidade de Auckland, a mais conceituada do país[5].

O bacharelado divide-se em quatro partes, correspondentes aos quatro anos do curso de Direito.  

Na parte 1, o aluno tem aulas de Direito e Sociedade (15 créditos) e Metodologia Jurídica (15 créditos), as duas disciplinas obrigatórias. Há uma disciplina de formação básica, denominada Educação Geral (15 créditos) e cinco disciplinas não jurídicas, cada uma com 15 créditos, o que perfaz um total de 75 créditos. Na parte 2, as obrigatórias são Direito Penal, Direito Público, Responsabilidade Civil, Direito dos Contratos, cada uma delas com 30 créditos, e uma disciplina de Pesquisa e Redação, de 10 créditos. O aluno pode cursar até 45 créditos de disciplinas jurídicas eletivas.  

Na parte 3, as obrigatórias são Land Law (componente da categoria mais geral Property Law, conforme a diretriz do Conselho de Educação Jurídica, com 20 créditos), Equity (disciplina típica do Direito de common law, que, na Nova Zelândia, corresponde ao estudo de casos práticos da jurisprudência local e inglesa sobre matérias de Direito Privado, com 20 créditos), Jurisprudence (equivalente a uma Teoria Geral do Direito, na qual se estudam temas como Direito Natural, Positivismo Jurídico, Realismo Jurídico, Sociologia do Direito, com 20 créditos) e Legal Ethics (deontologia jurídica voltada para as profissões 10 créditos). O aluno poderá escolher disciplinas jurídicas para cursar os 45 créditos restantes na parte 3 do currículo.

A parte 4 é composta de 110 créditos de disciplinas jurídicas eletivas e uma cadeira obrigatória de Prática Jurídica.

Na Universidade de Canterbury, a segunda melhor da Nova Zelândia, ao menos de acordo com o ranking QS, a estrutura curricular contempla oito disciplinas obrigatórias, 13 disciplinas jurídicas eletivas e 75 créditos mínimos por ano de disciplinas não jurídicas[6].

Antes que se façam comparações apressadas, é necessário destacar duas características peculiares dos cursos jurídicos neozelandeses, as quais definem essa correlação entre disciplinas obrigatórias e eletivas e entre as jurídicas e não jurídicas. Essa disposição interna da matriz não é sinônimo de superioridade, modernidade ou flexibilidade intrínseca do modelo da Nova Zelândia.

Em verdade, a primeira característica está na condição híbrida do modelo, que é fortemente influenciado pela Inglaterra e o País de Gales, mas que possui elementos típicos dos Estados Unidos. Disso decorre que o bacharelado em Direito (bachelor of Laws) é aberto para pessoas que cursaram ou desejam cursar outros bacharelados (Comércio, Artes ou Ciências), o que demanda uma maior abertura para disciplinas não jurídicas. Não se trata de uma preocupação com a interdisciplinaridade, mas com o aproveitamento das estruturas comuns dos diferentes bacharelados (mesmos professores, mesmas salas de aula) para receberem alunos de cursos de áreas diversas. Esse modelo seria, em um país com forte participação de instituições particulares no ensino superior, um paraíso para investidores privados, na medida em que poderiam colocar nas mesmas salas de aula os discentes de cursos superavitários com os de cursos deficitários (Direito, bem sabemos, estaria no primeiro grupo), economizando com pessoal e equipamentos.

A segunda característica está na existência de uma diretriz curricular nacional, diferentemente dos Estados Unidos e da Inglaterra, com uma quantidade muito reduzida de disciplinas obrigatórias, o que é resultado de uma fase de extrema desregulamentação do ensino superior, no final dos anos 1990, como já salientado. Essa distinção do modelo neozelandês torna difícil uma comparação qualitativa com o modelo brasileiro.

3. A pós-graduação em Direito na Nova Zelândia
Cada universidade define regras sobre o mestrado em Direito na Nova Zelândia. Na Universidade de Canterbury, o ingresso no mestrado depende dos seguintes requisitos: a) bacharelado em Direito ou equivalente, com boas notas; e b) comprovação do domínio da língua inglesa, especialmente para candidatos estrangeiros. Sua conclusão depende do cumprimento de três condições, de modo alternativo: a) cursar três disciplinas jurídicas; b) cursar duas disciplinas jurídicas e apresentar uma dissertação; e c) apresentar uma tese, o que implica dedicação integral às atividades de pesquisa. O mestrado poder durar dois anos, em regime de dedicação integral, ou quatro anos, em regime de tempo parcial[7].

Ainda em Canterbury, o doutorado exige a conclusão do mestrado ou que este se encontre em fase final de elaboração da dissertação. Os candidatos estrangeiros devem comprovar o domínio do idioma inglês. O doutorado em Direito corresponde ao título conhecido pela expressão doctor of philosophy (PhD), com o acréscimo na área jurídica na qual se fez a pesquisa. Nessa universidade, o doutorado tem duração de três a quatro anos, em regime de dedicação integral, período em que o aluno se insere em um grupo liderado por seu orientador[8].

O curso é dividido em “marcos”, que correspondem a etapas definidas, em geral semestrais, de evolução do trabalho do doutorando. O primeiro marco é de definição do orientador, do tema e do estabelecimento de um calendário de encontros com o orientador. Aqui também se definem os recursos necessários para financiar ou dar suporte à pesquisa. O segundo “marco” dá-se após seis meses. Nessa fase, o orientador dá seu placet aos elementos inicialmente apresentados e discute alguns elementos da pesquisa.

O terceiro “marco” é uma fase de confirmação do doutorado. O aluno apresenta um relatório escrito sobre a pesquisa, no qual detalha a evolução de sua pesquisa e informa quais serão os próximos passos. Faz-se uma apresentação oral dos resultados iniciais, o que ocorre após dois meses do início desse “marco”. O doutorando é avaliado por uma equipe. Após isso, o aluno poderá ser desligado do programa ou ter sua matrícula confirmada. Existe também a possibilidade de ser definido um reforço ao orientando, a fim de que ele supere dificuldades em seu trabalho de investigação.

O quarto “marco” compõe-se da apresentação do relatório que atesta o progresso do doutorando. Novamente, faz-se a avaliação do aluno, com aprovação pela autoridade competente e com as três possibilidades (desligamento, confirmação ou auxílio) do terceiro “marco”. 

O quinto “marco” é uma espécie de qualificação da tese. Os examinadores dão pareceres sobre o trabalho no estado em que ele se encontra. É possível que o aluno, de modo fundamentado, apresente alguma objeção aos examinadores indicados.

O sexto “marco” é a defesa da tese, que pode ocorrer com examinadores presenciais ou por videoconferência. Aprovado o candidato, ele está apto a receber o título de doutor.  

A pesquisa científica está primordialmente concentrada na universidade. A pós-graduação em Direito não é um caminho dos mais prestigiosos, salvo para quem pretenda seguir a carreira acadêmica. Diferentemente do Brasil, ostentar títulos de pós-graduação não é um sinônimo de prestígio para advogados ou juízes. À semelhança da Inglaterra e do País de Gales, ser um eminente juiz, em termos de representação social, é suficiente para o acatamento público de uma pessoa como um jurista respeitado.

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Na próxima semana, dar-se-á sequência à série sobre a Nova Zelândia.


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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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