Academia de Polícia

Autonomia da polícia judiciária é antídoto contra impunidade e corrupção  

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

19 de abril de 2016, 8h10

Spacca
Dúvidas não existem de que as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais qualificam-se como essenciais e exclusivas de Estado[1]. O delegado de polícia, ao conduzir a investigação criminal por meio dos vários procedimentos legais, de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, isenção e imparcialidade[2], exerce função de natureza jurídica[3] e contribui decisivamente para a consecução do dever estatal de garantia da segurança pública[4].

Deveras, a devida investigação criminal[5] traduz importante instrumento de tutela de direitos fundamentais, não só da vítima e das testemunhas, mas do próprio investigado. Materializa a via pavimentada a ser percorrida pelo Estado para que a atuação restritiva na esfera de liberdades públicas do cidadão não se convole em arbítrio[6].

A investigação policial, que deve ficar a salvo de ingerências indevidas, sob pena das penalidades administrativas, cíveis e criminais pertinentes[7], consiste em função essencial à Justiça, ainda que não figure no capítulo respectivo da Constituição[8].  

Sem desconhecer essas premissas, alertou o precursor do garantismo penal:

A polícia judiciária, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender[9].

Se essa atividade estatal é capaz de repercutir nos bens jurídicos mais caros ao cidadão, quais sejam, liberdade, patrimônio e intimidade, retirando o eu e suas circunstâncias[10],ao seu entorno deve ser concebido um escudo contra ingerências draconianas, em benefício da dignidade da pessoa humana.

O Legislativo não diverge ao afirmar que:

Para que a condução dos trabalhos de investigação possa ser realizada com a eficiência que a sociedade clama, faz-se necessária a garantia de autonomia na investigação criminal (…) Com tais medidas, a investigação ganhará em agilidade, qualidade e imparcialidade, pois o delegado de polícia não sofrerá interferências escusas na condução do inquérito policial ou do termo circunstanciado[11].

Nunca é demais realçar que o Estado deve garantir os meios para que o delegado de polícia não fique vulnerável a toda sorte de pressões políticas, sociais e econômicas[12]. O que se busca é o recrudescimento da garantia do cidadão de não ser investigado por influência política, social econômica ou de qualquer outra natureza. E o antídoto contra a excessiva vulnerabilidade da polícia judiciária e as odiosas intromissões é justamente a autonomia.

Autonomia pode ser entendida como a possibilidade de o ente se organizar sem que haja total dependência de terceiros, de modo a alocar cientificamente os recursos de que dispõe tendo como desiderato atingir sua missão constitucional[13].

Pode ser classificada da seguinte forma:

Administrativa: prerrogativa legal do administrador de disciplinar no plano interno as atividades legais através dos instrumentos normativos de auto-organização.

Funcional: confere a prerrogativa de dar cumprimento à lei e adotar as medidas necessárias para o exato desempenho de suas funções, não podendo sofrer influências, tanto no plano externo, quando no plano interno, do exercício de suas atribuições legais, sendo oponíveis inclusive contra outros órgãos e poderes públicos e políticos da federação.

Orçamentária: manifesta no pleno exercício das capacidades de iniciativa e elaboração de sua proposta de custeio dentro dos limites estabelecidos em lei[14].

Autonomia não se confunde com independência. Enquanto autonomia se refere à capacidade de autogerenciamento e de tomada de decisões sponte sua, independência consiste na realização de atividades sem qualquer tipo de auxílio[15].

Apesar de óbvio, convém sublinhar que autonomia não significa arbítrio, de modo que persiste a obrigação do delegado de polícia no sentido de esquadrinhar sua atuação dentro das balizas constitucionais e legais.

Também não implica descontrole da polícia judiciária, que continua sendo um dos órgãos públicos mais controlados, tanto pela fiscalização de sua atividade-fim levada a efeito pelo controle externo do Ministério Público, passando pelo controle judicial e chegando até o controle popular por qualquer do povo.

Tampouco cria obstáculos para o regular desenvolvimento da investigação criminal, mas sim a aperfeiçoa e a permite desenvolver-se melhor, mitigando sua feição inquisitória ao jogar luzes sobre o princípio da paridade de armas[16].

O benefício que a medida faculta à sociedade é imenso. É capaz de obstar o potencial de sufocamento da polícia judiciária pelo indevido contingenciamento político de verbas que busque atrapalhar esta ou aquela investigação[17].

A autonomia justifica-se sempre que houver necessidade de proteção de importantes atividades típicas de Estado. Daí sua concessão a Judiciário, Ministério Público e, mais recentemente, Defensoria Pública[18]. E, se não deve haver desprestígio contra qualquer das instituições que albergam as carreiras jurídicas, falta motivo para sustentar o tratamento diferenciado.

Também as autarquias especiais foram contempladas com autonomia, a exemplo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Agência Nacional de Telecomunicações e Agência Nacional de Aviação Civil, abrangendo inclusive a estabilidade dos dirigentes[19]. Ora, se essa proteção se faz necessária para órgãos de fiscalização administrativa, como maior razão é preciso estendê-la à instituição responsável pela investigação criminal, que repercute na esfera de bens jurídicos mais importantes para o cidadão.

Quando o artigo 144 da Constituição Federal outorgou a direção da polícia judiciária ao delegado de polícia, afastou de quaisquer outros agentes públicos ou particulares a possibilidade de dirigir a mesma instituição. A missão do chefe do Executivo e seus ministros e secretários é diversa, devendo se restringir à promoção da integração entre os organismos policiais e da implementação da política de segurança pública[20].

E não se diga que a autonomia do órgão policial violaria a cláusula pétrea de separação dos poderes. O sistema de freios e contrapesos não visa congelar os exatos delineamentos do arranjo estrutural definido pelo poder constituinte originário, sendo perfeitamente possível o ajuste aos desafios do contemporâneo Estado de Direito[21]. Em outros termos, é plenamente admissível a reengenharia institucional pontual do Estado brasileiro, com vistas a dar maior efetividade à atuação da polícia judiciária. Sem representar subtração desmesurada de atribuições e poderes do Executivo, constitui importante medida para a concretização de objetivos constitucionais fundamentais.

Importante grifar que a pretendida autonomia não seria inédita, encontrando paralelos em outras partes do mundo (guardadas as devidas peculiaridades), a exemplo de Portugal, Inglaterra e Estados Unidos[22].

Lamúrias corporativistas e com objetivo de concentração de poder não convencem, tais como as famigeradas notas técnicas oriundas do Ministério Público Federal. A parte acusadora centraliza o debate em argumentos ad terrorem. Sustenta que a polícia representa o emprego da violência estatal no seio da sociedade e que não se pode conferir autonomia a um braço armado do Estado.

Incorre no elementar erro de agrupar em suposto ente único (polícia) instituições com atribuições constitucionais totalmente distintas. Equipara a polícia judiciária, órgão policial civil com missão investigativa (artigo 144, parágrafos 1º e 4º da CF), aos órgãos militares de função de defesa da pátria (artigo 142 da CF) e de policiamento ostensivo (artigo 144, parágrafo 5º da CF). Vingasse esse tipo de falácia, o Judiciário ou o próprio Ministério Público não poderiam ter autonomia, porquanto também são instituições armadas, na medida em que seus membros possuem autorização para o porte de arma de fogo, inclusive de uso restrito[23]. De mais a mais, incute a falsa impressão de uso indiscriminado e ilegítimo da força pela polícia contra a população.

O desejo minoritário de enfraquecer, por meio de um discurso totalitarista[24] um órgão republicano como a polícia judiciária não pode prevalecer ante o legítimo interesse do cidadão de ser investigado somente por um órgão imparcial, desvinculado da acusação e da defesa. É essa instituição que representa uma das últimas trincheiras contra a corrupção que assola o Brasil desde sua formação.

Essa questão não pode ser tratada de maneira inconsequente, porque da adequada organização e efetiva institucionalização da polícia judiciária depende a garantia de direitos fundamentais de milhões de pessoas, sejam vítimas ou investigados, que têm o direito inalienável de participar de uma persecução penal imparcial.

Somente com um arcabouço institucional adequado é que se pode evitar a inanição administrativa da polícia federal e das polícias civis, impedindo seu definhamento e o enfraquecimento da carta constitucional de liberdades.

Nesse contexto, não é exagero aduzir que o fortalecimento da Polícia Federal e das polícias civis sobressai-se como interesse público primário da sociedade. Sua autonomia materializa o escudo protetivo contra interferências indevidas de setores obscuros da sociedade brasileira, permitindo o atingimento do equilíbrio entre as demandas sociais e a capacidade de resposta institucional.

Sem essas garantias, a instituição tende a ser sistematicamente negligenciada nas escolhas do Poder Executivo. Aliás, essa insuficiência de recursos materiais e humanos pode ser constatada mediante simples visita à grande maioria das delegacias de polícia do país.

Negar autonomia à instituição predestinada à investigação criminal significa abandonar a polícia judiciária à própria sorte, e ao mesmo tempo frustrar a legítima expectativa do povo de combate à corrupção e às demais espécies de criminalidade.

Como bem explica a doutrina:

A ausência de autonomia dificulta a correta aplicação da lei e impede o legítimo desenvolvimento das atividades de polícia judiciária, com o perigo de transformá-la em um instrumento a serviço dos detentores do poder, incapacitando-a do pleno exercício de suas funções constitucionalmente atribuídas (…) É importante e fundamental deixar claro que não se trata da utilização da autonomia para a obtenção de vantagens corporativistas, mas sim, na proteção institucional, com o objetivo de afastar a incapacitação para o exercício funcional de atribuições legalmente instituídas, por meio de medidas inviabilizadoras do normal exercício das tarefas institucional manifesta no contingenciamento[25].

Apesar de o debate sobre a autonomia ter ganhado maior repercussão no âmbito da Polícia Federal[26], o fato é que não devem ser economizados esforços para que a mesma solução seja implementada nas Polícias Civis, que possuem a mesma qualidade.

A sociedade não se convence mais com o discurso vazio de prioridade para as ações de segurança, dissociado de efetivas ações governamentais de investimentos na Polícia Judiciária. Nessa vereda, a autonomia encarna a justa esperança de prevenção dos problemas advindos das intempéries do poder e do capricho dos governantes, transparecendo a real natureza da Polícia Judiciária como órgão de Estado, e não de governo.


[1] Art. 2, caput da Lei 12.830/13 e art. 2º-A da Lei 9.266/96.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.
[3] STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.
[4] Art. 2º, §1º da Lei 12.830/13 e art. 144, §§1º e 4º da CF.
[5] Segundo Francisco Sannini Neto, a devida investigação criminal constitucional traduz o modelo de investigação de atribuição de um órgão oficial do Estado, com previsão legal e constitucional, imparcial e desvinculado do processo posterior (Inquérito policial e prisões provisórias. São Paulo: Ideias & Letras, 2014, p. 57).
[6] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Inquérito policial é indispensável na persecução penal. Revista Consultor Jurídico, dez. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial-indispensavel-persecucao-penal>. Acesso em: 01 dez. 2015.
[7] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. 21/10/2008. Disponível em: http://www.lfg.com.br
[8] NICOLITT, André, Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 73.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: RT, 2002, p. 617.
[10] Expressão de Ortega y Gasset citada por LOPES JÚNIOR, Aury, Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 407.
[11] Justificativa ao Projeto de Lei 132/12 (convertido na Lei 12.830/13), dep. Arnaldo Faria de Sá, DP 21/12/2012.
[12] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciari.a-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 14 jul. 2015.
[13] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria geral do Direito Policial. 3. ed. Lisboa: Almedina, 2012, p. 104.
[14] WERNER, Guilherme Cunha. Isenção política na Polícia Federal: a autonomia em suas dimensões administrativa, funcional e orçamentária. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 17-63, jul/dez 2015.
[15] SOUSA, Stenio Santos. Autonomia e eficiência da Polícia Judiciária da União: vetores interdependentes e equipolentes para a concreção constitucional da Polícia Federal. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 161-190, jul/dez 2015.
[16] PEREIRA, Eliomar da Silva. Autonomia da Polícia Judiciária: a discussão sobre a PEC 412/2009. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 65-76, jul/dez 2015.
[17] SOUSA, Stenio Santos. Autonomia e eficiência da Polícia Judiciária da União: vetores interdependentes e equipolentes para a concreção constitucional da Polícia Federal. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 161-190, jul/dez 2015.
[18] Emenda Constitucional 80/14.
[19] Lei 9.782/99, Lei 9.472/97 e Lei 11.182/05, respectivamente.
[20] RIOS, Christian Robert dos. A autonomia da Polícia Judiciária. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 01 abr. 2016. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=64733_Christian_Rios&ver=2382>. Acesso em: 18 abr. 2016.
[21] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 306.
[22] SOUSA, Stenio Santos. Autonomia e eficiência da Polícia Judiciária da União: vetores interdependentes e equipolentes para a concreção constitucional da Polícia Federal. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 161-190, jul/dez 2015.
[23] Pelas regras atuais (Portaria 209/14 do Exército), podem os membros do Judiciário e Ministério Público adquirir, para uso particular, 2 armas de fogo de uso restrito, de qualquer modelo, abrangendo até mesmo o calibre 9 mm. 
[24] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 395.
[25] WERNER, Guilherme Cunha. Isenção política na Polícia Federal: a autonomia em suas dimensões administrativa, funcional e orçamentária. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 17-63, jul/dez 2015.
[26] Discussão capitaneada pela PEC 412/09 e PEC 381/2009.

*Texto atualizado às 13h00 desta terça-feira (19/4).

Autores

  • Brave

    é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar. Redes sociais: Facebook, Twitter, Periscope e Instagram

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