Opinião

Imunidade parlamentar material no Congresso tem limites no decoro

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18 de abril de 2016, 6h00

Não parece haver dúvidas de que o país vivencia tempos de polarização política, exacerbação da crítica político-partidária e exaltação de ânimos. O professor Bernhard Leubolt, da Universidade de Economia de Viena, observou que, desde as eleições presidenciais brasileiras de 2014, a polarização política passou a fazer parte do dia a dia das pessoas, e não mais só da política[i]. Nesse contexto, calha analisar a questão relativa à chamada imunidade parlamentar material, ou freedom of speech.

A liberdade de palavras deita raízes no Bill of Rights, de 1689, que declarou “que os discursos pronunciados nos debates do Parlamento não devem ser examinados senão por ele mesmo, e não em outro Tribunal ou sítio algum”. A Constituição dos Estados Unidos da América, em seu artigo I, Seção 6, também a consagra, ao prever que os Senadores e Representantes, fora do recinto das Câmaras, não terão obrigação de responder a interpelações acerca de seus discursos ou debates.

Entre nós, a Constituição Política do Império já positivava, em seu artigo 26, que “os membros de cada uma das câmaras são inviolaveis polas opiniões, que proferirem no exercicio das suas funcções”. As Cartas seguintes mantiveram a inviolabilidade, embora a Emenda Constitucional 1/1969 tenha excepcionado os casos de “injúria, difamação ou calúnia”, ou os “previstos na Lei de Segurança Nacional”, reduzindo sensivelmente, com isso, o alcance da imunidade.

A Constituição de 1988, no artigo 53, garante que “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. A redação foi dada pela Emenda Constitucional 35/2001 pois, no texto original, a ausência de menção expressa à inviolabilidade civil causava controvérsias doutrinárias.

De acordo com Nelson Nery Costa, “trata-se de instrumento que permite que o parlamentar tenha liberdade de pensamento e, se for de oposição, exercem pelo menos o direito de crítica. Caso este seja evitado, então não haverá mais soberania”[ii].

Em acréscimo, vale destacar que o instituto se refere ao Congresso Nacional, de maneira que não se mostra correta a sua leitura como privilégio ou prerrogativa. Como explicam Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Dierle Nunes, a jurisprudência e a doutrina nos Estados Unidos já firmaram que “a freedom of speach (imunidade material) refere-se apenas às opiniões e debates realizados dentro do recinto do Parlamento”[iii].

Aí já se afigura a finalidade da instituto, que “visa a garantir a independência do Poder Legislativo”, preservando o mandato representativo dos parlamentares da interferência, influência ou pressão dos demais poderes. É por isso que a imunidade alcança os parlamentares apenas quando “estejam exercendo o mandato legislativo (prática in officio) ou quando atuarem em razão do mandato (prática propter officium)”[iv].

Ocorre que nem sempre são claras as fronteiras do exercício do mandato e da atuação em razão do mandato. Diversas manifestações de membros do Congresso são levadas ao Supremo Tribunal Federal para que se aprecie a conexão das declarações com o mandato. Pode-se até dizer que temos uma jurisprudência voltada ao Estatuto do Congressista.

Nessa toada, o principal critério de conexão diz respeito à diferenciação entre as manifestações exaradas no recinto do Congresso e aquelas proferidas externa corporis. O STF decidiu que “a ofensa irrogada em plenário, independente de conexão com o mandato, elide a responsabilidade civil por dano moral. Precedente: RE 210.917, 12.8.92, Pertence, RTJ 177/1375” (RE 463671 AgR, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 19/06/2007, DJe 03-08-2007). Já quando a declaração é feita fora do Parlamento, deve ser investigado se a declaração guarda conexão com o exercício do mandato ou com a condição de parlamentar. Assim, por exemplo, não incide a imunidade material quando o parlamentar faz declarações em programa de televisão sem conexão com o exercício do mandato (Inq 2.390, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2007, DJe 30-11-2007).

Essa distinção restou bem delineada no Inq 1.958, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2003, DJ 18-02-2005, oportunidade em que se registrou que “para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa”.

Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco confirmam o uso, pelo STF, desse distinguishing: “Se a manifestação oral ocorre no recinto parlamentar, a jurisprudência atual dá como assentada a existência da imunidade. Se as palavras são proferidas fora do Congresso, haverá a necessidade de se perquirir o seu vínculo com a atividade de representação política”[v].

Mas, e se as declarações ofensivas irrogadas no recinto congressual se espraiam para outros palcos? Recentemente, o Pretório Excelso rejeitou queixa-crime (Inq 4.177) proposta por Deputado Federal contra outro Deputado Federal por calúnia, injúria e difamação durante debate em sessão da Câmara ocorrida em 28 de outubro de 2015. O detalhe é que as acusações foram ratificadas nas redes sociais. Mas, quanto à divulgação das declarações em rede social e na mídia, o relator, ministro Edson Fachin, acatou as razões do parecer da Procuradoria-Geral da República no sentido de que tal situação se revelava “mera repercussão do fato no meio social”.

Pois bem, se a declaração se dá dentro do Parlamento, ou se reflete manifestação exarada internamente, o entendimento dominante é o de que incide a imunidade parlamentar material. Como, então, conciliar a imunidade com a exigência de observância do decoro parlamentar? Desde logo, registre-se que a Constituição da República prescreve que perderá o mandato o deputado ou senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar, e que é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas (artigo 55, II e §1º).

No que se refere ao tema ora debatido, o artigo 5º, III do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados prescreve que atenta contra o decoro parlamentar “praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara dos Deputados ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão ou os respectivos Presidentes”. O Código de Ética e Decoro Parlamentar do Senado prevê que cabe censura escrita ao Senador que “usar, em discurso ou proposição, de expressões atentatórias ao decoro parlamentar” ou “praticar ofensas físicas ou morais a qualquer pessoa, no edifício do Senado, ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão, ou os respectivos Presidentes” (artigo 9º, §2º, I e II). A reincidência leva à perda temporária do mandato (artigo 10, I).

A questão que se apresenta, nesse passo, é a seguinte: pode a Casa Legislativa punir o parlamentar por manifestação oral externada no recinto congressual, sem que isso represente violação à imunidade material positivada pelo artigo 53 da Lei Maior?

As ofensas a terceiros e também entre parlamentares, proferidas dentro do Congresso, não são raras. Os discursos pronunciados na sessão do Plenário da Câmara que discute a admissibilidade do impeachment da presidente da República dão uma boa mostra disso. “Ofensas morais” não faltaram. “Desacatos por palavras” também se verificaram.

Uma possível resposta, ainda que sem pretensões de fechamento da questão, vai no sentido de que sim, é possível que o parlamentar sofra as punições regimentais por suas manifestações orais ou escritas, ainda que externadas nas dependências da Câmara ou do Senado. Isso porque a imunidade material diz respeito ao âmbito civil e penal. Já a sanção por ato contrário ao decoro parlamentar é de natureza política (ou administrativo-parlamentar, na terminologia adotada no julgamento, pelo STF, do MS 25.917, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 01/06/2006, DJ 01-09-2006). A própria Constituição, como visto, prevê a perda do mandato do deputado ou senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar, nos casos previstos no Regimento Interno.

Essa solução parece ser albergada pelo STF, como se denota do seguinte trecho de ementa de recente julgamento:

(…) 2. As manifestações do parlamentar possuem nexo de casualidade com a atividade legislativa. 3. A imunidade cível e penal do parlamentar federal tem por objetivo viabilizar o pleno exercício do mandato. 4. O excesso de linguagem pode configurar, em tese, quebra de decoro, a ensejar o controle político 5. Não incide, na hipótese, a tutela penal, configurando-se a atipicidade da conduta. Precedentes. Queixa-crime rejeitada (Pet 5.647, Relator(a): Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 22/09/2015, DJe 26-11-2015).

Assim, temos que os parlamentares possuem imunidade material para que exerçam seu mandato livres de pressões externas. Todavia, suas opiniões, palavras e votos têm o conteúdo limitado pelas exigências de decoro parlamentar, nos termos do Regimento Interno. A inviolabilidade do artigo 53 da Constituição não impede que a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal decida, interna corporis, sobre a sanção ao parlamentar, observado o §2º do artigo 55 da Lei Maior, nas hipóteses em que a manifestação se mostrar incompatível com o decoro parlamentar.


ii COSTA, Nelson Nery. Constituição Federal anotada e explicada. 5.ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

iii STRECK, Lenio L; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; NUNES, Dierle. Comentário ao artigo 53. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; ________ (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

ivIbidem.

v MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

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