Opinião

Não podemos nos distrair com maniqueísmos; temos um país a resgatar

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17 de abril de 2016, 10h33

É sempre bom dar uma olhada no que diz a imprensa estrangeira sobre nós, especialmente nos momentos de crise e na véspera de acontecimentos históricos como é, sem dúvida, a votação do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

As densas análises do francês Le Monde, que tradicionalmente dá mais peso às opiniões de esquerda, sempre me alimentaram, desde os longínquos tempos de Sciences-Po, embora eu seja também leitor do conservador Le Figaro.

A edição desse fim de semana do Le Monde traz o Brasil na capa: "Debates: É preciso destituir Dilma Rousseff? Os deputados se pronunciam, no domingo 17 de abril, sobre o processo de destituição da presidente brasileira. Como reformar uma democracia enredada em escândalos?"

Metade da página 22 é emprestada ao MD 18, que se apresenta como um coletivo de brasileiros que moram na França e na Europa e que se opõem ao golpe e defendem a democracia no Brasil. Seu site não esconde sua posição afinada com o atual governo e seus argumentos a respeito do suposto "golpe".

A afirmação inicial de que Lula e Dilma deram à polícia e à justiça os meios de investigar a corrupção, fenômeno que envolve todos os partidos políticos, e que agora os faz vítimas da revanche de pessoas opostas às reformas sociais, é nitidamente enviesada.

Quem acredita em democracia tem que dar crédito às instituições. O máximo que se pode dizer dos governos do PT é que, mesmo fortemente atingidos pelas investigações de corrupção, não lograram impedir a marcha das apurações conduzidas por órgãos autônomos e independentes, como o são a polícia e a justiça.

A corrupção existe mesmo, diz o manifesto, a começar por Eduardo Cunha. Ninguém duvida de que ela se espalha por muitos partidos. Mas a revolta, segundo o coletivo, não é apenas contra a corrupção: os favorecidos desejariam derrubar as reformas sociais trazidas pelo PT.

O fim da novela, prosseguem, acontece no fim de semana, direto na Globo: "Convencidos de que o jogo central dessa novela é a desestabilização da democracia brasileira e que isso significa a fragilização da democracia em escala mundial, os membros do MD 18, que assinam essa tribuna, assumem seu lugar nessa batalha da informação, por um debate sereno, construtivo, no qual a ficção não deve prevalecer sobre a realidade".

Aplausos para a frase final, apesar das premissas no mínimo controvertidas. O que todos desejamos é exatamente "um debate sereno, construtivo, no qual a ficção não deve prevalecer sobre a realidade".

Além de dar voz a esse grupo, o Le Monde traz charge assinada por Serguei, uma dama sentada numa poltrona apoiada no "o" da palavra "democracia" e esse círculo sendo cortado por um serrote. Uma piscadela para a esquerda.

Na outra metade da página, porém, um ponto de vista analítico, no artigo de Frédéric Louault: "O Partido dos Trabalhadores devorado por um sistema político kafkiano. A presidente Dilma Rousseff é vítima de instituições políticas superadas que seu partido, no poder desde 2003, não soube reformar".

A questão central, diz o artigo, é saber se o Brasil enfrenta uma degradação democrática acelerada. Os dois campos em disputa sustentam agir para preservar as conquistas democráticas. Na prática, ninguém parece realmente se preocupar com a qualidade da democracia. As manobras políticas mascaram mal estratégias destinadas a servir principalmente a interesses individuais.

Seria uma simplificação indevida apresentar a democracia brasileira como um navio à deriva: "Pode-se mesmo ver nos acontecimentos de março vários sinais de maturidade democrática: respeito da liberdade de expressão; manifestações não violentas e não reprimidas pelo poder; fortalecimento das instituições judiciárias; diminuição do sentimento de impunidade dos dirigentes. Mais do que uma degradação, o que o Brasil vive atualmente é um teste de democracia".

Depois de analisar os últimos anos de política brasileira, o professor de ciência política em Bruxelas conclui: "O sistema pelo qual o PT se deixou corromper desde 2003, e que Rousseff não soube reformar em 2013, agora está a ponto de devorar a esquerda que governa o Brasil". Termina com uma expressão de efeito, difícil de traduzir em sua rima: "Sans coup d'Etat ni coup d'éclat". Sem golpe, nem brilho.

A terceira matéria indaga se a "lava jato" pode levar a um berlusconismo brasileiro: "Já existe um 'Berlusconi brasileiro' nos bastidores? O ambiente deletério do Brasil poderia ajudá-lo a emergir."

Os brasileiros percebem que nenhum dos adversários da presidente ameaçada seria recomendável. Um panorama aflitivo, propício aos conservadores evangélicos e às bancadas da bíblia, do boi e da bala.

Nascerá do caos, perguntam Claire Gatinois e Philippe Ridet, um magnata, defensor dos poderosos, que faça votar na surdina leis que travem a "lava jato"? Será que a operação não foi senão um parênteses que deixa os brasileiros enojados com a classe política? Na Itália, após a Mani Pulite, os partidos não recobraram sua credibilidade.

Como se vê, as perplexidades espelhadas no Le Monde desse fim de semana são também as nossas. Bem ou mal, estão colocadas as questão em jogo, que vão muito além de uma disputa de torcidas.

A quantas anda nossa democracia? Qual a força de nossas instituições? Vai vingar o impeachment? E depois, o que vai acontecer? Prossegue o combate à corrupção? Há esperança de um país melhor?

Todas essas questões começam a ser respondidas na Câmara dos Deputados, neste domingo (17/4). Qualquer que seja a solução, temos um longo caminho pela frente e não podemos nos distrair com maniqueísmos infantis. Temos um país a resgatar.

(Le Monde, edição divulgada no sábado, com data de domingo 17 e segunda 18 de abril de 2016.

Autores

  • é advogado e professor associado da FGV Direito Rio. Foi juiz do Tribunal Regional Eleitoral e secretário de Justiça e de Segurança em São Paulo.

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