Diário de Classe

O processo de impeachment e o paradoxo de um jogo sem vencedores

Autor

16 de abril de 2016, 8h00

Spacca
No filme Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, uma comédia com ácido humor negro, retrata-se uma paranoia coletiva da época da Guerra Fria representada pela constante e premente possibilidade de um ataque nuclear desferido por uma das potências envolvidas nesse conflito, que já foi chamado, com alguma dose de eufemismo, de “psicológico”. Nele, um general do Exército estadunidense dá início, por conta própria, a um plano de ataque à União Soviética por estar convencido — com certo ar de loucura — de que os soviéticos estavam envenenando aos poucos a água dos americanos, sem que o governo percebesse e tomasse alguma medida contra isso. Em uma reunião de emergência em Washington, o gabinete presidencial recebe a notícia do ataque, e logo se instala o caos: o serviço secreto havia recentemente descoberto que a União Soviética teria desenvolvido a doomsday machine, um dispositivo que responde automaticamente a um ataque nuclear sem a possibilidade de ser interrompido pela ação humana. A ideia por trás de tal artefato seria causar a destruição total, evitando, assim, a existência de vencedores. Numa de suas falas, dr. Strangelove, um ex-cientista nazista recrutado pelo governo estadunidense depois do final da Segunda Guerra (brilhantemente interpretado por Peter Sellers), afirma que a eficácia da doomsday machine revelar-se-ia precisamente pelo temor psíquico causado nos inimigos em face da impossibilidade de “desligamento” depois de iniciado o processo: um gigante computador, de localização desconhecida, controlaria tudo remotamente, sem a opção de um botão off.

Lembrei-me desse filme porque, pouco antes de começar a escrever esta coluna, recebi uma charge enviada por um amigo que retratava, ao fundo, Brasília destruída, com um “cogumelo” nuclear emergindo das ruínas do que antes seria o Congresso Nacional, e, no primeiro plano da imagem, uma barata dizia a um senhor de óculos trajando terno azul marinho: “Parece que só sobrou a gente. Né, Eduardo?”.

Pensei, então, comigo: mas haverá vencedores após essa hecatombe política que estamos vivenciando? Do ponto de vista pragmático, tudo está a indicar que — independentemente do resultado —, qualquer que seja o governo depois que a bomba explodir, terá dificuldades para construir “pontes para o futuro”. Parece-me um erro comparar a situação atual àquela do governo Itamar, que, depois do impeachment de Collor, tinha, de algum modo, condições favoráveis para construir seu projeto político. O governo que se seguir ao processo de impeachment em curso não terá condições políticas favoráveis: Dilma, caso vença, continuará a mendigar migalhas de apoio parlamentar para levar adiante suas reformas; um eventual governo Temer terá que se ajustar com um Congresso entrincheirado pela operação “lava jato” que, mais além dos nobres interesses ligados à (re)colocação do país nos trilhos, pode também estar a esperar do novo presidente certo alento com relação às investigações, algo que aumentará significativamente os riscos de erosão da coalizão formada para viabilizar o governo.

Por certo, é possível perceber um certo sentimento difuso que parece instalar nas pessoas um ar de esperança no caso de destituição da presidente e da instalação de um novo governo. Todavia, permaneço relutante quanto a embriagar-me por esse tipo de sensação. Entre outras coisas, porque minha intuição a considera “delegativa” demais: de algum modo, ela continua a professar um mal-entendido derivado de um imaginário, próprio das repúblicas presidencialistas, de que a queda ou a condução de um novo presidente possa representar soluções a curto prazo para os problemas nacionais. O governo é muito mais do que o gabinete do(a) presidente da República. Há sempre o imponderável representado por um Congresso composto de dezenas de partidos, com parca unidade ideológica e sem muita preocupação com o desenvolvimento de uma ação institucional sólida. Um congressista, no Brasil, ainda se parece muito com a figura pintada por Machado de Assis em seu Memórias Póstumas de Brás Cubas. Veja-se, nesse sentido, o discurso do deputado Brás Cubas sobre o tamanho das barretinas da Guarda Nacional e, mutatis mutandis, ter-se-á, ainda hoje, uma boa descrição do que seja entre nós a ação política de boa parte de nossos deputados e senadores.

Por isso, manifesto mais uma vez a opinião de que, academicamente, é preciso equilíbrio para analisar a situação, na perspectiva de evitar partidarização de opiniões que são simbolicamente guarnecidas pela cátedra ou pela expertise daquele que as exprime. Nesse sentido, do mesmo modo que é preciso manter uma atitude de desconfiança com relação àqueles que, a exemplo dos próprios subscritores da notitia criminis apresentada à Câmara, querem imputar à presidente toda uma gama de condutas que extrapolam, nalguns casos, o próprio limite do mandato; também é o caso de filtrar posições que juridicizam em demasia um procedimento que tem, necessariamente, alguma dimensão política. Evidentemente, devemos discutir, juridicamente, se há ou não a prática do crime de responsabilidade. Nenhum processo pode ser instalado sem que haja, pelo menos, indícios desses. Porém, há um componente político que aparece nas estritas hipóteses de incapacidade absoluta do presidente para conquistar apoio congressual mínimo.

Por certo que, num sistema presidencialista de governo, o presidente eleito tem garantias constitucionais de que, observada a normalidade institucional e os princípios constitucionais, seu governo será preservado até o final do mandato assinalado pela Constituição. O sistema constitucional garante, ainda, que, mesmo havendo a instalação do processo de impeachment, o presidente só perderá o cargo se uma maioria qualificada de 2/3 da Câmara dos Deputados aceitar a acusação, e uma outra maioria qualificada, agora 2/3 do Senado, entender que é caso de decretar a perda do cargo. Ou seja, há aqui um controle contramajoritário: não é qualquer maioria eventual formada em torno de um factoide conspiratório que pode retirar do cargo um presidente eleito. Por outro lado, a mesma regra exige que o presidente consiga manter o apoio de, pelo menos, 1/3 de uma das Casas. Veja-se que, com esse nível de apoio congressual, um presidente teria dificuldades enormes para fazer aprovar uma simples lei ordinária. Ainda assim, a Constituição admite que um presidente permaneça no exercício do cargo, caso consiga repelir a acusação com essa base mínima de apoio congressual. Na hipótese contrária, parece-me difícil sustentar um governo que não consiga reunir em torno de si essa base mínima para defendê-lo de eventuais acusações de violação da Constituição e da Lei 1.079/1951.  

De todo modo, o clima de doomsday machine, instalado entre nós, torna os ares propícios para todo tipo de propostas que, se prosperarem, nos levarão mesmo a uma hecatombe institucional. Note-se que, nesse sentido, ainda temos uma comissão instalada no Senado para levar adiante uma proposta de emenda à Constituição que institua no Brasil um sistema semipresidencialista de governo. A política brasileira tem certa tradição no sentido de tentar resolver graves crises institucionais criando regras ad hoc, em vez de enfrentá-la dentro dos mecanismos institucionais postos pela Constituição. Essa proposta, além de ser uma afronta ao regime constitucional em vigor, representa, também, um olhar míope para os dilemas de nosso sistema político: com um modelo partidário como o nosso, um regime parlamentarista — ainda que temperado — seria catastrófico. Qual a possibilidade de um governo durar mais que um ou dois meses com a dificuldade que sabemos existir para se firmar e manter acordos parlamentares?

Espero que não tenhamos que experimentar tal estado de coisas para perceber que esse arranjo jamais daria certo. Melhor mesmo é, ainda que a duras penas, preservemos a institucionalidade da Constituição de 1988. E, até aqui, ela continua intacta.   

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!