Senso Incomum

Pai, por que eu devo obedecer a norma que diz que Cunha pode tudo?

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14 de abril de 2016, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Kelsen versus Cunha?
Em meus seminários, quando entro no tema “Kelsen” uso o seguinte exemplo: se existe uma regra jurídica que diz que é proibido atender ao celular em sala de aula, a primeira coisa que alguém da área jurídica perguntará é: — qual é o fundamento de validade dessa norma que estabelece que… E irá escalonadamente até a Constituição. E depois? Pois ao perguntar sobre o fundamento da Constituição, isto é, por que devemos obedecer a CF ou perguntar acerca de um ato jurídico que determinasse “que devemos obedecer a CF” — problemática que nos levaria ao infinito — a resposta que Kelsen dá é: há uma norma fundamental hipotético-dedutiva (Warat a chamou de NF Gnosiológica), que pode ser lida assim: pressuponha-se que devemos obedecer a CF. Mais tarde, na obra póstuma (Teoria Geral das Normas), isso se transforma em uma ficção a partir da filosofia do “als ob” (como se), de Hans Vaihinger. A NF é uma ficção necessariamente útil. Isto é: é como se existisse uma norma que nos mandasse obedecer…

Também podemos brincar com isso de outro modo: o menino chega em casa e diz: pai, não sou mais amigo de Hans. E o pai: você deve ser amigo de Hans e com ele não brigar. O menino: — pai, qual é o fundamento de validade dessa norma que diz que… Pai: — porque Jesus disse: amai-vos uns aos outros. Filho: — pai, qual é o fundamento… Pai: — porque Deus… E o filho: — pai, qual é fundamento de validade dessa norma que diz que… O pai tem duas opções: dá uma porrada (a NF é força, é ditadura) ou diz que pressuponha-se que, como bom cristão, devemos obedecer aos mandamentos de Deus…

Conto isso para fazer uma alegoria com o que acontece hoje em Pindorama. Duas questões. A) como é possível que Eduardo Cunha faça tudo o que faz e ninguém o impeça?; B) como é possível que a comunidade jurídica aceite passivamente — quando não concorda explicitamente — com a fragilização do Direito?; C) como a imprensa e parte da comunidade jurídica (para falar só desta) convive com isso, fazendo apenas um “olhar externo” ao problema? Vou procurar explicar isso com Kelsen.

Com efeito. Vários cientistas da Galáxia Pindoramensis — que congrega vários planetas e astros como “Renansis”, “Temeris”, “Octopus”, “Supremus” (é um conjunto de onze estrelas isoladas que não se comunicam com o resto do universo), “Dilmae”, “Planeta Morus”, “Janotos”, “Jovai-Iris” e até um cometinha chamado “janainicas”, habitado por cobras e lagartos, além dos cometas Bicudus e Realis — resolveram (os cientistas) viajar até a terra, mais especificamente, para Pindorama, com o fito de estudar Eduardo Cunha e seu modo de agir, sentir e influenciar corações e mentes. Não se falava de outra coisa na Galáxia.

Todos estavam impressionados com o terráqueo Cunha, que, réu de ação penal, pintava e bordava (é uma alegoria — não deve ser pego ao pé da letra, até porque letra não tem pé), estabelecendo rito do impeachment, fazendo seções extras, empurrando os deputados madrugada adentro, além de levar no beiço (também é uma figura de linguagem) seu próprio processo na Comissão de Ética da Câmara já há quatro meses. Os extraterrestres queriam saber por que é mais fácil impichar um presidente do que cassar um deputado. Os cientistas extraterrestres também queriam saber por que, com um milhão de advogados, milhares de doutrinadores e mais de cem programas de mestrado e doutorado (além de centenas de doutores que estudam no exterior com bolsa da Viúva), a moral e a política valiam mais que o Direito e por qual razão toda essa gente (ou a maior parte dela) aceitava isso? Havia, pois, um estupor.

A primeira coisa que os cientistas extraterrestres fizeram foi criar a disciplina cunhalogia.[1] Com isso, tinham de estabelecer o objeto da disciplina, enfim, o campo temático. A primeira pergunta que se fizeram e responderam foi: o que é “Cunha”? Como identificar um fenômeno no sentido “cunhal” da palavra? Para isso, contaram com alguns critérios que distinguissem Cunha de outros parlamentares, critérios que identificassem o modus operandi “tipo Cunha” e detalhes como “se elegeu por várias legislaturas, fez uma carreira meteórica e constituiu uma bancada cunhal”. Feitas essas definições, os cientistas puderam identificar o fenômeno. Podiam identificar o que era Cunha. E o que não era. E como se faz isso? Como evitar perguntas como “qual é fundamento do fundamento do fundamento”?

Kelsenianamente, os cientistas criaram uma “norma pensada, pressuposta”. Pronto: a Norma-Cunha Fundamental (NFC), que traça o perfil de um Cunha imaginário, fruto do pensamento dos cientistas. Criada essa NCF, poder-se-ia identificar quem se enquadrava nesse conceito (nessa moldura). Ou seja: Partindo de um Cunha imaginário, os cientistas passaram a ter condições para avaliar quais são os seguidores de Cunha que se enquadram nesse conceito moldural. Concluíram que Cunha, nessa construção epistêmica, era o modelo-ideal-de-parlamentar-pragmaticista. Para ser fiel a Kelsen: O que interessa é o “campo temático que identifica o que é cunhal e o que não é”. É um critério fictício de sentido, uma condição imaginária de significação, complementaria Warat.

Portanto, com isso, passou a ser fácil identificar o que é uma “norma identificada com o critério cunhal de significação”. Não há nesse ato nenhum critério moral ou ético ou político de dar significado. Apenas se diz se determinado ato ou conduta está ou não dentro da norma fundamental, quer dizer, daquilo que os extraterrestres chamaram de NCF (Norma-Cunha Fundamental).

Com isso, fica fácil separar o discurso sobre Cunha do discurso acerca do que Cunha realmente faz. Graças a isso, os jornalistas e congêneres conseguem “descrever” o fenômeno sem criticar ou se indignarem. Isso explica o comportamento dos meios de comunicação. Por exemplo, Merval e os demais “cientistas” conseguem fazer uma análise externa do fenômeno. Uma espécie de análise não-cognitivista moral. Descomprometida com o que, de fato, ocorre na vida do Congresso Nacional e no sistema de administração da justiça do país Pindorama. Pior (ou melhor): sob pretexto de estarem fazendo a análise externa, podem ideologizar à vontade (esse é o furo da Teoria Pura do Direito). Mutatis, mutandis, é como faz a dogmática jurídica: sob pretexto de descrever o direito, ideologiza até os embargos de declaração. Mas todos — juristas, jornalistas e jornaleiros — são “democratas”.

É maravilhoso. O analista faz uma metalinguagem sobre a linguagem objeto. Não importa o que se decide no universo administrado por Cunha e seus iguais. Não importa que Cunha diga que definirá (veja-se: Cunha faz norma, como o juiz em Kelsen!) como será a votação do impeachment apenas quando ele, Cunha, quiser. Isso é o que Kelsen chamou de “política jurídica. In verbis, no original da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre):. “ist kein rechtstheoretisches, sondern ein rechtspolitisches problem.” Isto é: ele está dizendo que a pergunta sobre a correção de uma norma caber (ou não) na moldura não é um problema da teoria do direito mas, sim, um problema de política jurídica. Para apreendermos o que Kelsen ensinou, eis aí uma pista: a diferença entre ciência do direito e direito. Entre descrever o direito e aplicar o direito. Também, registre-se o óbvio: já dá para sacar que Kelsen não foi um positivista exegético ou “legalista” (refiro essa “obviedade” em face da catilinária cotidiana acerca disso).

Na verdade, Kelsen admite que qualquer coisa que se coloque no interior dessa moldura (quadro) é válida. Na alegoria aqui feita, o-que-Cunha-põe-na-Câmara-vale. É norma. E mesmo aquela norma que fica fora da moldura, se dela ninguém recorrer para outra instância (no caso, o STF), acaba valendo, porque o juiz (Cunha) está autorizado a produzir (a) norma. Ou seja, Cunha age de forma decisionista… Logo, qualquer semelhança…

Tudo o que é posto no interior da moldura cunhal, vale. E a imprensa e parcela da comunidade jurídica disso não reclamam. E como fazem para “escapar” do paradoxo? Fazendo, de forma caricata, um ato de conhecimento (Interpretatione als Erkenntniss), descritivo, “feito de fora” do “sistema cunhal”. Uma espécie de “ato mervalístico”. E isso só é possível graças a esse artificio da NCF: o ato de descrever é um ato de conhecimento. Já o ato real, praticado por Cunha, etc. é um ato de vontade (Interpretatione als Willensakt — como que a repetir a Wille zur Macht — a vontade de poder). São “campos separados”. Magnífico: a ciência separada de qualquer influxo moral e ético. Bingo.

Eis a explicação da Teoria Pura da Política (TPP) de Pindorama. Os cientistas da Galáxia Pindoramensis conseguiram entender tudo. E já se foram a la cria, como se diz na minha terra.

Atenção: o que os cientistas extraterrestres fizeram foi uma Teoria Pura da Política e não uma teoria da política pura. Assim como Kelsen escreveu uma Teoria Pura do Direito e não uma teoria do direito puro.

Numa palavra: Depois de tudo que ouvi e li por aí, só me restou fazer uma coluna com esse teor. Quando tudo se ideologiza, nada resta para um constitucionalista limpinho.[2] Como explicar que x não é y? Como explicar que, depois de 1949, a Constituição passou a ser norma e que gente como Hesse, Canotilho, Ferrajoli, Jorge Miranda não podem ter escrito tudo o que escreveram de forma inútil?

Isso que fiz hoje se denomina, em direito penal, de inexibilidade de outra conduta (epistêmica). O que mais posso dizer? O que dizer, quando juristas pregam contra a Constituição, dizendo que os fatos valem mais do que a Carta Magna? Mas, então, por que existe o Estado Democrático de Direito? Nossos juristas não apreenderam nada com o que aconteceu depois da segunda grande guerra? Vi um vídeo feito no auditório de uma importante Faculdade de Direito, em que famosos juristas faziam discursos apopléticos sobre “fins que justificam os meios” e fiquei pensando: é de Direito que estavam falando? Mas, de Direito, mesmo? Um deles, empolgado, vociferava algo como “o Judiciário é a última saída da democracia”. É, professor? Será mesmo? Mal sabe o professor que, o que dizia era paradoxalmente inconstitucional, além de contraditório e ambíguo. Nas palestras e em seus livros, terão, ele e tantos outros, coragem de dizer essas coisas? Ou esconderão tudo isso, porque dizer é uma coisa, escrever é outra?

Post scriptum 1: ninguém notou que, na coluna passada, referi um livro que não existe? Só para testar a atenção dos leitores. Mientras tanto, vejam isto: um kit exaustivo de petições criminais a apenas um clique de distância. Autoexplicativo. And I rest…

Post scriptum 2: o estagiário levanta a placa com os dizeres: embora as referências a Kelsen sejam sofisticadas, sérias e verdadeiras, a coluna de hoje é puro sarcasmo… Ou seria sarcasmo puro? Eis aí uma questão: qual seria a diferença entre uma teoria do puro sarcasmo e uma teoria do sarcasmo puro? Segue uma sugestão para os comentaristas, e, sobretudo, porque entender isso pode nos ajudar muito a compreender as pretensões de Kelsen. E isso não é um sarcasmo. Ou será que é? De todo modo, esta coluna é para iniciados. A persistirem os sintomas, um dicionário e a Constituição deverão ser consultados.

No fundo, o fatalismo kelseniano agora bate às portas do Direito brasileiro, colocando-o como refém dele mesmo, já que o establishment nunca deu importância para a questão da decisão judicial. A criatura mata o criador. Assim eu pergunto: qual a diferença da postura daquele que defende ser o ato de decisão do Congresso — no caso de impeachment — puramente político-ideológico, de um jurista que admite raciocínios puramente consequencialistas no ato de uma decisão judicial qualquer? Um parlamentar pode decidir o futuro da nação “conforme a sua consciência individual”, ou melhor, “mera conveniência político-eleitoral”? Ele pode ignorar “o jurídico”? O político se basta? O discurso moral supera o direito?

A partir da tese (aceita por considerável parcela dos juristas) de que o impeachment é um instituto político (e não jurídico), não há diferença alguma para o decisionismo historicamente praticado pelas cortes brasileiras, e aquilo que é sustentado por muitos doutrinadores. Tudo se transforma em raciocínios consequencialistas, do tipo “decido e depois busco o fundamento para justificar a escolha (arbitrária)”. Decide-se ao sabor da moral e da política.

Com ou sem sarcasmo, nada mais há a dizer sobre “tudo isso”. Vamos aguardar apenas a fatura. Com ou sem impeachment (a votação é domingo — marcada por Cunha; falta só contratar o filósofo contemporâneo Pedro Bial para narrar a votação — tipo Big Brother Brasil, com comentários da equipe mais isenta do jornalismo de Pindorama: o da Globo News; pronto: quem assumirá a cadeira de líder nesse BBB?). Pode existir um “olhar externo” (metalinguístico) melhor do que esse? Enfim, não devemos esquecer que o discurso externo de Kelsen — já que a coluna foi sobre ele — era “amoral”, não cognitivista. Qualquer coisa vale. Qualquer coisa pode ser Direito… Mesmo sendo torto. Qualquer.

Como diz o “sábio” Conselheiro Acácio, as consequências vêm sempre depois!


1 Esta coluna é uma homenagem a Warat. Mais uma entre tantas que já fiz. Eternamente grato. Warat usa o exemplo da mulata (fundamental). Também é uma homenagem ao seu melhor aluno: Leonel Severo Rocha.

2 Na minha terra, diz-se, preconceituosamente: “pobre, mas limpinho”. Eu adaptei, sem preconceito: “constitucionalista, mas limpinho”. 

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