Interesse Público

Regime jurídico aplicável às administrações públicas é híbrido

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14 de abril de 2016, 8h00

Spacca
Caricatura Luciano Ferraz [Spacca]O estudo do Direito Administrativo é tradicionalmente feito sob a ótica do regime jurídico administrativo — conjunto de princípios e regras (normas jurídicas) que implica uma relação desigual, com peso na balança em favor da Administração Pública, incumbida de agir em nome dos direitos genuínos da sociedade.

Por conta disso, a maioria dos que lidam ou se dedicam ao Direito Administrativo acredita que esse regime jurídico é sempre o mais adequado para todo tipo de relação que a Administração Pública estabelece, independentemente do sujeito, do objeto, dos instrumentos jurídicos e da finalidade que se perseguem. Nesta perspectiva, interessam mais os meios do que os fins.

Mas é importante perquirir se essa situação ideal e teórica corresponde efetivamente às necessidades e às realidades mais recentes da Administração Pública, ou se, por outro lado, não se trata de sobrevida de concepções que permanecem em linha de continuidade com o passado.

Compreende-se, particularmente, que sob tal perspectiva repousam dois dogmas: (a) o da vinculação positiva da Administração Pública à lei (“na Administração Pública só é possível fazer o que a lei autoriza”); (b) o da Administração Pública autocêntrica (que pressupõe atuação administrativa legítima, exclusivamente na condição de superioridade, na relação jurídica entabulada).

Na análise das evoluções conceituais, legislativas e práticas do Direito Administrativo não é difícil perceber que as administrações públicas (o termo no plural é proposital, a fim de demonstrar a existência de uma pluralidade de estruturas administrativas com diferentes perfis e regimes) cada vez mais se relacionam com os agentes de mercado pela via contratual e descem do pedestal, mediante procedimentos construtivos de diálogos e de consensos.

O que se vê, na pratica, é que o regime jurídico aplicável às administrações públicas (direta, indireta, autônoma, delegada) é um regime jurídico híbrido, a mesclar elementos, institutos e conceitos de direito público e de direito privado, aspectos de legalidade e de autonomia das vontades.

Nesse passo, a maior ou menor incidência das regras de direito público e de direito privado (e vice e versa) nas relações travadas pelas administrações públicas dependerá: (a) da pessoa jurídica (sujeito) que exerce a atividade administrativa, seja ela pertencente ou não à administração pública; (b) do tipo de atividade administrativa desenvolvida (regulação, polícia, serviços públicos, atividade econômica, fomento); (c) do instrumento jurídico utilizado para efetivar a ação administrativa; (d) da finalidade perseguida pela atividade administrativa; (e) dos direitos e interesses legitimamente envolvidos nessa persecução.

O que se quer dizer, portanto, é que não parece ser acertado submeter tudo o que acontece no âmbito administrativo a um regime jurídico único e necessariamente de direito público; que, além disso, o recrudescimento dos regimes aplicáveis em todos os pontos e espaços das administrações públicas não é garantia de lisura e respeito aos princípios que a regem; e que, afinal, a sustentação da unicidade do regime administrativo não garante automaticamente serviência aos direitos da sociedade, servindo muitas vezes de espaços para corporativismos.

As observações feitas podem ser testadas e confirmadas no âmbito das atuações contratuais das administrações públicas. Vive-se hoje um movimento de contratualização das relações administrativas, tal como pontificou Jean-Pierre Gaudin (Gouverner par contrat: l’action publique en question. Paris: Presses de Sciences Politiques, 1999).

Com efeito, nos domínios antes habitados exclusivamente pelos atos administrativos unilaterais e monológicos, surgem figuras de perfil contratual, mais flexíveis — muitas vezes substitutivas dos próprios atos administrativos unilaterais —, com a presença inevitável da autonomia das vontades e do consenso (por exemplo, termos de ajustamento de conduta, acordos de leniência, acordos de cessação, termos de ajustamento de gestão).

Tais instrumentos trazem em essência a potencialidade de, pragmaticamente, acomodar diversas situações jurídicas controvertidas aos rumos da consensualidade, em detrimento da unilateralidade, da rigidez e dos demorados debates de solução de conflitos, sem menoscabo às finalidades essenciais a cargo das estruturas administrativas e de controle.

Em âmbito contratual propriamente dito, existem relações administrativas que definitivamente não se amoldam ao perfil rígido e hermético do regime jurídico administrativo. É o caso dos contratos constitutivos de sociedades empresariais com participação de entidades administrativas, dos contratos de fomento com a iniciativa privada de fins lucrativos, dos contratos de parcerias com o terceiro setor, dos contratos de inovação tecnológica, dos contratos de financiamento, seguro, compra e venda, locação, comodato.

Mesmo nos contratos administrativos típicos (concessões, obras, serviços, compras), o regime jurídico aplicável não é puramente administrativo, como faz prova o próprio artigo 54 da Lei 8.666/93, ao ditar àqueles a aplicação subsidiária dos princípios da teoria geral dos contratos e das demais disposições de direito privado.

Portanto, o que se pretende demonstrar é a existência de espaços normativos e substanciais para diferentes tipos de contratos com as administrações públicas, mais rígidos ou menos rígidos (conforme o objeto e as necessidades em jogo), valorizando-se, como não poderia deixar de ser, a serventia da autonomia das vontades.

Independente dos detalhes de cada contratação, o mais importante é que os relacionamentos contratuais entabulados pelo Poder Público exprimam boa fé, confiança recíproca, respeito às disposições contratuais, não enriquecimento sem causa, segurança jurídica, e que tenham seus objetos executados em prol dos interesses (direitos) da sociedade.

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