Opinião

MPF inova e cria suspensão de prescrição ilegal em acordo de delação

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Pedro Ravel Freitas Santos

    é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

13 de abril de 2016, 7h33

No bojo do acordo de delação premiada levada conduzido pelo Ministério Público Federal, o senador Delcídio do Amaral aceitou a suspensão do prazo prescricional em até 20 anos, quando somente então voltará a fluir tal prazo. A colaboração foi oferecida pelo Parquet, aceita pelo réu e homologada pelo Supremo Tribunal Federal. Tudo estaria muito bem, não fosse um detalhe: a tal da legalidade

A legalidade cumpre, juntamente com os seus necessários desdobramentos — anterioridade e taxatividade — a principal função de garantia do Direito Penal. Os tipos penais, independentemente de classificação, exteriorizam a garantia da legalidade. De nada adianta existir legalidade se a lei puder ser interpretada de qualquer forma, ainda que se lhe dê a roupagem pseudo-legítima de interpretação compreensiva, extensiva, etc. A legalidade é, a um só tempo, o fundamento de legitimação formal da intervenção penal e a forma de evitar quaisquer abusos por parte do estado juiz.

No iter criminis do assassinato ao Processo Penal, ataca-se sobretudo o princípio da legalidade. É preciso, em tempos de graves violações, reafirmar tal conceito, por vezes esquecido ou mal-compreendido:

“O artigo 5°, II, da CF preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas (CF, artigo 59) devidamente elaboradas, conforme as regras de processo legislativo constitucional, podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, sendo assegurada ao particular a possibilidade de recusar as imposições estatais que não respeitarem o devido processo legislativo.”[1]

Não bastasse a promessa de prêmios ilegais [2(por exemplo, condenação em dezenas de anos convertida em prisão domiciliar ou regime semiaberto domiciliar ), o Ministério Público Federal inova mais uma vez. Age como se legislador fosse, sem qualquer tipo de limite. Transforma regras cogentes, imperativas, em cláusulas negociais. Faz o que (não) pode, com a finalidade de obter a inalcançável e sofismável verdade real e com a roupagem de proteção a bens jurídicos. Imperioso reconhecer a exclusiva autoridade da lei e a tutela da liberdade, assim definida por Giorgio Del Vecchio:

“Antes de tudo, cumpre não esquecer que o conceito da impossibilidade jurídica de impor aos indivíduos limitações não fundadas em lei não é próprio de qualquer sistema jurídico, mas somente de alguns que têm, como o nosso, assumido a forma de Estado de Direito (…) Consideramos hoje como particularmente necessário que o princípio da exclusiva autoridade da lei, ainda em relação aos órgãos do Estado, se mantenha firme no direito penal, matéria em que o legislador, como se sabe, até não admite a aplicabilidade da analogia.”[3]

No tal acordo de delação, quando mais uma vez se propôs consequência diversa do que a lei permite — o que, por si só, já deveria impedir a homologação — ainda se ajustou, ao arrepio das normas cogentes e imperativas, a suspensão de prazos prescricionais.

Cumpre esclarecer um aspecto importante: vale advertir que a Lei de Organização Criminosa (12.850/2013) prevê a possibilidade de suspensão prescricional, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração. A suspensão, neste caso, deriva de lei, não podendo ser elastecida por vontade das partes. Não significa, portanto, que tal suspensão possa ser aprioristicamente cogitada em dezenas de anos. Suspende-se tão somente para as tratativas e, posteriormente, para verificar se tais condições serão efetivadas (artigo 4°, §3° da Lei 12.850/2013).

No bojo da indigitada delação prevê-se o pagamento de determinado valor, que pode ser parcelado em até 10 (dez) anos, contudo, mesmo assim, não se justifica a suspensão do prazo prescricional. Isso porque, tal cláusula pode ser cumprida em tempo menor, além de, no caso concreto, a suspensão alcançar, injustificadamente, o lapso de 20 anos.

Giacomolli reitera a separação e superação da concepção civilística do processo penal. Nesse diapasão, identificam-se alguns marcos ou rompimentos, sendo o primeiro o estabelecimento da pena criminal, conferindo caráter público. Ademais, o caráter da estrita legalidade no processo criminal em contraposição à possível disponibilidade do direito civil. Salienta, ainda, que a finalidade do processo não se confunde com o punir (justiça punitiva). São palavras do supracitado autor, in verbis:

“O desafio da doutrina, neste milênio, é assentar o processo penal em bases teóricas próprias, desvinculadas, não necessariamente de forma total, das categorias do processo civil, extirpando ou amenizando os males e os retrocessos que a teoria da unidade processual está produzindo na esfera do processo penal, desde o ensino jurídico, passando pela dogmática e pela law in action, mormente pelos acusadores oficiais, juízes e tribunais.”[4]

Como causa de extinção de punibilidade, a prescrição é regulada pelo Código Penal (artigo 109 e seguintes), e, a depender da pena cominada ao tipo, o lapso para o alcance de tal marco é maior. É cediço, por outro lado, que o prazo máximo prescricional no Direito Brasileiro é de 20 anos.

Pois bem.

O Ministério Público Federal propôs, no acordo de delação premiada efetuado com o senador Delcídio do Amaral, a suspensão da prescrição pelo prazo de 20 anos. Somente após tal período, o lapso prescricional voltaria a fluir. Trata-se de aberrante e injustificada medida. Isso porque o Direito Brasileiro prevê hipóteses e causas de suspensão da prescrição. Nenhuma delas se compactua ao quanto disposto no referido acordo de delação premiada. Assim, criou-se nova hipótese de suspensão prescricional.

Cita-se, a título de exemplo, o artigo 366 do Código de Processo Penal[5]. Transcreve-se o dispositivo:

Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo 312.

Sabe-se, também, que em crimes tributários, quando proposto o parcelamento do débito, enquanto são quitadas as parcelas referentes ao montante sonegado, o processo e o prazo prescricional ficam suspensos. Em qualquer exemplo de suspensão prescricional deverá existir, portanto, previsão legal.

Para quê serve a prescrição? Cuida-se de meio impeditivo do “jus puniendi ad eternum”. Reconhece-se que o Estado não pode exercer seu poder-dever de acusação a qualquer momento, elencando limites temporais, a depender do crime e da pena cominada. Indubitável cuidar-se de meio de garantia do cidadão, para que este se liberte, de uma vez por todas, de possível persecução penal. Nesse sentido, ilustra-se:

O instituto da prescrição é uma forma de autolimitação da atuação dos próprios órgãos e agentes estatais envolvidos na persecução e na execução penal, aplicando-se a toda e qualquer prestação jurisdicional no âmbito penal, independentemente de o delito ser perseguido através desta ou daquela modalidade de ação penal.[6]

Pela natureza da norma (garantia), cuida-se de categoria normativa cogente. Cogente se refere a ser coercitivo, obrigatório, indisponível. Normas cogentes, portanto, se caracterizam por sua impossibilidade de alteração, de pactuação diversa do quanto originariamente determinado.

No âmbito penal, a indisponibilidade da norma visa a garantir aos cidadãos, a necessária e imprescindível segurança jurídica. É dizer, com a obrigatoriedade da norma busca-se evitar abusos por parte do Estado e de seus agentes.

Fala-se e propala-se o termo “acordo de delação/colaboração premiada”. A expressão “acordo” designa, indubitavelmente, uma concepção civilística, própria mesmo de negócios jurídicos privados. Não se pode perder de vista que no Direito Civil, corriqueiramente as partes ostentam posição similar, ou seja, não se verifica um estado de sujeição, de desnível.

É errado assimilar o réu/colaborador/delator em par de igualdade com o Ministério Público Federal. Por mais que queira e pareça espontâneo, não se pode perder de vista que jamais, o colaborador estará na mesma posição que o Parquet. Isso é uma falácia. Assim, incorreto acreditar na disponibilidade de determinadas normas, sob pena de se fazer letra morta garantias e direitos indisponíveis. No caso em tela, macula-se, malfere-se o direito ao devido processo legal.

A extinção de punibilidade pelo alcance do prazo prescricional é um direito subjetivo do réu. Dessa forma, atingido o prazo, deve o Estado reconhecer a impossibilidade de se intentar qualquer ato contrário ao réu. Ora, ao suspender prazos prescricionais, o Ministério Público amplia de maneira ilegítima, arbitrária e ilegal o jus puniendi do Estado. Isso porque ainda não tem competência (do ponto de vista legislativo) para tal. E, mesmo que tivesse, jamais poderia regular fatos pretéritos, sob pena de violar-se a irretroatividade de norma penal mais grave.

Pretende-se, contudo, transmitir a falsa imagem de vantagem ao réu/colaborador/delator. Como sujeito hipossuficiente (sim, todos os réus são hipossuficientes, mormente quando pressuposto, no Brasil. para legislar em matéria penal é ser aprovado em concurso público de provas e títulos), o sujeito aceita os absurdos propostos. A condição precária do réu delator é o combustível para o aceite de tais disparates.

Não se pode perder de vista, conforme já asseverado anteriormente, que a promessa de um prêmio ilegal, assim como a previsão de situações absolutamente nulas têm o condão de macular todo o acordo de delação premiada, eivando de nulidade ex tunc, não podendo ser convalidada. Anuncia-se aqui o que, certamente, será proclamado futuramente: as delações premiadas, da forma como se revelam, são provas imprestáveis, que conspurcarão todo processo cujo conteúdo se referir a tais acordos.

Reforce-se que não se faz um discurso em favor da impunidade. A luta contra a corrupção não é uma marcha exclusiva da Justiça Federal e do Ministério Público Federal. Todos são interessados. Todos são legitimados para tal luta. O que não se pode aceitar é o verdadeiro “faroeste processual” e o sepultamento definitivo do processo penal.


1 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 119.

3 VECCHIO, Giorgio Del. Princípios Gerais do Direito. Trad. Fernando de Bragança. Editora Líder, Belo Horizonte, 2003, pg.37 e 38.

4GIACOMOLLI, Nereu José. Exigências e perspectivas do Processo Penal na Contemporaneidade. In: Criminologia e Sistemas Jurídicos-Penais Contemporâneos II. GAUER, Ruth Maria Chittó (ORG). Porto Alegre.: Ed. EDPUCRS, 2010, pág. 278.

 

5E que nem mesmo ele permite a imprescritibilidade, tendo o STJ enunciado a Súmula 415, com a seguinte redação: “O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada”.

6DELMANTO JUNIOR, Roberto. Inatividade no processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. – Coleção estudos de processo penal Joaquim Canuto Mendes de Almeida; v.7p.332.

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    é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.

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    é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

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