Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo neozelandês (parte 42)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

13 de abril de 2016, 8h10

Spacca
1. A terra da grande nuvem branca
Em uma fria noite, no deserto do Norte da África, o temido general alemão Erwin Rommel enfrentou a derrota definitiva em El Alamein, uma cidade mediterrânea do Egito. As invictas forças alemãs conheceram a derrota em um território no qual haviam feito sua fama. Após a Segunda Batalha de El Alamein, que durou 10 dias entre fins de outubro e início de novembro de 1942, Winston Churchill pronunciou a célebre frase: “Antes de Alamein, nunca tivemos uma vitória, depois de Alamein, nunca tivemos uma derrota”.

O clímax da batalha, quando a sorte alemã foi definitivamente quebrada, ocorreu em uma madrugada, quando Montgomery, o comandante britânico, ordenou que os neozelandeses calassem baionetas e dirigissem um ataque suicida contra os tanques alemães. A infantaria da Nova Zelândia, um domínio do Império britânico na distante Oceania, atacou seus oponentes em meio à noite, à areia e ao deserto com a fúria de lobos e o destemor de insanos. Era uma massa de homens, com antiquados capacetes de ferro, que lembravam aqueles usados pelos ingleses na Guerra das Duas Rosas, de bermudas cáqui, que surgiam do nada como fantasmas. Em uma cena que mereceria ter sido escrita por Shakespeare, eles conseguiram o impossível e viraram a maré da batalha, para surpresa dos alemães.

Esse pequeno episódio não deveria causar surpresas. Desde a Guerra dos Bôeres, no final do século XIX, soldados da Nova Zelândia têm sido voluntários na defesa de sua antiga metrópole. Nas trincheiras da frente ocidental ou no massacre de Galípoli, na costa turca, havia neozelandeses a morrer na 1ª Guerra Mundial. No conflito de 1939-1945, a mesma lealdade se revelou.

Na verdade, aqueles neozelandeses eram filhos e netos dos colonizadores britânicos que ocuparam o arquipélago que os aborígenes chamavam poeticamente de “a terra da grande nuvem branca”. Os primeiros europeus a chegarem às ilhas foram os holandeses, no ano de 1645. Em honra da província calvinista da Zelândia, a mais ocidental do Reino Unido dos Países Baixos, as ilhas foram batizadas de Zeeland.

Pouco interessantes para os holandeses, que estavam mais animados com o comércio com o Japão e a ocupação da Batávia (atual Indonésia), as ilhas foram mapeadas, no final do século XVIII, pelo britânico James Cook, atraindo a curiosidade de seus compatriotas pelo território. No entanto, somente no século XIX é que a Nova Zelândia seria ocupada por exploradores do Reino Unido, precedidos de missionários anglicanos, caçadores de baleias e marinheiros.

Rapidamente, as ilhas obtiveram autogoverno, que se consolidou no início do século XX com o Estatuto de Westminster, e, após a 2ª Guerra Mundial, a Nova Zelândia consolidou seu status de um membro da Comunidade Britânica de Nações, tendo a rainha Elizabeth II como chefe de Estado e sucessivos governos parlamentares democráticos, que se alternam, à moda da antiga metrópole, entre os partidos conservador e trabalhista.

Com um produto interno bruto de US$ 201.028 bilhões (valores de 2014) e uma população de 4.414.400 habitantes (números de 2011), a Nova Zelândia tem o nono melhor índice de desenvolvimento humano do mundo e a 24ª renda per capita mais elevada do planeta. Sua economia é baseada no extrativismo e na agropecuária, com exportação de lã, derivados bovinos, ouro, vinho e petróleo.

Problemas de identidade com as reivindicações da população aborígene, os maoris, tornaram-se relevantes nos últimos 30 anos. O incremento da imigração asiática também coloca em xeque a antiga consciência de unidade étnica de uma população majoritariamente europeia. Da antiga cooperação militar com a metrópole, os neozelandeses ligaram-se a seus vizinhos australianos e contribuíram com os norte-americanos nas guerras da Coreia, do Vietnã, do Golfo, do Iraque e do Afeganistão.

2. Instituições político-jurídicas
A influência das instituições britânicas, no entanto, faz-se muito forte até hoje na vida política e jurídica do país. A primeira legislatura parlamentar nacional data de 1853. No anos de 1890, ao tempo da 11ª legislatura, o bipartidarismo teve início, com as alternâncias entre liberais e unionistas. Após a crise econômica de 1929 e a grande depressão dos anos 1930, os trabalhistas chegaram ao poder em 1938 e passaram a dividir o espectro político com os nacionalistas (equivalentes aos conservadores britânicos). Hoje, os verdes aparecem como terceira força política, retirando parte dos votos do eleitorado trabalhista.

A monarquia permanece no cotidiano neozelandês por intermédio da figura do governador-geral, o lugar-tenente da rainha britânica, que atua em nome da monarca na chefia de Estado. Por uma dessas características britânicas tão peculiares, o atual ocupante do cargo é o general sir Jeremiah Mateparae, um neozelandês de origem maori. Um “rei” maori é o governador-geral da maioria europeia.

O governador-geral reúne-se com o primeiro-ministro no Conselho Executivo, do qual é o presidente e onde deve aconselhar o chefe de governo em sua atuação. O governador-geral pode convocar e dissolver o Parlamento, além de participar da cerimônia de abertura do ano legislativo, com a leitura da Fala do Trono, em substituição à rainha. Ele deve nomear e exonerar ministros, após sugestão do primeiro-ministro, e tem a função de acreditar os membros do corpo diplomático. Há duas décadas o movimento republicano luta para alterar as regras e permitir a eleição do governador-geral, como um primeiro passo para aclimatar a ideia de república entre os neozelandeses.

O gabinete é presidido pelo primeiro-ministro, cujos poderes constitucionais são definidos pelo costume, e não por regras escritas. A mais alta autoridade judicial do país é o ministro da Justiça, a quem compete definir as grandes linhas políticas do setor e a administração da atividade judiciária. Existe, ainda, um procurador-geral da Nova Zelândia, cujas funções se mesclam entre um advogado-geral e um procurador-geral, na linguagem do Direito brasileiro. Em muitos gabinetes, os dois cargos são acumulados por um só ministro.

Nominalmente independente, o Poder Judiciário da Nova Zelândia é muito próximo de seu congênere do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, com sua divisão em cortes regionais, locais e, após 2004, uma Suprema Corte. Os magistrados ainda usam as perucas e vestes talares encontráveis no Reino Unido, em alguns tipos de jurisdição.

Até 2004, a última instância recursal neozelandesa era o Comitê Judicial do Conselho Privado, em Londres. Após uma reforma constitucional ocorrida em 2003, o país criou sua Suprema Corte, no que se ajustou à reforma do Poder Judiciário ocorrida no Reino Unido, sob a administração trabalhista de Tony Blair.

3. Primeiras impressões sobre a formação jurídica neozelandesa  
A Nova Zelândia é, porventura, o país que melhor conservou as tradições metropolitanas em termos de instituições jurídico-políticas. Pode-se afirmar que muitos desses elementos já desaparecidos em Londres permanecem intactos em Auckland.

Em termos comparativos, a realidade neozelandesa é muito diferente da encontrada no Brasil. Há apenas seis faculdades de Direito em todo o país, a saber, as escolas vinculadas às universidades de Auckland, Waikato, Wellington, Canterbury e de Otago, além de um curso jurídico vinculado à Universidade Tecnológica de Auckland. 

Do século XIX até 1930, a formação dos juristas neozelandeses subordinava-se ao Poder Judiciário. Com o passar do tempo, a universidade assumiu paulatinamente essa função, o que terminou por se consolidar na instituição de um Conselho de Educação Jurídica, no ano de 1930, o qual era formado originalmente por dois juízes do Supremo Tribunal, dois representantes da Law Society neozelandesa e dois professores de Direito da antiga Universidade da Nova Zelândia[1].

No ano de 1961, as faculdades de Direito foram descentralizadas e, com isso, deu-se uma reformulação do Conselho de Educação Jurídica, que ganhou autonomia administrativa e nova composição: a) magistrados, representando o Poder Judiciário; b) advogados, representando a Law Society; e c) professores, representando as faculdades de Direito. Em 1982, incluiu-se um juiz de primeiro grau e um estudante de Direito. No ano de 1990, acresceu-se um leigo em Direito, indicado pelo Ministério da Justiça, como forma de exercer algum tipo de controle externo não corporativo.

Para além de funções regulatórias, que serão examinadas nas próximas colunas, o Conselho de Educação Jurídica define as diretrizes curriculares nacionais mínimas, o que foge do padrão europeu e aproxima-se do modelo brasileiro.

As profissões jurídicas não sofreram com oferta excessiva de vagas, e não se identificou uma degradação da imagem e da representação social de seus exercentes. O magistério superior jurídico é respeitado, mas não possui o mesmo prestígio de um magistrado ou de um grande advogado. Dá-se algo semelhante ao que ocorre no modelo inglês, que é centrado na figura do lord justice.  

***

Nas próximas colunas, seguiremos no exame dessa jovem e peculiar nação da Oceania. Tão distante e tão diferente da realidade brasileira — e, por isso, de interesse para estudos comparatísticos.


[1] Disponível em: http://www.austlii.edu.au/au/journals/ALRS/2011/5.html. Acesso em 12/4/2016.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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