Opinião

Valor de doação indicado no IR não serve como base de cálculo do ITCMD

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9 de abril de 2016, 8h40

No estado de São Paulo, não raras vezes os contribuintes tem sido surpreendidos com autuações fiscais relativas a doações em que foram beneficiados, ainda que tenham devidamente quitado o débito tributário à época do negócio. Em casos de transferências não onerosas de imóveis, decorrente de divórcio, a situação é ainda mais comum.

O roteiro do filme é sempre o mesmo:

1) na partilha de bens, um dos cônjuges doa ao outro a metade que lhe cabe de um bem imóvel;

2) o beneficiado consulta o Fisco municipal, a fim de identificar o valor venal, e o considera como base de cálculo do ITCMD, conforme prescreve a Lei 10.705/2000 do estado de São Paulo;

3) o Fisco estadual, lançando mão do convênio de mútua cooperação com a Receita Federal, previsto no artigo 199 do Código Tributário Nacional e no artigo 45 do Decreto estadual 46.655/2002, consulta a declaração de Imposto de Renda do beneficiado;

4) tendo o donatário declarado o valor atualizado do bem ou indicado valor idêntico ao que consta na declaração do doador, há incompatibilidade entre a declaração do Imposto de Renda e o valor venal informado pelo município;

5) o Fisco estadual, prontamente, quantifica a diferença nos valores e notifica o contribuinte a prestar informações no exíguo prazo de cinco dias;

6) não obstante todas as informações apresentadas, o auditor autuante as considera insuficientes e lavra o auto de infração;

7) o contribuinte recebe no conforto do seu lar um auto de infração e imposição de multa, pelo não pagamento do ITCMD, com um prazo 30 dias para impugnar a cobrança ou quitar a dívida;

8) apresentada a defesa, os julgamentos administrativos consentem com os termos da autuação, obrigando o contribuinte a buscar o Judiciário para anular a cobrança equivocadamente perpetrada.

Autuações fundamentadas nos termos acima narrados não podem ser convalidadas por qualquer instância de julgamento. As razões que a sustentam são deficitárias e não resistem a um teste minimamente rigoroso de validade.

O artigo 9° da Lei 10.705/2000 do estado de São Paulo estabelece que a base de cálculo do ITCMD será “o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso em moeda nacional ou em UFESPs”. O parágrafo 1º deste dispositivo, por sua vez, prescreve: “Considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do contrato de doação”. Especialmente no que tange à doação de bens imóveis, o mesmo diploma legal, em seu artigo 13, inciso I, prevê que o valor utilizado como base de cálculo do ITCMD não será inferior ao fixado para o lançamento do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).

O artigo 9°, parágrafo 1°, da Lei estadual 10.705/2000, ao prescrever que se considera como valor venal o valor de mercado do bem ou direito nada mais faz do que declarar o que já está implícito no próprio conceito de “valor venal”. Neste caso, nada impede que se utilize o valor venal calculado pelo município para fins de apuração do IPTU para se determinar a base de cálculo do ITCMD sobre doação de bem imóvel.

Ao lançar mão do valor venal do IPTU como base de cálculo do ITCMD, tem-se a uma só vez a manutenção da segurança jurídica, consubstanciada na previsibilidade, na transparência, na legalidade e na isonomia, valores indubitavelmente caros ao sistema tributário.

Entre estimar unilateralmente o valor de mercado do bem imóvel ou utilizar o valor  calculado pelo poder público, por meio de critérios objetivos e legalmente estatuídos, obviamente, a segunda via se mostra mais adequada para que o contribuinte encontre a base de cálculo do tributo. No primeiro caso, o contribuinte se veria obrigado a verificar ele próprio o valor de mercado de um bem que recebeu por doação, o que daria margem a uma apreciação subjetiva e inepta do valor do imóvel. No segundo caso, o cálculo é feito por meio de critérios estipulados por lei, após uma  definição técnica de critérios pela administração pública municipal, que, indubitavelmente, tem meios mais seguros de determinação do valor venal dos imóveis que estão em seu território.

Pois bem. Considerando que as bases de cálculo do ITCMD e do IPTU são semelhantes e que o município tem meios para apurar o valor de mercado do imóvel e geralmente o faz, estabelecendo legalmente parâmetros precisos para a avaliação, nada mais natural que o contribuinte busque a municipalidade para obter o valor venal exato de seu imóvel.

A confusão perpetrada pelas autuações feitas nos moldes acima descritos — e, muitas vezes equivocadamente confirmada pela unidade de julgamento que avalia a defesa — consiste em considerar que o “valor venal” previsto no artigo 9° da Lei estadual 10.705/2000 é diferente do conceito de “valor venal” previso na legislação do IPTU. Não há, no entanto, qualquer discrepância na definição e nem existem parâmetros legais para a distinção. Em verdade, ambos significam a utilização do valor de mercado do imóvel.

A discussão, portanto, pode ser balizada definitivamente pelo questionamento que busca apurar se ao contribuinte é permitido valer-se do cálculo do valor venal do IPTU, efetuado pelo município, para determinar a base de cálculo do ITCMD. No âmbito judiciário, o entendimento segue no sentido afirmativo, conforme apontam as ementas abaixo transcritas:

DIREITO TRIBUTÁRIO – Mandado de Segurança – Impetração com o objetivo de afastar notificação que determina a retificação da declaração e pagamento de ITCMD para utilizar como base de cálculo o valor venal de referência do ITBI – A base de cálculo do ITCMD, no caso em apreço, deve ser o valor venal do imóvel lançado para fins de IPTU, em razão da ilegalidade do Decreto 55.002/09 – Inteligência do art. 97, inciso II, § 1º, do CTN e da Lei 10.705/2000 Sentença mantida. Recurso não provido. (TJSP APL: 10483071820148260053 SP 104830718.2014.8.26.0053, Relator: Oscild de Lima Júnior, Data de Julgamento: 09/06/2015, 11ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 14/07/2015);

Agravo de Instrumento em inventário Base de cálculo para o recolhimento do ITCMD que deve corresponder ao valor venal do bem ou direito, para fins de recolhimento do IPTU Inteligência do art. 38 do CTN Precedentes deste E. Tribunal de Justiça Decisão mantida Recurso desprovido. (TJSP AI: 21307183220158260000 SP 213071832.2015.8.26.0000, Relator: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 15/12/2015, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/12/2015);

Agravo de Instrumento. Tributário. ITCMD. Base de cálculo do ITCMD que deve observar o valor venal do imóvel utilizado para lançamento do IPTU. Inteligência da Lei Estadual 10.705/2000 e artigo 38 do CTN. Precedentes jurisprudenciais. Impossibilidade de alteração da Lei Estadual por Decreto. Decisão mantida. Recurso não provido. (TJSP AI: 20576100420148260000 SP 205761004.2014.8.26.0000, Relator: João Pazine Neto, Data de Julgamento: 13/05/2014, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/05/2014).

Em todos os julgados acima transcritos, que servem de mera exemplificação de reiteradas decisões no mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo sustentou a necessidade de utilização do valor venal determinado para fins de apuração do IPTU para identificação da base de cálculo do ITCMD, em caso de transmissão não onerosa de bem imóvel.

Em âmbito administrativo, mormente em primeira instância, dificilmente o contribuinte obtém o reconhecimento da invalidade da autuação em casos como este aqui tratado. No entanto, em inusitada decisão da unidade de julgamento de Guarulhos, conseguimos obter a declaração de nulidade de AIIM 4.068.6668, que, exatamente nos termos anteriormente descritos, exigiu o pagamento de ITCMD, mais juros e multa de contribuinte que havia recebido por doação imóvel do ex-cônjuge, no momento da partilha. A decisão, com ementa abaixo transcrita, serve de precedente valioso na discussão da matéria:

ITCMD – Deixar de pagar o ITCMD no montante de R$ 17.787,64 (dezessete mil, setecentos e oitenta e sete reais e sessenta e quatro centavos), devido pela transmissão Patrimonial do valor de R$ 444.691,00 (quatrocentos e quarenta e quatro mil, seiscentos e noventa e um reais) declarado em sua declaração de Imposto de Renda Pessoa Física – Exercício 2011 – Ano calendário 2010, na linha 10 – Transferências Patrimoniais (doações, heranças, meações e dissolução de sociedade conjugal ou unidade familiar), do quadro de Rendimentos Isentos e não Tributáveis, enviada à Receita Federal do Brasil. Após a Notificação a interessada não demonstrou cabalmente o pagamento do Imposto Estadual. Acusação fiscal improcedente. Defesa admitida. Não ocorreu o fato gerador do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação e extinto crédito tributário (decadência), nos termos do artigo 150, § 4º, do Código Tributário Nacional.

No caso, além de reconhecer a decadência do direito de constituir o crédito tributário, o julgamento adentrou a análise da ocorrência ou não do fato gerador do ITCMD, para concluir "que o excesso de meação a favor da autuada (…) foi devidamente recolhido", o que ocorreu com base no valor venal informado pelo município em que se encontrava imóvel. E, ademais, que, "quanto ao fato da autuada ter atualizado o valor do imóvel [na Declaração do Imposto de Renda] (…), tal ato não é da competência do Fisco estadual".

A decisão não poderia ser mais acertada. De fato, revela-se adequada a utilização do valor venal estipulado para fins de IPTU na determinação da base de cálculo do ITCMD, não sendo admissível que o contribuinte seja cobrado sobre a diferença entre esse e o valor declarado da DIRPF. Tal declaração não tem o condão de elidir o cálculo feito pelo próprio poder público para atribuição do valor venal do imóvel nem representa uma apuração real do valor de mercado. Incorre em erro patente a autuação que se baseia no valor do bem declarado na DIRPF, uma vez que tal postura não se fundamenta em qualquer norma jurídica e não se coaduna com a correta forma de apuração do tributo.

Eis, então, uma inusitada decisão administrativa de primeiro grau que transformou o script de um verdadeiro filme de terror em uma história de suspense — com final feliz para o contribuinte. Que sirva de exemplo para que mais decisões administrativas apliquem a legislação tributária com o rigor que a matéria merece e inibam auditores de realizar autuações sem o mínimo de fundamentação jurídica.

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