Direitos Fundamentais

A liberdade de expressão nos entendimentos do Tribunal Constitucional Federal

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8 de abril de 2016, 16h57

Abandonando, por ora, a temática da proteção do ambiente, o nosso intento na presente coluna é o de revisitar o tema da liberdade de expressão, desta feita no Direito estrangeiro e no âmbito específico da publicidade comercial. Nesse sentido, embora controversa a inclusão, ou não, da publicidade comercial no âmbito de proteção da liberdade de expressão, vale referenciar, ainda que em caráter sumário, o caso da Alemanha, onde predomina o entendimento de que de fato a publicidade comercial está, em princípio, abrangida pela liberdade de expressão.

Outrossim, é preciso ter presente, antes de avançarmos com a apresentação de dois casos emblemáticos da jurisprudência constitucional germânica, que para o Tribunal Constitucional Federal alemão (e aqui se verifica uma particular diferença em relação a experiência brasileira) é preciso distinguir entre a publicidade profissional, isto é, a levada a efeito por advogados, dentistas, médicos, entre outros, da publicidade comercial (ou mesmo eleitoral) em geral.

Isso se verifica pelo fato de o Tribunal Constitucional Federal reconduzir tal tipo publicidade profissional, não à liberdade de expressão, mas sim, ao âmbito de proteção da liberdade profissional. Por tal razão, nos casos de interferência (restrição) na publicidade, cuida-se também de restrição sujeita ao controle de constitucionalidade, inclusive de modo a atender às exigências da proporcionalidade da normativa que dispõe sobre a publicidade que viola os padrões da respectiva profissão. Assim, em diversos casos, o Tribunal entendeu que a proibição da publicidade seria inconstitucional em virtude de violar o direito fundamental à liberdade profissional, não se tratando, no caso, de invocar ofensa à liberdade de expressão[1].

Outra hipótese de relevo, onde também prevaleceu o entendimento de que se trata de situação que diz respeito à liberdade de profissão e não à liberdade de expressão, é a da publicidade de produtos de tabaco, designadamente cigarros e similares, designadamente quando em causa a controvérsia sobre a constitucionalidade das exigências estabelecidas pelo poder público no tocante às advertências que devem ser inseridas e que objetivam a proteção da saúde do consumidor. Em julgado de 22.01.1997[2], o Tribunal Constitucional Federal apreciou reclamações constitucionais endereçadas contra atos normativos (decretos) que, entre outros aspectos, exigem a inserção nas embalagens de cigarros ou tabaco para a confecção própria de cigarros, além da advertência geral de que “fumar faz mal para a saúde”, das advertências específicas no sentido de que fumar causa câncer e que fumar causa doenças cardiovasculares. Tendo em conta que tais obrigações afetam produtores e comerciantes na sua atividade de distribuição de seus produtos, mas não na sua participação no processo de expressão do pensamento e sua difusão, tais exigências devem ser avaliadas, do ponto de vista de sua legitimidade constitucional, com base na liberdade de profissão. 

Importa sublinhar, ainda, que, de acordo com o tribunal, a liberdade de expressão alcança relevância para a publicidade comercial quando esta possui um conteúdo valorativo, formador de opinião, ou contém informações que servem à formação da opinião, o que não se verifica na hipótese, de vez que, no caso, o fabricante é obrigado a divulgar, no seu produto, publicidade estatal, não podendo tais informações (sobre os perigos para a saúde) serem imputadas ao fabricante ou comerciante e nem evocam a impressão de que tais opiniões fossem objeto de difusão própria e voluntária por parte daqueles.

Em síntese, de acordo com o tribunal, as referências a título de advertência correspondem à reprodução compulsória de uma opinião identificável como sendo de terceiros, pois de acordo com a normativa impugnada, a embalagem contempla expressamente a referência de que o autor das advertências é o poder público, designadamente, os Ministros da Saúde da União Europeia. De todo modo, embora não se cuide, de acordo com tal orientação, de hipótese subsumida à liberdade de expressão, o tribunal Constitucional considerou justificadas do ponto de vista constitucional as exigências em relação à publicidade, rechaçando as demandas e concluindo não ter havido violação da liberdade de profissão das reclamantes.

Tendo em conta os exemplos colacionados e as razões ali deduzidas, tais decisões (que envolvem publicidade associada à liberdade profissional) não serão aqui apresentadas e discutidas, considerando precisamente o objetivo da presente coletânea, que privilegia a relação entre publicidade e liberdade de expressão. Antes de seguirmos, todavia, há de ser feito o registro de que tal distinção — entre publicidade protegida por conta da liberdade de profissão e publicidade protegida por conta da liberdade de expressão — não encontrou eco na ordem jurídico-constitucional brasileira, seja na doutrina, seja na jurisprudência.

Por outro lado, convém frisar, não temos a intenção de aqui apresentar um inventário exaustivo, mas sim, à luz de alguns exemplos, apresentar, em linhas gerais, como a relação entre publicidade e liberdade de expressão tem sido tratada na jurisprudência constitucional alemã, de tal sorte que, na presente coluna, nos ocuparemos de dois casos que envolvem a mesma empresa comercial, quais sejam, os conhecidos casos “Benetton I e II”, julgados pelo Tribunal Constitucional Federal, respectivamente, em 12 de dezembro de 2000 e 11 de março de 2003. Além disso, tais casos assumem relevo também em termos de uma possível análise de direito comparado, pois foram também objeto de controvérsia jurisdicional em outros Estados, como é o caso, v.g., da França e da Itália, o que, todavia, aqui não será explorado. 

No primeiro caso (julgado em 12 de dezembro de 2000), a reclamante, uma empresa jornalística e editorial (que veicula, entre outros periódicos, a revista “Stern”, de ampla circulação), impugna dois julgados do BGH (Superior Tribunal Federal) da Alemanha, que chancelaram proibições de publicação e difusão de publicidade da empresa Benetton, em virtude de atentatória aos bons costumes. No caso, eram três as publicidades alvo da controvérsia: a) a fotografia de uma gaivota nadando em águas cobertas por óleo; b) a segunda contendo fotografia de crianças trabalhando de forma pesada em países do terceiro mundo; c) a última veiculando fotografia de um corpo humano desnudo sobre o qual foi aposto um carimbo com os dizeres “HIV positivo”. Nos três casos a publicidade veio acompanhada da convencional marca da empresa “United Colors of Benetton”. Por força de uma ação proposta pela Central de combate à concorrência desleal a empresa jornalística foi instada judicialmente a suprimir a veiculação das publicidades, recorrendo, ao final, ao Tribunal Constitucional. Vale agregar que a empresa Benetton chegou a contestar tais medidas, sem sucesso, na esfera cível, mas não ingressou com reclamação constitucional.

O Tribunal Constitucional conheceu da reclamação e a julgou procedente, mediante a argumentação que, em apertada síntese, passamos a colacionar. Em primeiro lugar, o Tribunal reconheceu que todas as três fotografias publicitárias correspondem às exigências que fazem incidir a proteção da liberdade de expressão, pois veiculam estados patológicos (trabalho infantil, poluição, exclusão dos soropositivos) e contém simultaneamente um juízo de valor em relação a questões sociais e políticas relevantes, o que não resta alterado pelo fato de a empresa Benetton ter feito uso de uma publicidade estritamente baseada em imagens acompanhadas de sua logomarca. Por outro lado, a proibição imposta à reclamante (na ocasião uma pena de multa no valor de 500.000 Marcos  (aproximadamente 250.000,00 Euros), e mesmo a imposição de uma punição por desobediência em caráter alternativo, viola, no entendimento do Tribunal, a sua liberdade de expressão, que não foi suficientemente levada em conta pelo Superior Tribunal Federal (BGH) quando de sua decisão. Com efeito, restrições à liberdade de expressão carecem de uma justificativa constitucionalmente relevante, seja com vistas à proteção de bens comunitários, seja para a proteção de direitos e interesses de terceiros igualmente dignos de proteção.

Embora – de acordo com o BGH – a legislação reguladora da livre concorrência vede publicidade que explora os sentimentos da comunidade consumidora mediante a veiculação do sofrimento de pessoas e animais (como no caso), corresponda às exigências dos bons costumes, é questionável se com isso estão sendo protegidos bens individuais e comunitários suficientemente relevantes do ponto de vista constitucional. A mera circunstância (alegada no processo originário) de que as imagens possam ser consideradas chocantes ou de mau gosto não leva necessariamente, como, aliás, tem entendido o próprio BGH, a uma violação dos bons costumes. A restrição de direitos fundamentais (como, no caso, da liberdade de expressão da reclamante) não pode ser justificada pelo fato de que o público não pode ser confrontado com imagens e mensagens que veiculam realidades marcadas pelo sofrimento ou desagradáveis. Ainda de acordo com o Tribunal Constitucional, uma sensibilidade do público livre das mazelas do Mundo não constitui uma razão suficiente para justificar a restrição de direitos fundamentais, o que, contudo, poderá ser avaliado de modo diverso quando se tratar de imagens geradoras de medo, nojo ou que afetem a juventude.

No segundo julgamento (11 de março de 2003) estava em causa apenas a imagem que retratava uma pessoa desnuda com o carimbo “H.I.V. Positive” e a logomarca United Colors of Benetton, igualmente objeto de proibição de divulgação. No caso, além do argumento de uma concorrência desleal mediante a exploração, contrária aos bons costumes, do sofrimento alheio e da captação da solidariedade do público consumidor, também foi esgrimido o argumento de que a publicidade estaria a violar a dignidade humana dos infectados pelo H.I.V., o que, precisamente, representa o diferencial deste caso.

Como na outra ocasião (Benetton I), o Tribunal Constitucional deu provimento à reclamação. De acordo com sua argumentação, embora o Superior Tribunal Federal (BGH) tenha corretamente apontado para a circunstância de que a dignidade humana opera como limite absoluto à liberdade de expressão mesmo na esfera da livre concorrência, tal fronteira não restou ultrapassada no caso concreto. Com efeito, para o Tribunal Constitucional, o que resulta essencial para a valoração de cada manifestação de opinião é a identificação de seu sentido, para o que não se deve partir de intenções do autor da opinião que não sejam perceptíveis por parte de terceiros, mas sim, do ponto de vista do destinatário (receptador) da opinião, mediante a consideração das circunstâncias que possam determinar o sentido da opinião. O modo como determinadas minorias ou maiorias compreendem de fato uma opinião (manifestação) pode ser um argumento, mas não se revela necessariamente determinante.  Assim, a finalidade publicitária (e comercial) pode integrar o contexto de uma mensagem de conteúdo socialmente crítico, de tal sorte que publicidade e crítica social não se excluem necessariamente e podem conviver. 

No caso concreto, o BGH entendeu que em virtude de sua finalidade comercial e por se tratar de publicidade que explora, em proveito econômico próprio do seu autor (Benetton), a desgraça alheia, veiculando, de modo cínico, um apelo à solidariedade, tal publicidade ofende a dignidade humana.

Isso, contudo, não obteve a chancela do Tribunal Constitucional, para o qual o BGH não deu à dignidade humana a sua devida interpretação e aplicação no caso, pois apenas o contexto da publicidade e o seu objetivo comercial não implicam uma ofensa da dignidade.  Em primeiro lugar, a imagem veiculada apenas expõe o sofrimento e desgraça dos infectados pelo H.I.V., deixando para o observador externo a sua interpretação e valoração, não tendo tal veiculação, por si, conteúdo humilhante ou degradante. Segundo o Tribunal, seria até possível, do ponto de vista moral, afirmar ser preferível não tematizar tal mazela humana num contexto comercial, mas isso não constitui uma exigência imperativa da dignidade humana. Também o argumento do BGH no sentido de que a publicidade atentaria contra os bons costumes pelo seu potencial de gerar sentimentos de medo e ameaça em virtude da AIDS, ademais de confrontar os infectados pelo vírus de modo não exigível com seu próprio sofrimento, não convenceu o Tribunal Constitucional. Para este, a proibição de toda e qualquer publicidade comercial que envolva mensagem tematizando sofrimento ou desgraça alheia, pelo simples fato de objetivar o lucro, não representa uma solução compatível com a liberdade de expressão.

Ambos os casos revelam não apenas a proteção da publicidade comercial com base na liberdade de expressão, como também sugerem uma prevalência, nos dois casos, desta última no âmbito da ponderação com outros direitos e valores constitucionais. Vale frisar, contudo, que especialmente o caso Benetton II (a publicidade foi veiculada em diversos países) não teve – considerada similar configuração fática – o mesmo resultado quando apreciado por outras cortes constitucionais, como foi o caso da Itália.

Por outro lado, ainda que se possa, com boas razões, questionar o resultado dos julgados selecionados, o fato é que ainda assim, segue atual o entendimento (no âmbito da jurisprudência constitucional alemã) de que embora protegida pela liberdade de expressão, a publicidade comercial encontra também limites na dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, como é o caso dos direitos de personalidade. 

Todavia, também nessa esfera, a exemplo do que se verifica nos demais casos em que se cuida de avaliar a legitimidade constitucional de intervenções na liberdade de expressão, ainda que não seja possível falar, no caso da Alemanha, de uma posição preferencial da liberdade de expressão, no sentido de uma prioridade de tal liberdade na arquitetura constitucional, o fato é que o julgamento dos casos “Benetton” sugere pelo menos uma tendência, – indicada por outros julgados do Tribunal Constitucional Federal, como revela o exemplo emblemático dos casos “Caroline de Mônaco[3]” – de que a liberdade de expressão, mesmo na esfera da publicidade, está sendo mais fortalecida.

Tal fortalecimento da liberdade de expressão, contudo, há de ser devidamente contextualizado, pois não afasta a incidência de limites, ademais de exigir sejam consideradas as peculiaridades do caso concreto e da respectiva tradição jurídica. Já por tal razão, resposta correta do ponto de vista da ordem jurídico-constitucional brasileira poderá ser outra, o que, contudo, não será aqui desenvolvido, mas que desafia maior reflexão, de tal sorte que com a presente coluna o que se pretendeu é estimular o debate, já tão rico, sobre tão fascinante tema.

 


[1] Em caráter ilustrativo, v., entre outras (e para referir caso mais recente), a decisão de 07.03.12, que versa sobre a inconstitucionalidade da proibição de publicidade de clínica dentária.

[2] Cf. NJW 1997, p. 2871 e ss.

[3] Nesses julgados, mais de um, o Tribunal Constitucional Federal acabou negando provimento às reclamações constitucionais impetradas por Caroline de Mônaco (e Hannover) nas quais esta exigia ser protegida em face da divulgação de fotografias (suas e de familiares) retiradas sem sua autorização em periódicos alemães. Embora Caroline de Mônaco tenha sido vitoriosa perante o Tribunal Europeu (que entendeu devesse prevalecer a proteção da vida privada), o Tribunal Constitucional Federal entendeu que se trata de figura pertencente à história contemporânea, que frequentemente se nutre das benesses da exposição pública, de tal sorte que também deveria suportar eventuais desvantagens.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).

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