Opinião

Supremo árbitro: os contornos da judicialização da política no STF

Autor

  • Damares Medina

    é advogada doutora em Direito professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

7 de abril de 2016, 13h10

O tema da judicialização da política sempre provocou intensos debates no meio acadêmico. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal suspendeu e fixou o rito do impeachment (ADPF 378), suspendeu a posse de ministro de estado indicado pela presidente da República (MS 34.070 e MS 37.071) e determinou o recebimento de denúncia contra o vice-presidente da República, pela Câmara dos Deputados (MS 34.087). Essas decisões atraíram os contornos do controle jurisdicional dos atos típicos e privativos de outros poderes da república para o centro da agenda política nacional.

A questão é extremamente sensível, já que envolve princípios caros como a autonomia e a independência dos poderes, e está longe de encontrar uma interpretação uníssona, seja na literatura, seja na jurisprudência do STF, a quem incumbe a guarda da Constituição, que a todos deve submeter e conformar.

A abertura de procedimento de impeachment previsto na Constituição, e seus múltiplos desdobramentos, desencadeou um quadro no qual o STF é compelido a mediar conflitos que não conseguem ser devidamente solucionados em seu locus próprio: a arena política.

Em menos de três semanas duas decisões monocráticas liminares interferiram severamente em atos cuja competência privativa teria sido reservada pela Constituição ao presidente da República (chefe do Poder Executivo) e ao presidente da Câmara dos Deputados.

Em 18 de março, o ministro Gilmar Mendes concedeu medida cautelar em mandado de segurança para suspender a posse do ministro chefe da Casa Civil, recém nomeado por ato típico e privativo do chefe do Poder Executivo, a presidente da República (MS 34.070 e MS 34.071).

No dia 4 de abril, o ministro Marco Aurélio concedeu medida cautelar em mandado de segurança para determinar o seguimento da denúncia e a formação de Comissão Especial para analisar o impeachment apresentado contra o vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB), fundamentada nas ‘pedaladas fiscais’ (MS 34.087).

Apesar da grande repercussão destas decisões, essa postura jurisdicional não é inédita, pelo menos sob o prisma da separação dos poderes.

Em outubro de 2015, Teori Zavascki e Rosa Weber concederam medida cautelar nos MS 33.837, MS 33.838 e na Reclamação 22.124 para suspender os efeitos do rito de tramitação do processo de impeachment, que fora aberto a partir do recebimento de denúncia do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB).

Em dezembro de 2015, Edson Fachin suspendeu liminarmente a formação e a instalação da comissão especial do impeachment, na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 378. O Plenário do STF converteu o julgamento da decisão monocrática em julgamento de mérito e julgou parcialmente procedente a ação determinando o rito de impeachment que a Câmara dos Deputados deveria seguir, inclusive vedando a votação em sessão secreta.

As decisões ativas (concessivas de liminar ou de procedência) acabam ocupando um grande espaço na mídia e atraindo todas as atenções. Contudo, em brevíssimo retrospecto, vemos que constantemente o STF é chamado a se pronunciar, adotando uma postura negativa (negativa de seguimento ou indeferimento da liminar).

Ainda em julho de 2014, Ricardo Lewandowski negou seguimento ao MS 32.930, impetrado em face da decisão do então presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves (PMDB), que rejeitou o pedido de impeachment contra a presidente da República.

Em abril de 2015, Celso de Mello negou seguimento ao MS 33.558, impetrado por Luís Carlos Crema, contra ato do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que rejeitou o pedido de impeachment contra a presidente da República.

Em outubro de 2015, Celso de Mello nega seguimento ao MS 33.844 impetrando contra a decisão liminar de Rosa Weber que suspendeu o processo de impeachment. Nesse mesmo mês, Celso de Mello tranca o MS 33.920 impetrado pelo deputado Rubens Pereira (PCdoB), contra o desvio de finalidade e violação ao contraditório que estariam pautando o processo de impeachment na Câmara dos Deputados. Para o ministro relator, o deputado estaria pleiteando direito alheio (da presidente da República) em nome próprio, a configurar a ilegitimidade ativa do impetrante.

Em dezembro de 2015, Gilmar Mendes negou liminar no MS 33.921 impetrado contra ato do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que recebeu a denúncia por crime de responsabilidade praticado pela presidente da República. A decisão fundamentou-se no fato de que a atuação do presidente da Câmara restringiu-se a uma análise formal, devidamente fundamentada, sem conferir qualquer juízo de mérito sobre a questão.

Ainda em dezembro de 2015, o Partido Republicano Brasileiro (PRB) impetrou MS 33.942 para restituir o relator da representação contra o presidente da Câmara no Conselho de Ética. Rosa Weber indeferiu o pedido de liminar, sem o prejuízo de exame mais acurado em momento oportuno.

Nesse mesmo mês o presidente do STF, Ricardo Lewandowski indeferiu a inicial da PET 5.912, que pleiteava o afastamento imediato do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.

Em fevereiro de 2016, Roberto Barroso negou liminar no MS 34.037 impetrado pelo presidente da Câmara para suspender a o processo disciplinar que é movido contra ele no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados.

No dia 1º de abril, Rosa Weber negou seguimento ao MS 34.090 impetrado pelo deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB) no qual se pleiteava a inclusão da delação de Delcídio do Amaral no processo de impeachment contra a presidente da República em tramitação na Câmara dos Deputados.

Em 6 de abril foram impetrados mais dois mandados de segurança (MS 34.099 e MS 34.101), o primeiro teve seu seguimento negado por Celso de Mello e o segundo o pedido liminar indeferido por Cármen Lúcia. No primeiro, o deputado Benevenuto Daciolo (PSol) buscava dar seguimento ao processo de impeachment cuja instauração havia sido determinada no MS 34.087. No segundo, Eduardo Cunha tentava impedir a oitiva das testemunhas arroladas no processo que responde perante a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados.

Observa-se que as decisões do STF acerca de temas afetos aos demais poderes estão longe de ser excepcionais, ainda que as posturas ativas atraiam uma maior atenção do público em geral e provoquem maior debate, que as posturas negativas.

Recentemente, o processo de impeachment contra a presidente da República por crime de responsabilidade fiscal (pedaladas fiscais) deflagrado pela Presidência da Câmara dos Deputados foi sustado pelo STF, que determinou a observância do rito constitucional e legal, sem o qual o procedimento estaria eivado de insanáveis vícios. O processo foi retomado e caminha em ritmo acelerado (tendo sido já anunciado parecer favorável à cassação da presidente).

Na última semana foi apresentada nova denúncia, agora contra o vice-presidente. Alega-se que Michel Temer teria editado decretos de idêntica natureza daqueles editados pela presidente da República, a ensejar idêntico enquadramento normativo constitucional, inclusive no tocante à tramitação dos procedimentos de impedimento perante a Câmara dos Deputados.

Diante do sumário trancamento da denúncia (que foi reputada formalmente apta, mas materialmente improcedente) o STF foi mais uma vez acionado a se manifestar. Foi nesse delicado quadro, que Marco Aurélio concedeu parcialmente a liminar para determinar o recebimento da denúncia e a instauração da comissão. A parte que pedia a suspensão do curso do processo de impeachment contra a presidente da República foi negada.

Vale lembrar que o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, a quem compete, em última instância, ditar os rumos do processo de impeachment, responde a processo perante o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e é réu em ação penal perante o STF.

Nesse ínterim, o PMDB, partido do vice-presidente da República e do presidente da Câmara dos Deputados, decide romper com o governo federal. Nesse quadro, é de se esperar que questões peculiares e nunca antes judicializadas venham a ser arbitradas pelo STF.

Observando o cenário mais amplo, salta aos olhos um fenômeno que, se não é recente, foi fortemente potencializado com a abertura do pedido de impeachment: a judicialização da política que, em outros contextos, seriam claramente consideradas interna corporis ou não afetas ao controle jurisdicional. Trata-se de um relevante sintoma de que os poderes legislativo e executivo tem enfrentado uma crônica dificuldade de solucionar seus impasses, buscando a sistemática intermediação do Poder Judiciário, que não pode se escusar em dar o direito.

As decisões liminares de Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Rosa Weber, Teori Zavascki e Edson Fachin (esta confirmada em julgamento de mérito pelo Plenário do STF) merecem ser analisadas nesse quadrante no qual o STF é sistematicamente chamado a se manifestar sobre desdobramentos procedimentais da crise política atual.

A ampla cobertura midiática das decisões do STF e o elevado grau de polarização do debate político fazem com que a opinião pública forme juízos de ocasião a favor ou contra a decisão que agrada este ou aquele segmento, aplaudindo ou atacando, com agressividade nunca antes vista, o ministro que a proferiu.

A quantidade de ações, a velocidade em que elas se sucedem e as inúmeras decisões podem turvar a visão do conjunto político-jurisdicional no qual o STF está inserido. Visto em seu conjunto, as decisões evidenciam que a atuação jurisdicional do STF pode ser considerada comedida, se comparada com a avalanche de ações que se apresentam perante o tribunal e a magnitude dos conflitos que nossa Suprema Corte é chamada a arbitrar.

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