Tribuna da Defensoria

A atuação do defensor diante do sistema de precedentes vinculantes do novo CPC

Autor

  • Edilson Santana Gonçalves Filho

    é defensor público federal. Foi defensor do estado do Maranhão. Autor dos livros Defensoria Pública e a Tutela Coletiva de Direitos – Teoria e Prática A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais – sua vinculação às relações entre particulares e Dicionário de Ministério Público. Especialista em Direito Processual.

5 de abril de 2016, 14h14

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe diversas inovações, muitas delas que demandarão certas mudanças na forma de atuar e pensar o Direito. Uma das mais importantes delas, sem dúvidas, encontra-se na disposição contida no artigo 927 da nova legislação. Trata-se do que vem se denominando de sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil.

A intenção deste texto é analisar de que forma o jurista, em especial o defensor público, deve se portar diante desse novo sistema que promete mudanças profundas na cultura jurídica brasileira.

Inicialmente, importa observar que tais regras refletem, de maneira evidente, influência da tradição da common law, adotada por países nos quais o ordenamento jurídico se baseia nos costumes, onde o direito consuetudinário serve para a fundamentação de decisões que podem formar precedentes, os quais serão utilizados em casos similares futuros.

A adoção de precedentes no sistema jurídico brasileiro, pautado pela civil law e, portanto, baseado nas leis, não é algo inédito. Ainda sob a égide do antigo código processual havia espaço para tanto. A novidade fica por conta da força vinculante. Agora, o precedente não detém somente a função de orientar a interpretação do ato normativo, mas pode obrigar o julgador a adotar o mesmo fundamento de decisão anteriormente, aproximando-se da ideia do stare decisis (doutrina característica do common law, decorrente da expressão latina stare decisis et non quieta movere, em uma tradução livre: mantenha-se a decisão e não se mexa no que foi estabelecido).

Nesse sentido, o já mencionado artigo 927 trouxe situações que devem ser observadas pelos juízes e tribunais. São elas: (a) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (b) os enunciados de súmula vinculante; (c) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (d) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; (e) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Conquanto as situações previstas nos itens “b” e “c”, por sua própria natureza, já vinculem, é certo que nos demais casos haverá um efeito automático, qual seja, a eficácia vinculante do precedente, que passa a ser, assim, obrigatório[1].

Vale observa que o precedente decorre de uma decisão que transcende o caso concreto e que, por isso, venha a ser utilizada para fundamentar outro julgamento. Em outros termos, “o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”[2].

Demais a mais, importa ter em mente que o que vincula no precedente é a ratio decidendi (ou, na linguagem norte-americana, holding), ou seja, os motivos determinantes da decisão. Bem por isso, há quem sustente que o artigo 927, inciso “I” trouxe previsão expressa acerca da teoria dos motivos determinantes no controle concentrado[3].  Aquilo que constou na decisão como obiter dicta (ou, no singular, obiter dictum) não fará parte do precedente.

Uma vez invocado o precedente — e seus fundamentos — as decisões judicias deverão demonstrar: (1) as razões determinantes pelas quais o caso sob julgamento se ajusta ao precedente, quando decidido em conformidade com este; ou (2) a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, quando a decisão for de forma diversa (artigo 489, parágrafo 1º do CPC/2015).

Vê-se, portanto, que além de conhecer com profundidade o texto legal e a jurisprudência dos tribunais (incluindo-se, aí, as súmulas), o operador do direito deverá ter domínio dos precedentes adotados pelas cortes.

Sendo assim, diante de um caso concreto, deverá o defensor público:

1) Verificar, à luz do caso posto, se existe decisão anterior envolvendo a situação fática e jurídica e, assim, se há precedente.

2) Existindo, identificar, no precedente, aquilo que compõe o núcleo da decisão, seus fundamentos essenciais (ou seja, a ratio decidendi, aquilo sem a qual a decisão não teria sido tomada como foi), separando-os das argumentações jurídicas mencionadas apenas de passagem, dos fundamentos prescindíveis para o deslinde da controvérsia original (ou seja, o obter dicta).

A partir daí duas possibilidades irão surgir: (a) a ratio decidendi é favorável aos interesses do assistido, encaixando-se na defesa de sua pretensão; (b) a ratio decidendi é contrária aos interesses do assistido, indo de encontro à sua pretensão jurídica.

3) Sendo favorável, o defensor público deverá, na fundamentação jurídica de eventual petição, mencionar o precedente, demonstrando que se amolda ao caso apresentado, explicitando sua ratio decidendi e pleiteando, nos pedidos, pela sua aplicação (obrigatória), nos termos do artigo 927 do CPC/2015, devendo o juiz ou tribunal fazer constar expressamente nos fundamentos da decisão as razões pela adoção ou não do argumento, nos termos do artigo 489 do código processual.

4) Sendo desfavorável, haverá, ainda, duas técnicas possíveis de serem seguidas. Nessa situação, deve-se observar a possibilidade da distinção (distinguishing) ou da superação do precedente (overruling).

No primeiro caso, busca-se o afastamento do precedente, nada obstante ele continue a existir e válido. Aí se procurará demonstrar que há, no caso do assistido, uma situação fática distinta ou uma questão jurídica que não foi examinada (não enfrentada na formação do precedente).

Imagine-se, por exemplo, caso no qual alguém, por motivo religioso, não possa fazer prova aos sábados e tenha sido designado esse dia para o teste de concurso público no qual está inscrito. Mesmo sabendo da existência de precedente — desfavorável — em tais casos, é possível argumentar pela distinção caso existam particularidades. Imagine-se que a própria banca organizadora tenha questionado expressamente durante a inscrição se haveria empecilho para fazer provas aos sábados e, ainda, que se trate de teste físico ou psicotécnico para o qual foram designados dois dias (sábado e domingo), dividindo-se os candidatos em dois grupos. Foi exatamente o que ocorreu em caso real enfrentado por este subscritor, exercendo as atribuições de defensor público, ainda sob a égide do antigo código, mas que pode servir de exemplo, tendo a peculiaridade permitido a concessão da segurança naquela situação.   

No caso da superação, visa-se desconstituir a eficácia vinculante do julgamento paradigma, superando o entendimento anteriormente fixado. No overruling, assim, é preciso justificar a superação do precedente, argumentando a existência de mudança substancial da realidade, a revogação ou modificação da norma que embasou a tomada decisão em momento pretérito ou, ainda, a grave injustiça na aplicação do precedente.

Como se percebe a tarefa não é das mais fáceis, e complica-se diante da instabilidade das posições adotadas pelos tribunais. É que, nada obstante se leia no artigo 926 que esses devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, é visível e ululante que hoje não é isso que ocorre. De toda forma, as novas regras vigem e precisam ser observadas.


[1] Importa observar que o precedente nem sempre será vinculante. Nos casos citados, todavia, a própria lei atribui a eficácia vinculante (são os denominados precedentes obrigatórios ou vinculantes), o que deve ser observado, inclusive, de ofício pelo órgão julgador.
[2] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Volume 2. 10. ed. Salvador: JusPodvm, 2015. p. 441.
[3] Nada obstante já tenha sido acolhida pelo STF, a posição da corte atualmente é pela sua não adoção. A previsão do novo CPC deve reabrir o debate sobre o tema. 

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    é defensor público federal e especialista em Direito Processual, além de coautor do livro "Dicionário de Ministério Público" e autor de "A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais — Sua Vinculação às Relações entre Particulares".

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