Opinião

Competência do Supremo Tribunal Federal deve prevalecer na "lava jato"

Autor

  • Geraldo Prado

    é investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação de Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa professor visitante da Universidade Autónoma de Lisboa advogado criminal e autor de livros e artigos sobre processo penal.

5 de abril de 2016, 10h30

O advogado Fernando Fernandes, na defesa de Paulo Okamotto, peticionou na Reclamação 23.457/PR, que tramita no Supremo Tribunal Federal, para requerer integral cumprimento da liminar deferida pelo relator ministro Teori Zavascki — confirmada pelo Pleno, em 31 de março último — no sentido da imediata suspensão e remessa ao STF do “‘Pedido de Quebra de Sigilo de Dados e/ou Telefônicos 5006205-98.2016.4.04.7000/PR’ e procedimentos a ele relacionados e conexos, cassando todos os atos realizados na presente data, bem como determinando à autoridade policial e ao Ministério Público Federal que se abstenham de praticar quaisquer atos de investigação e interrompendo aqueles que estejam em curso.”[1]

O requerimento da defesa de Okamotto baseia-se nesta decisão do STF. Conforme reportagem da ConJur, o Supremo, “por votação unânime, … manteve liminar que suspendeu a divulgação de conversas tornadas públicas pelo juiz federal Sergio Fernando Moro, em meio à operação ‘lava jato’. A decisão também determina que fiquem no Supremo todas as investigações que envolvem Lula, até a análise do mérito. Esse entendimento foi por maioria de votos (8 a 2).”[2] [3]

O advogado tem razão. O juiz federal responsável pela investigação criminal que denomina de 27ª fase da operação "lava jato" pauta sua decisão sobre a admissão da própria competência, nesta fase, na conexão hipotética com procedimentos anteriores (Inquéritos 2009.7000003250-0 e 2006.70000018662-8). No ponto a decisão é idêntica àquela proferida para justificar a investigação do ex-presidente Lula e de Okamotto, tornada sem efeito pelo STF.

Pelos votos orais proferidos pelos dez ministros do STF constata-se: a) ratificaram a orientação de reservar apenas ao Supremo a deliberação sobre a unidade ou não de procedimentos de investigação, em caso de continência e/ou conexão envolvendo pessoas com prerrogativa de função, na linha de precedentes que remontam a meados dos anos 90. Os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux acompanharam o entendimento dominante com reserva; b) entenderam que as investigações envolvendo as pessoas mencionadas no referido procedimento, com ou sem prerrogativa de função, quer se tratasse do citado inquérito ou de procedimento conexo, deveriam ser suspensas de imediato, com dispensa provisória de acórdão, para preservar a autoridade do STF, sem prejuízo da celeridade que em si mesmo as investigações estão a demandar. O ministro Marco Aurélio enfatizou a necessária celeridade da análise pelo relator, ministro Zavascki, para manter o ritmo imprimido pelo juiz Sergio Moro.

Coerente com o deliberado no processo da Ação Penal 470 (o processo do mensalão) e outros, o STF reserva para si, ouvido o procurador-geral da República, a decisão sobre a pertinência subjetiva da investigação que de uma forma ou de outra envolve pessoas com prerrogativa de função, adotando a posição de juiz natural destes procedimentos.[4] Consoante precedentes, cabe ao STF ampliar ou reduzir este perímetro, para impor o processo conjunto a pessoas com e sem prerrogativa de função, na hipótese de conexão ou continência, após a audiência do Ministério Público Federal.

Decidiu-se que, constatados fatos conexos, no desdobramento das investigações jurisdicionalizadas posteriormente àquela liminar, os procedimentos de investigação devem ser sobrestados e remetidos ao Supremo que, ouvido o PGR, deliberará sobre se estes fatos conexos estão abrigados no procedimento em curso no STF ou deverão ser desmembrados, seguindo trâmite perante juiz competente.

Não questiono aqui a incompetência territorial e em razão da matéria, da 13ª Vara Federal de Curitiba, para a maioria dos casos que segundo o juiz Sergio Moro guardam algum vínculo com os dois processos de origem referidos em todas as decisões pelas quais expande a sua competência.

Tendo o juiz Sergio Moro assumido competência para supostos atos cautelares de investigação de crimes que atribui ao ex-presidente Lula, fatos em tese praticados em São Paulo, não há como prosseguir liderando investigação contra a mesma pessoa — e outras — envolvida em um determinado contexto, delimitado por conexão e continência, como é o caso desta nova fase da operação.

Admitir o contrário configuraria conexão per saltum: as investigações desta nova etapa, contra algumas das pessoas referidas na decisão do STF, são da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba por causa da conexão com os processos de 2006 e 2009 (?), mas não há conexão ou continência com os procedimentos da fase interrompida pela decisão do STF, que também se originam (em tese) dos mesmos processos! Por este raciocínio, a 27ª fase não estaria no raio da decisão do Pleno do STF porque não seria desdobramento dos procedimentos mencionados na liminar, esvaziando a decisão do STF no ponto que expressamente se refere a fatos conexos! Que órgão, afinal, define a conexão e continência relativamente aos procedimentos jurisdicionalizados posteriormente à liminar: o STF ou a 13ª Vara Criminal de Curitiba?

A 27ª etapa beira o absurdo, por supostamente envolver caso da competência do júri, em São Paulo,[5] lembrando que a competência jurisdicional é critério de legitimação do exercício do poder punitivo.

A determinação legal da competência com anterioridade em relação ao fato (infração penal) tem status constitucional, é garantia inalienável.

Ressalta-se que a legalidade abrange o direito material e processual[6].

O processo penal não contempla eleição de juízes ou juízos e não se harmoniza com juízos universais, pois incompatíveis com a imparcialidade. Os critérios de modificação da competência em favor do STF e da derrogação da competência de outros órgãos, dão origem à pluralidade heterogênea de juízos, prevalecendo a jurisdição do Supremo.

O STF autoproclamou competência para análise sobre pertinência ou não da conexão e conveniência ou não da unidade de procedimentos.

Os professores Margarida Lacombe e José Ribas Vieira, analisaram a estratégia do magistrado:

“Identificando-se com uma nova geração de juízes, 'giudici ragazzini', Sergio Fernando Moro se lança a uma empreitada moralizadora, adotando um método de atuação perverso sob o ponto de vista dos direitos e garantias fundamentais, a nosso ver. Uma estratégia que, explica, adota desde o início do inquérito: submeter “os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a suspeita de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso de manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de confissão”.[7]

Os professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), reproduzem texto do magistrado:

“os responsáveis pela Operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. […] A investigação da mani pulite vazava como uma peneira e tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no L’Expresso, no La Republica e outros jornais e revistas simpatizantes.” Vazamentos que serviam a um propósito útil, na visão de Moro, na medida em que “o constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”, levando suas agendas a serem definidas por outros.” [8]

Creio que o magistrado não se preocupa com efeitos de eventual confronto com a decisão liminar do STF porque acredita que persegue criminosos, com apoio da opinião pública, e poderia livremente interpretar categorias do processo penal sem sujeitar estes atos aos efeitos de uma futura — e a meu juízo inevitável — declaração de nulidade.

Não formular uma imputação (sempre hipotética) e recorrer ao genérico “comportamento suspeito” é como sugerir “um imputado atual de uma imputação futura” ou un imputato senza imputazione, um contrassenso segundo Foschini.[9]

O Estado de Direito impõe coerência e obediência à Constituição. Se há conexão ou continência em procedimentos de investigação que têm por alvo pessoas investigadas no âmbito do STF em procedimentos conexos aos da mesma origem, o respeito ao Estado de Direito e à autoridade das decisões do STF não está sujeito a outros juízos.

Juan J. Linz, sublinha: "um sistema político democrático a Constituição ocupa um lugar único e a lealdade a ela é um componente essencial na estabilidade das democracias", em particular quando enfrentam "sérias crises".[10]

Apenas com serenidade e respeito à Constituição é possível investigar e coibir infrações penais. Fora disso, o que há escapa ao Estado de Direito.


4 Medida cautelar na Reclamação 21.802/PR. Supremo Tribunal Federal. Relator: Ministro Teori Zavaski. Reclamante: Flávio David Barra. Data da decisão:02 de outubro de 2015.

6 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra, 2004. p. 321-323. Reimpressão.

9 FOSCHINI, Gaetano. La criptoimputazione. In: Tornare Alla giurisdizione: Saggi critici. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1971. p. 305-306.

10 LINZ, Juan J. Derecho Procesal Penal. Democracias: quiebras, transiciones y retos, Juan J. Linz, Madrid, CEPC, 2009. P. 562 (tradução livre).

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