Opinião

Colaboração premiada e o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

5 de abril de 2016, 6h52

Com a atual Constituição Federal o perfil do Ministério Público ganhou novos contornos. A atuação ministerial foi alargada sobremaneira. Até então a ênfase era a atuação na área criminal. Outras atribuições lhe foram conferidas, notadamente na proteção dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis.

Na área criminal, o Ministério Público continuou a ser o titular da ação penal pública, mas não de forma exclusiva, uma vez que é possível a propositura da ação penal subsidiária da pública por um particular em caso de inércia do órgão ministerial.[1]

O que nos propomos a analisar neste artigo é a evolução do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, que vem ganhando outra dimensão após a Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais) e a Lei 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas).

Antes da Lei 9.099/1995 o membro do Ministério Público não tinha opção. Ocorrendo uma infração penal e havendo indícios suficientes de autoria e prova da materialidade a propositura da ação penal pública era obrigatória.[2]

Com a publicação da Lei 9.099/1995 o princípio da obrigatoriedade foi mitigado. Passou a ser possível transação penal nos crimes de pequeno potencial ofensivo e a proposta de suspensão condicional do processo (artigos 76 e 89).

A oferta da transação penal e a proposta da suspensão condicional do processo não são facultativas. O membro do Ministério Público não tem total discricionariedade de optar, ou não, pela aplicação dos benefícios. Há discricionariedade regrada em que é realizada análise da sua conveniência e oportunidade à luz do caso concreto. De forma fundamentada, pode o órgão ministerial deixar de oferecer os benefícios, mas de acordo com critérios legais.

Porém, de qualquer maneira, caberá ao próprio Ministério Público a decisão final acerca do oferecimento da transação penal e da proposta da suspensão condicional do processo. Discordando o magistrado da posição do Ministério Público, deverá ser aplicado o artigo 28 do Código de Processo Penal analogicamente.

Esses benefícios não podem ser aplicados de ofício pelo magistrado ou a pedido da defesa sem a concordância do órgão ministerial. Como titular da ação penal pública, cabe ao Ministério Público a iniciativa de propor a transação penal e a suspensão condicional do processo. E o magistrado, que não é parte, não pode transacionar. É de sua competência a análise dos requisitos legais, podendo adequar os benefícios de acordo com a legislação e caso concreto, mas não impô-los.

Note-se que a própria legislação traz mecanismos para que os conflitos existentes sejam solucionados.

A questão é um pouco mais complicada quando analisamos a denominada colaboração premiada prevista na Lei das Organizações Criminosas.

Esse eficiente método de obtenção de prova já é aplicado na grande maioria dos países democráticos, mas apenas recentemente passou a figurar em nosso sistema legal.

 Como toda nova lei traz alguns problemas quanto à sua interpretação. Para que possamos entender os institutos trazidos por essa lei há necessidade que reflitamos sobre seu espírito.

O crime organizado é um fenômeno mundial e transcende as fronteiras internacionais. Bilhões de dólares frutos dos mais variados crimes são movimentados anualmente por meio de transferências eletrônicas ou “doleiros”, que levam os valores pessoalmente através dos países.

É impossível combater eficazmente o crime organizado sem instrumentos modernos de investigação. Um dos mais eficientes métodos de produção de prova é a colaboração premiada. Por meio desse instituto foi deflagrada a denominada “operação mãos limpas” na Itália.

E com a ajuda da colaboração premiada os Estados Unidos conseguem resolver grande parte dos crimes praticados por organizações e associações criminosas.

A ideia é muito simples: são oferecidas vantagens processuais a uma pessoa investigada ou acusada da prática de crime em troca de informações que levem aos demais integrantes da organização ou associação criminosa, esclarecimentos de crimes, recuperação de bens e valores, prevenção de novas infrações penais e localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Ao colaborador poderá o juiz, homologado o acordo, conceder o perdão judicial, reduzir a pena privativa de liberdade ou substitui-la por pena restritiva de direitos.

Para que seja possível essa barganha ao menos um dos integrantes deve ser identificado. Além disso, as provas a ele apresentadas devem ser substanciais de modo que haja chance real ou mesmo a certeza da condenação a severas sanções. Sem isso, não haverá estímulo para o acordo.

Percebe-se, assim, que o trabalho de investigação deve ser eficiente não apenas para identificar um dos autores do(s) crime(s), mas também para angariar provas convincentes para a elaboração do acordo de colaboração premiada.

Coube à Lei 12.850, de 2013, fixar os parâmetros e requisitos para a aplicação do instituto aos crimes praticados por organizações criminosas (artigos 4º a 7º). Os dispositivos podem ser empregados por analogia para complementar as normas que regulam os acordos de delação ou colaboração premiada previstos em outras leis.

O acordo de colaboração premiada poderá ser negociado entre o Delegado de Polícia responsável pelas investigações, o investigado e o Defensor, com manifestação do Ministério Público, ou entre o Ministério Público, o investigado e seu Defensor (artigo 4º, § 6º).

Deve ser observado que não é possível a homologação do acordo de colaboração sem a aquiescência do Ministério Público, que é o titular da ação penal pública. Assim, mesmo que seja realizado o acordo entre o delegado de Polícia e o investigado e seu defensor, não havendo a concordância do Ministério Público, a colaboração não poderá ser homologada. Cabe ao Ministério Público, como titular da ação penal pública, a análise da necessidade e adequação da medida. Nesse caso, entendendo pertinente, caberá ao magistrado valer-se analogicamente do artigo 28 do Código de Processo Penal, sendo dirimida a questão no âmbito do próprio Ministério Público.

O magistrado não participará das negociações para a formalização do acordo de colaboração premiada, a fim de não ser comprometida sua imparcialidade. Mas para que a colaboração possa produzir seus efeitos jurídicos, deverá ser homologada pelo Poder Judiciário (artigo 4º, §§ 6º e 7º).

Esse meio de prova, antes da publicação da Lei 12.850/2013, já era conhecido de nosso direito objetivo. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/1998), Lei de Proteção às Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/1999) e Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) já previam o instituto de modo bem semelhante, não havendo, porém, sua regulamentação quanto às formalidades para sua realização e homologação.

Por isso, a novidade da Lei 12.850/2013 foi, além de regulamentar o instituto, possibilitar que o Ministério Público deixe de oferecer denúncia quando o colaborador não for o líder da organização criminosa e primeiro prestar a efetiva colaboração (artigo 4º, § 4º).

Cuida-se, à evidência, de mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Poderá o membro do Ministério Público, ao analisar a necessidade e adequação da medida, deixar de promover a ação penal pública em face de alguém que admitiu a prática de infração penal. Isso para que possa obter provas que levem ao desmantelamento da organização criminosa, identificação e punição dos demais integrantes, recuperação do produto e proveito dos delitos, ou até mesmo a localização de eventual vítima que esteja privada indevidamente de sua liberdade de locomoção, como ocorre no crime de extorsão mediante sequestro.

O membro do Ministério Público, ao procurar obter um bem maior, “abre mão” de um menor, qual seja, de processar um dos integrantes da organização criminosa. Faz uma escolha, que deve ser sensata: deixa de obter a condenação de uma pessoa, para tentar conseguir a condenação de outras e, com isso, obter resultado mais útil e proveitoso para toda sociedade.

Como um criminoso será beneficiado com a não propositura da ação penal, o acordo de colaboração deve ser necessário e adequado. Será necessário quando não for possível conseguir as provas de outra maneira. E adequado por propiciar a obtenção do resultado almejado. 

A lei estipulou os critérios para essa modalidade de colaboração, que devem coexistir: 1) o colaborador não pode ser o líder da organização criminosa; 2) e deve ser o primeiro a colaborar efetiva e eficazmente, ou seja, de modo que advenham os efeitos previstos na lei (identificação dos demais integrantes, recuperação dos bens etc.).

E o magistrado nesse caso, pode se negar a homologar o acordo em homenagem ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública?

Entendemos que não. O princípio da obrigatoriedade, como já ocorria na Lei dos Juizados Especiais ao propiciar a transação penal, foi mitigado. Ao analisar a necessidade e adequação da medida, pode o membro do Ministério Público deixar de oferecer a denúncia. Caberá ao magistrado apenas a análise da regularidade, legalidade e voluntariedade da medida. Não lhe é possível avaliar o mérito do acordo, mas apenas se as normas legais que o permeiam foram observadas.

Para o combate ao crime organizado houve necessidade de alterar dogmas até então reinantes em nosso sistema jurídico. O membro do Ministério Público deve avaliar a necessidade de realização do acordo de colaboração com criminosos para que lhe seja possível apurar outros crimes, identificar demais participantes, recuperar proveito e produto de infrações penais, tudo de modo a desmantelar organizações criminosas, punir seus integrantes e prevenir novas infrações.

Por isso, em determinadas situações, é possível até mesmo deixar de processar um dos integrantes da organização criminosa, o que, antes da publicação da Lei 12.850/2013, era impensado em razão do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.

Muito embora a colaboração premiada isoladamente não possa ensejar um édito condenatório (artigo 4º, § 16), por meio dela podem ser obtidas outras provas, que a corroborarão ou não.

Esse novo cenário deve ser observado por todos os atores do sistema processual penal. Sem a colaboração premiada será praticamente impossível apurar crimes envolvendo organizações criminosas, que agem às ocultas, movimentando bilhões de dólares com a cumplicidade de pessoas influentes na sociedade, inclusive de dentro dos três poderes da República.


[1] Quando o Promotor de Justiça for inerte, ou seja, não oferecer denúncia, não determinar a realização de diligências ou não requerer o arquivamento do inquérito policial no prazo legal, poderá o ofendido ou seu representante promover a ação penal privada subsidiária da pública, ocasião na qual o Promotor de Justiça intervirá como fiscal da lei (art. 100, § 3º, do CP). Essa possibilidade passou a ser prevista na Constituição Federal como direito individual (art. 5º, LIX).

[2] Alguns delitos dependem de representação da vítima ou de seu representante legal (ação penal publica condicionada à representação). Outros de requisição do Ministro da Justiça (ação penal pública condicionada à requisição).

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e professor da PUC-SP, Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e da Academia da Polícia Militar do Barro Branco.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!