Segunda Leitura

A delação premiada entrou definitivamente no processo penal brasileiro

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

3 de abril de 2016, 8h00

Spacca
Em um passado não remoto, no Brasil as ações penais eram, principalmente, relacionadas com homicídios, furtos, roubos, estelionatos, falsidades em suas diversas formas e ilícitos contra a administração pública. Estes processos criminais, regra geral, envolviam apenas acusado e vítima, figurando o Estado como garantidor da ordem pública.

Na apuração dos fatos não havia maior complexidade. A prova testemunhal era a preponderante. Nos homicídios realizava-se perícia no Instituto Médico Legal e, eventualmente, um exame de menor complexidade (e.g., furto praticado com escalada).

A tortura era comum, veladamente admitida, e não apenas durante o regime militar, mas antes também. Era praticada, geralmente, contra suspeitos pobres em crimes contra o patrimônio. Atualmente, tal conduta é repudiada por todos e punida severamente pela Lei 9.455, de 1997. Diminuiu sensivelmente.

Mas, tudo mudou a partir da queda do Muro de Berlim, no dia 9 de novembro de 1989. O mundo passou por enorme transformação econômica. Empresas multinacionais flexibilizaram as fronteiras entre os Estados, as viagens internacionais tornaram-se intensas e a evolução da eletrônica e das comunicações fez com que um jovem da Bolívia pouca diferença tenha de outro das Filipinas.

Como era de se esperar, novas modalidades criminosas surgiram, muito mais sofisticadas, com transferência de capitais para paraísos fiscais, assistência por profissionais capacitados e métodos de organização empresarial. Para Douglas Fischer “os dados estatísticos sobre os efeitos da delinquência econômica realmente são surpreendentes, chegando-se a ponto de se poder concluir que os danos materiais que produzem são muito maiores do que aqueles ocorrentes na (assim denominada) tradicional delinquência (Delinquência Econômica, Verbo Jurídico, página 135).

Enquanto isto se passava, em Palermo, na Sicília, Itália, a organização criminosa conhecida como Cosa Nostra ou Máfia eliminou dois magistrados que se dedicavam ao combate ao crime organizado: Giovanni Falcone, em 23 de maio, e Paolo Borsellino em 19 de julho, ambos no ano de 1992.

Destes fatos originou-se a “Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional”, mais conhecida como “Convenção de Palermo”, aprovada em 15 de novembro de 2000 em Nova York, que entrou em vigor em 29 de setembro de 2003, aprovada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 2004. Segundo o site do Escritório das Nações Unidas Contra o Crime e Drogas (UNODC), os Estados-membros deveriam adotar uma série de medidas contra o crime organizado.

O Brasil passou a editar leis mais severas no combate à criminalidade organizada. Mas foi a colaboração premiada, mais conhecida como delação premiada, a grande novidade no processo penal brasileiro.

Ela surgiu timidamente,na Lei 8.072 de 1990, que trata dos crimes hediondos, antes mesmo da morte de Falcone e Borsellino, prevendo redução da pena de 1 a 2 terços para quem denunciasse à autoridade os membros de bando ou quadrilha. Em 1999 foi dado um passo mais importante, através dos artigos 13 a 15 da Lei 9.807, que trata da proteção de vítimas e testemunhas. Nesta permite-se ao juiz, em determinadas circunstâncias, até conceder o perdão judicial ao colaborador.

Mais um avanço foi dado através da Lei 13.343, de 2006, que trata da política sobre drogas. No artigo 41, ela permite a quem colaborar voluntariamente com a investigação e o processo criminal, na identificação de coautores ou parcial produto do crime, ter a pena reduzida de um a dois terços. Depois, a Lei 12.683, de 2012, feita para tornar mais eficiente a apuração dos crimes de lavagem de dinheiro, permitiu ao juiz reduzir a pena do colaborador e também substituir a pena de prisão por prestação de serviços.

Mas foi a Lei 12.850, de 2013, que trata das organizações criminosas e dos meios de provas para apuração de seus crimes, que promoveu a grande mudança. No artigo 4º, que se divide em vários parágrafos e incisos, tenta-se prever a solução para as diversas situações a que o caso concreto possa amoldar-se.

A primeira objeção que alguns fazem a esta lei é de ordem ética. Guilherme Nucci registra que alguns a criticam porque a colaboração seria um contrato antiético entre o Estado e o criminoso, porém manifesta-se favoravelmente, sublinhando que deve ser “submetida, naturalmente, à rigorosa análise do julgador” (Provas no Processo Penal, 3ª. ed., RT, página 174). Tal tipo de crítica está mais próxima de devaneios de quem acredita em um mundo perfeito do que na realidade.

Aspecto que gera dúvida é o da participação do juiz na colaboração premiada. Na verdade, ele não participa. Somente o delegado de Polícia ou o agente do Ministério Público podem colher o depoimento (art. 6º da Lei 12.850/2013). O juiz apenas a homologa posteriormente e, caso vislumbre alguma cláusula que fira a Constituição, poderá afastá-la ou homologá-la parcialmente.

Outra faceta importante é a que diz respeito à validade desta prova para a condenação. Evidentemente, ela, isoladamente, de nada servirá, e não pode ser fundamento de uma condenação. O que ocorre, regra geral, é que ela indica os caminhos ao MP ou à polícia e, posteriormente, são colhidas provas das acusações. Estas, se confirmadas, poderão embasar a sentença condenatória.

Indaga-se se a colaboração premiada pode ser aplicada a qualquer crime ou apenas nos previstos em lei especial (bando e quadrilha, sequestro, tráfico de entorpecentes, lavagem de dinheiro e de organizações criminosas, inclusive as terroristas).

O artigo 13 da Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (9.807/99) não faz menção a qualquer tipo de crime. O fato da lei que trata das organizações criminosas e outras serem específicas não altera a previsão geral da Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas. Não há antagonismo entre elas. Portanto, por exemplo, nada impede que em um crime de peculato um promotor de Justiça ou um delegado de Polícia Civil aceite um pedido de colaboração premiada.

Questão das mais complexas é a que se refere à menção, em um depoimento de colaboração premiada, de uma autoridade com foro por prerrogativa de função. Imagine-se que, ao expor um sistema organizado de corrupção, o colaborador mencione um deputado estadual cujo foro natural é o Superior Tribunal de Justiça. Como fará o agente do MP que colher a prova? Para uns, deve suspender o depoimento e requerer ao juiz de primeira instância a remessa do processo ao STJ. Para outros, deve prosseguir e se, ao final, houver alguma razoabilidade na referência, aí então propor a remessa ao STJ. A segunda opção é a mais razoável. Terminado o depoimento, ele será submetido ao juiz e este, sem qualquer exame da existência ou não de responsabilidade criminal do parlamentar, enviará o processo ao tribunal competente.

O momento da colaboração premiada é muito importante. Se os fatos são complexos, aquele que primeiro colaborar poderá não ser denunciado pelo MP, é dizer, nem responderá ação penal (artigo 4º, parágrafo 4º, inciso II). Se vier a ser processado, poderá até ser perdoado, ou seja, não cumprir pena (artigo 4º). Mas, se a colaboração a vantagem será menor, apenas a redução da pena à metade (artigo 4º, parágrafo 5º). A diferença de tratamento não é indevida. A iniciativa após uma sentença condenatória não é genuinamente voluntária. Pretender que as situações sejam iguais, fere a lógica da vida, onde, em tudo, há opções, vantagens e desvantagens. O brocardo jurídico prior in tempore, potior in jure (quem antecede em tempo, avantaja-se em direito), lembrado por Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª. ed., página 411), aplica-se ao caso como uma luva.

O advogado tem um papel relevante nesta nova realidade. Pode auxiliar seu cliente nas tratativas do acordo, examinar as múltiplas facetas do que vier a ser ajustado, encontrar o melhor caminho. Em tese de doutorado defendida na PUCPR em 29 de março passado, o advogado Marlus Arns de Oliveira observou, com acerto, que “cabe ao advogado apresentar a seus clientes todas as estratégias possíveis de defesa, inclusive a colaboração premiada, visto ser essa um instrumento legítimo de defesa, portanto, uma opção entre outras tantas possíveis dentre os mais lídimos princípios constitucionais” (página 147).

Em realidade, atrás de toda a discussão está uma questão muito simples: ou ficamos nas provas do Código de Processo Penal de 1940, agarrados a um passado que nada tem a ver com o mundo contemporâneo, ou nos adaptamos às novas circunstâncias, criando mecanismos adequados de combate à criminalidade. Nostalgia ou pragmatismo, eis a questão.

A opção brasileira está sendo a segunda. E os resultados estão à vista, com decisões judiciais que dão a todos, independentemente da condição econômica ou do poder político, o mesmo tratamento. E que de sobra significam recuperação de expressivas quantias oriundas da corrupção. Noticia o site do jornal O Globo, em 1º de janeiro de 2016, a recuperação de R$ 2,4 bilhões.

Em suma, muito ainda há que se discutir sobre este novo instrumento de prova. As lacunas da lei, as dúvidas, serão supridas com o tempo e a partir de casos concretos. A prática é que levará à teoria. A resistência natural ao novo será superada, pois, como lembra o cantor Belchior na antiga e atual música Como nossos pais, “o novo sempre vem”. 

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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