Processo Familiar

Transmissibilidade dos alimentos: a lei, a doutrina e o STJ

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

3 de abril de 2016, 8h00

Spacca
A transmissibilidade da obrigação alimentar é tema polêmico e complexo. Não são poucas as possíveis orientações e soluções a se adotar quando da morte do devedor de alimentos.

Apenas para que se delimite a questão, com a morte do alimentando (credor), a obrigação, em regra, se extingue, pois os alimentos são personalíssimos e, por isso, não podem ser cedidos a título oneroso ou gratuito nem mesmo penhorados.

Digo, em regra, pois a jurisprudência criou o direito de acrescer, em arrepio ao instituto e à lei, quando os alimentos decorrem do ato ilícito. Nessa hipótese, o STJ admite que, com a morte de um dos credores ou sua maioridade, o outro receba a integralidade da prestação alimentar[1].

Assim, o que se abordará nestas linhas é a sorte da obrigação alimentar após a morte do devedor.

I – Notas históricas
No Direito anterior à codificação brasileira, ou seja, sob a égide das Ordenações Filipinas, Lafayette Rodrigues Pereira[2] afirmava que:

“A obrigação de alimentos, verificadas as condições de sua exigibilidade, ainda em vida do devedor, entra na classe das dívidas que onerarão a herança e como tal é transmissível aos herdeiros”.

Segundo o autor, a fonte da regra é o parágrafo 1º do Título 99 do Livro 4 das Ordenações Filipinas. Na realidade, a única menção à morte que se tem está na lição de Candido Mendes ao comentar o parágrafo 6º: “A viúva que ficou pobre pelo falecimento do marido terá ação de alimentos contra os herdeiros deste? Os praxistas, fundados na Lei 1 § 7 Cod. (de rei uxor. act.) seguem que os herdeiros do marido devem à viúva alimentos no ano do luto, por isso que só ao fim de um ano ordinariamente se faz a entrega do dote, mas quanto ao tempo posterior não são concordes”[3].

Contudo, apesar de ausência de menção expressa, essa era a leitura feita no século XIX por parte da doutrina portuguesa. Assim, Borges Carneiro afirma que a obrigação se transmite ao herdeiro ou donatário universal daquele que deveria alimentar[4].

Por outro lado, Coelho da Rocha, fiel ao disposto no Título XCIX do Livro 4 das Ordenações, entende que, no caso de morte do pai, o filho é sustentado pelos seus próprios bens e rendimentos, e, na falta de tais bens, pela mãe[5].

Também Liz Teixeira, seguindo o texto das Ordenações, afirma que matrimonio patris morte soluto, filius suis tantum expensis, ou seja, com a morte do marido, tendo o filho bens para se sustentar, é destes que viverá, seguindo a regra do Assento pela qual receber alimentos é situação de exceção. Contudo, se a morte fora da mãe, o pai prossegue com o dever de prestar alimentos, pois o pai mantém usufruto sobre os bens do filho. Com a morte do pai, cessa o usufruto e com ele a obrigação alimentar[6].

A doutrina brasileira seguia essa orientação. Trigo Loureiro afirma que, dissolvido o matrimônio por morte do pai, os filhos devem ser alimentados à custa de seus próprios bens[7].

O Esboço de Teixeira de Freitas, em seu artigo 1621, previa:

“Art. 1621. Cessa a obrigação de prestar alimentos: (…) 4º. Desde o dia em que falecer o que presta alimentos”.

Claramente pretendia o Esboço que a obrigação futura cessasse, mas a pretérita seria paga nas forças da herança, pois o Esboço mencionava apenas a cessação, e não a extinção das prestações vencidas e não pagas.

Essa orientação projetada seguia a lição de parte considerável da doutrina portuguesa (como os mencionados Coelho da Rocha e Liz Teixeira), bem como a própria doutrina brasileira (Trigo Loureiro, por exemplo).

Sobre o tema da transmissão da obrigação alimentar, o Código Civil de 1916 dispunha:

“Art. 402. A obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros do devedor”.

A razão de ser da regra, segundo Clóvis Beviláqua, é que a obrigação alimentar, sendo personalíssima, não obriga os herdeiros a cumpri-la. Se há atrasados, os sucessores respondem, mas não por se tratar de pensão, e sim de uma dívida comum que deixou de ser paga pelo morto[8].

Aliás, o projeto Beviláqua trazia no preceito o seu fundamento:

“Art. 471 – A dívida alimentar é personalíssima; não se transmite aos herdeiros do devedor”.

Note-se que o Código Civil de 1916 cristaliza orientação histórica já adotada na vigência das Ordenações segundo parte expressiva da doutrina. Nada se cria, mas se consolida entendimento já presente no sistema.

Foi a Lei do Divórcio (6.515/77) que pretendeu alterar a questão, conforme explicaremos em nossa próxima coluna.


[1] AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. MORTE DE MÃE DE FAMÍLIA. PENSÃO MENSAL. DIREITO DE ACRESCER. CABIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A jurisprudência desta Corte admite nas hipóteses de pensionamento por ato ilícito, em que há vários favorecidos, a possibilidade de reversão da quota de um beneficiário aos demais, quando ele deixar de perceber a verba, a qualquer título. (AgRg no REsp 676.887/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 16/05/2013, DJe 24/06/2013)
[2] Direitos de Família, comentada por José Boniofácio de Andrada e Silva, Editores Virgilio Maia, Rio de Janeiro, 1918, fac-símile, p. 279.
[3] Comentários ao Título XCIX do Livro 4º das Ordenações, pg. 989, edição fac-símile do Senado.
[4] Direito Civil de Portugal, Tomo II, Lisboa, 1867, p. 190
[5] Instituições de Direito Civil Português, tomo I, 1907, Rio de Janeiro, p. 220.
[6] Curso de Direito Civil Português. Primeira parte, Coimbra, 1856, p. 339.
[7] Instituições de Direito Civil Brasileiro, v. 1, Garnier, 1871, fac-símile, p. 108.
[8] Código Civil Comentado, volume II, Francisco Alves, 1956, p. 306.

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