Opinião

"Lista negra" de consumidores que processam empresas é prática abusiva

Autor

  • Cristiano Heineck Schmitt

    é advogado doutor e mestre em Direito pela UFRGS professor de Direito da Escola de Direito da PUC-RS pós-graduado pela Escola da Magistratura do RS secretário-geral da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB-RS Membro do Instituto Brasilcon e do Ibdcont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual).

3 de abril de 2016, 7h42

*Artigo originalmente publicado no site Atualização CDC.

A prática da denominada “lista negra” de consumidores é absolutamente reprovável, pois coloca em risco um direito constitucionalmente garantido que é o direito de acesso ao Poder Judiciário.

A “lista negra”, como o próprio nome já denuncia, é uma lista elaborada por financeiras e bancos através da qual são cadastrados consumidores que litigam contra elas em juízo, seja em busca de revisão de juros, como também em outras situações variadas. Em princípio, bastaria ao consumidor apresentar pleito judicial contra determinada instituição financeira para passar a ser considerado persona non grata pelo sistema, sofrendo restrições quando estivesse em busca de crédito. Toda vez que postula-se a realização de contrato de empréstimo, este lhe seria negado, pelo simples fato de possuir demanda judicial contra banco.

Neste sentido, a lista negra transforma-se em instrumento de retaliação, punindo o cidadão que tenta socorrer-se de potenciais abusos com o recurso ao Poder Judiciário.

Recentemente, foi julgada uma ação indenizatória (processo 010/1.10.0020059-0) proposta por uma consumidora em face da BV Financeira e do Banco BMG em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul.

No caso da ação indenizatória, a consumidora ingressou em juízo sustentando que procurou uma revendedora de automóveis para financiar um veículo. Na ocasião, o vendedor se reportou a um preposto da BV Financeira, o qual negou a concessão de crédito à consumidora por ter ela já litigado em face do Banco BMG em suposta ação revisional (o que sequer era verdade, pois se tratava de outro tipo de ação).

O magistrado de primeiro grau entendeu, através da oitiva de testemunhas, que realmente existia a referida lista, e que a consumidora teve o crédito negado devido à inclusão na mesma.

E, como conclusão, o dano moral restou configurado na modalidade in re ipsa, ou seja, decorrente da presunção de abalo em face da simples inclusão, tal como verificado com registros negativos de crédito inverídicos, ficando a condenação mantida em dezoito mil reais.

De acordo com o julgador, “nenhuma lista negativa pode ser criada, fomentada, administrada, alimentada ou consultada se o seu conteúdo for a restrição de crédito a quem ingressou com ação judicial contra empresa integrante do sistema financeiro”. Além disso, colacionou-se à decisão, por analogia, julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que vedam a prática abusiva que visa impedir o acesso de algumas pessoas ao mercado de trabalho, utilizando-se e divulgando-se lista negra de trabalhadores que já tenham acessado à justiça do trabalho (vide apelações cíveis 70011751625 e 70009104837). Diante desta situação, referida lista serviria como fator de contraindicação para contratação do referido trabalhador, que tentou reaver seus direitos.

No caso em comento, irresignados, o Banco BMG e a BV Financeira apelaram. O Banco BMG sustentou que não há, nos autos, provas de que tenha recebido pedido de análise de crédito da referida consumidora, que não nega crédito por razão dos clientes ajuizarem ações judiciais contra alguma instituição financeira. A BV Financeira aduziu sua ilegitimidade passiva, e quanto ao mérito, alegou que a consumidora não demonstrou a ocorrência do dano moral sofrido, pedindo pelo provimento do recurso para fins de redução do valor da condenação, assinalando-se também a sua discricionariedade na concessão de crédito.

No âmbito da Apelação Cível nº 70050395730, julgada em 01.10.15, pela Sexta Câmara Cível do TJRS, Relator Des. Sylvio José Costa da Silva Tavares, à unanimidade, negou-se provimento ao recurso do BMG e da BV.

O presente caso é, possivelmente, capaz de tornar-se um paradigma para a situação das “listas negras” de consumidores. Até então, não se registrava um número palpável de condenações a título de danos morais para as empresas que mantinham este tipo de cadastro, até mesmo porque dificilmente se lograva trazer, aos autos, a prova da efetiva existência desta prática.

Condenações, nestes casos, até um momento anterior, ainda eram tímidas. No âmbito do Recurso Inominado nº 0002480-09.2013.8.16.0184/0 (2ª Turma Recursal do Paraná, Rel. Juiz Marco Vinícius Schiebel, julgado em 27.02.2015), manteve-se a decisão do primeiro grau que condenou instituição financeira ao pagamento da verba de dez mil reais a título de indenização por danos morais pela negativa de crédito ao consumidor, que, apesar de ter sido sempre um bom cliente para a instituição, pendia a alegação de estar incluído na chamada “lista negra”.

A manutenção da “lista negra” viola princípios e valores esculpidos na Constituição Federal de 1988, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da CF/88), e direito de acesso ao Poder Judiciário (artigo 5º, inciso XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”). Este último, então, é peça essencial ao exercício de uma democracia saudável, desejável para um século XX e XXI, e que representa uma expectativa oferecida aos cidadãos no combate a regimes de exceção, atentatórios ao Estado de Direito.

Por certo que qualquer instituição financeira pode e deve avaliar a capacidade econômica dos pretendentes à crédito, analisando a capacidade de adimplemento destes, sob pena comprometer, não somente a sua saúde financeira, mas também todo o sistema financeiro nacional.

Neste sentido, por exemplo, vejamos a não tão distante “crise do subprime”, que foi uma crise financeira catastrófica registrada em final de julho de 2007, nos Estados Unidos, mas afetando vários outros países, inclusive muitos com economia estável. Tal calamidade econômica verificou-se em função da concessão, por bancos, de empréstimos hipotecários de alto risco a indivíduos de renda limitada, contaminando dezenas de outras instituições financeiras para uma situação de insolvência, com intensa repercussão as bolsas de valores de todo o mundo. Por falta de regulação e controle suficiente do governo norte-americano, este tipo de operação transitou sem coberturas necessárias, e daí, ter sido indevidamente facilitada, gerando um elevado grau de risco, com ausência de garantias suficientes por parte dos tomadores de crédito.

Ou seja, atividade bancária de concessão de crédito não pode se pautar pelo espírito exclusivamente especulativo, sem lastro de garantias que evitem o comprometimento do sistema. Por outro lado, em não havendo restrição ao pretenso mutuário de crédito, o qual afigura-se como legítimo candidato a este produto, abusiva se mostra a negativa, ainda mais se pautada por motivação revanchista decorrente do uso do Poder Judiciário para proteção de direitos constitucionais, realçando-se o status da defesa do consumidor como direito fundamental (inciso XXXII do artigo 5° da carta de 1988).

A livre inciativa goza de proteção constitucional no Brasil, como acentua o artigo 170 da carta maior. Contudo, seu exercício não é intangível, blindado a um necessário controle, que garanta seu desempenho em prol do desenvolvimento da nação. E o direito do consumidor é um princípio (inciso V do referido artigo), cuja não observação torna ilegítima atividade empresarial, inclusive a bancária.

Por certo, a discriminação negativa, punitiva, a ser exercida por aquelas instituições que oferecem serviços autorizados, regulados e fiscalizados pelo Estado, como é o caso da atividade bancária, deve ser reprimida e combatida.

Ao saber da existência de tal lista, um determinado consumidor ver-se-á forçado a pensar duas vezes antes de ingressar com uma ação revisional de juros, com receio de incluído ser em rol depreciativo, deixando de obter crédito quando postulá-lo. Em outros termos, este mesmo consumidor acabará submetendo-se a abusos, deixando de reivindicar direitos, com medo de potenciais retaliações, como, por exemplo, a sua exclusão do mercado.

Por outro lado, o consumidor que ingressou com eventual ação e, por isso, passa a fazer parte da lista negra, restará a sensação de impotência, pois sabe que não obterá o crédito por razão de expedientes escusos utilizados pelas financeiras.

Além da punição civil, com imposição de verba indenizatória pelo dano moral verificado, o caso também demanda a fiscalização do Banco Central do Brasil, com imposição de multa administrativa consistente, de forma que tal conduta não mais volte a ser perpetrada pelos envolvidos. 

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    é advogado, mestre e doutor em Direito pela UFRGS, pós-graduado pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul-Ajuris, secretário-geral adjunto do Instituto Brasilcon e professor da Faculdade de Direito da PUC-RS

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