Direito civil atual

Que estrangeiros podem adquirir imóveis rurais no Brasil? (parte 1)

Autor

  • Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes

    é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza) doutor em Direito Civil/Romano (USP) livre-docente em Direito Romano (USP) professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

21 de setembro de 2015, 8h01

A convite de dois colegas da USP, os professores Ignácio Poveda e Otávio Luiz Rodrigues Junior (a quem agradeço sinceramente a oportunidade), inicio hoje minha participação na coluna “Direito Civil Atual”, produzida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Acompanho as inúmeras (e regulares) publicações desta coluna desde seu princípio, em fevereiro deste ano. Trata-se, sem sombra de dúvida, ao lado da “RDCC – Revista de Direito Civil Contemporâneo” (também editada por essa Rede de Pesquisa), de um dos mais importantes meios de divulgação no Brasil de uma forma-de-pensar crítica do Direito Civil. Acolhendo sugestão do professor Otávio Luiz Rodrigues Junior, escolhi como meu tema inaugural uma questão não muito explorada pela doutrina, mas cujos reflexos econômicos no atual momento do Brasil têm provocado acirradas discussões na prática: a aquisição de imóveis rurais por estrangeiros.

Há muito que estrangeiros fazem investimentos no Brasil, adquirindo imóveis. Tal fato não é recente. Na verdade, em mais de um momento histórico foi mesmo desejável, sendo incentivado, sempre por questões econômicas, pelo Governo. Veja-se, por exemplo, o caso da grande vinda de imigrantes no final do século XIX a Estados como São Paulo (mormente o caso dos imigrantes italianos). Em outros momentos, o fluxo de imigrantes diminuiu, mas acentuou-se uma remodelação interna da população (migração). Ainda nestes momentos, a aquisição de imóveis por estrangeiros não era de forma ampla restringida, mas limitações sempre havia (diferentemente do que ocorre hoje na União Europeia, tendo em vista que a Diretiva 88/361/CEE veda que sejam feitas restrições a movimentos de capitais, dentre os quais os investimentos imobiliários efetuados por “não-residentes” – artigo 1g e Anexo I, item II.A.).

Atualmente, o problema ganhou contornos novos. De fato, trata-se de uma das questões geopolíticas mais interessantes da atualidade: a aquisição de propriedade de bens imóveis por estrangeiros e o fenômeno da concentração fundiária (land grabbing).

Desde 2008, em função da grave crise econômica que atingiu grande parte dos países do mundo, indivíduos, empresas e governos estrangeiros sentiram a necessidade de ampliar significativamente o seu investimento na aquisição de grandes extensões de terras (em especial no Hemisfério Sul) para a produção agrícola, como uma forma de minimizar o impacto de futuras novas crises no preço de alimentos e combustíveis (neste último aspecto, pela produção de biocombustíveis). Em suma, dentre outros aspectos, quer-se evitar um novo episódio de “agroinflação”; pretende-se diminuir a volatilidade especulativa nos preços dos produtos agropecuários.

Dentre os países que mais sofreram o impacto dessas medidas de proteção está o Brasil. O nosso país é um dos principais destinos de investimentos estrangeiros diretos (IED), sendo “o mais internacionalizado dentre os membros dos Brics em termos de estoque de IED em relação ao seu PIB (18%), seguido por Rússia (13%), Índia (10%) e China (9%)”[1]. Ademais, especificamente quanto ao mercado imobiliário, o Brasil apresenta vantagens evidentes com relação aos demais membros do Brics no que diz respeito a investimentos.

Surgiu daí a preocupação do ogverno brasileiro em, de alguma forma, controlar o ritmo dessas aquisições pelos estrangeiros. Não que se quisesse impedir a entrada de capital estrangeiro por esse modo ou que não existisse, já há muito tempo, uma clara preocupação e regulamentação da matéria (aquisição de terras por estrangeiros), mas houve um aumento de interesse sobre ela nos últimos anos (que estimulou amplos debates).

Oficialmente, o governo brasileiro, além de destacar o caráter estratégico desse controle, sustentou que a ausência deste implicaria: “a) expansão da fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação; b) valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária gerando aumento do custo do processo desapropriação voltada para a reforma agrária, bem como a redução do estoque de terras disponíveis para esse fim; c) crescimento da venda ilegal de terras públicas; d) utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição dessas terras; e) aumento da grilagem de terras; f) proliferação de "laranjas" na aquisição dessas terras; g) incremento dos números referentes à biopirataria na região amazônica; h) ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel; i) aquisição de terras em faixa de fronteira pondo em risco a segurança nacional” (item 7 do Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ, aprovado pelo Parecer AGU LA-01/2010).

Se a necessidade de restringir o ritmo dessas aquisições é clara, não se pode dizer o mesmo dos limites dessas restrições. Primeiramente, há a questão de se determinar quais imóveis podem ou não ser adquiridos por estrangeiros (e qual a limitação quantitativa dessas aquisições).

A Constituição Federal, em seu art. 190, indica somente um critério objetivo: a legislação deve regular e limitar a aquisição de propriedade rural (não da urbana) por pessoa física ou jurídica estrangeira. “Propriedade rural”, nos termos da legislação infraconstitucional, é “o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada” (art. 4.º, I, Lei 4.504/64 – Estatuto da Terra).

A matéria foi tratada pela Lei 5.709/71 (regulamentada pelo Dec. 74.965/74), nos seguintes termos (pressupondo a adoção da noção de “módulo de exploração indefinida” – MEI, que varia conforme o município):

I – caso o imóvel tenha até 3 MEI e o adquirente seja pessoa física, não é necessária qualquer formalidade especial (art. 7.º, §1.º, Dec. 74.965/74), salvo no caso de aquisição de mais de um imóvel (§3.º).

II – caso o imóvel tenha entre 3 e 20 MEI e o adquirente seja pessoa física, deverá haver autorização do Incra (§2.º).

III- caso o imóvel tenha entre 20 e 50 MEI e o adquirente seja pessoa física, deverá haver autorização do Incra e aprovação de projeto de exploração pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (§4.º).

IV- caso o imóvel tenha mais de 50 MEI e o adquirente seja pessoa física, a aquisição somente seria possível se esse limite fosse aumentado pelo presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional (§5.º) ou se houvesse autorização do Congresso Nacional (art. 23, §2.º, da Lei 8.629/93).

V- caso o imóvel tenha até 100 MEI e o adquirente seja pessoa jurídica, o imóvel rural deve ser destinado à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais ou de colonização, vinculados aos seus objetivos estatutários (art. 5.º, Lei 5.709/71) e deve haver aprovação de projeto de exploração pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (art. 14, §1.º, Incra IN 76/2013).

VI- caso o imóvel tenha mais de 100 MEI e o adquirente seja pessoa jurídica, deve haver autorização do Congresso Nacional (art. 23, §2.º, da Lei 8.629/93).

A esses limites objetivos, soma-se a necessidade de prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional acerca de quaisquer “transações com imóvel rural, que impliquem a obtenção, por estrangeiro, do domínio, da posse ou de qualquer direito real sobre o imóvel” na faixa de fronteira (art. 2.º, V, da Lei 6.634/79).

Como se vê, a regulamentação da matéria é confusa e implica a observância de inúmeras formalidades para a aquisição da propriedade do imóvel. Ainda assim, quanto a essas formalidades, poucas são as controvérsias na prática. Na verdade, o maior problema é a definição de quem sofreria as restrições da legislação, ou seja, de quem é, para o fim dos diplomas legais citados, o “estrangeiro” quando pessoa jurídica. Este tema será objeto da parte seguinte (parte 2) desta coluna[2].

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

 


[1] J. A. Baptista Neto – G. C. Domingues – A. B. de Andrade, O Brasil, os demais BRICS e a agenda do setor privado, in Mesa redonda: o Brasil, os BRICS e a agenda internacional, Brasília, FUNAG, 2012, p. 132.

[2] Para referências mais exatas e indicação bibliográfica, cf. o nosso artigo: Bernardo B. Queiroz de Moraes, Registro da propriedade imobiliária no direito brasileiro – aquisição de terras por estrangeiros, in T. Alexeeva (org.), Земля как Объект Права в России и Бразилии, São Petersburgo, HSE, 2014, pp. 82-95.

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    é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza), doutor em Direito Civil/Romano (USP), livre-docente em Direito Romano (USP), professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

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