Processo Familiar

Retroagir ou não retroagir: eis a questão!

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

27 de setembro de 2015, 8h00

Spacca
Foi com certo espanto que li pelas redes sociais que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em decisão de 18 de agosto de 2015, entendeu pela possibilidade de “retroatividade do regime de separação absoluta de bens” por força de contrato de união estável firmado pelas partes. Em suma, informa a ementa: “Efeito ex tunc das disposições patrimoniais. Possibilidade”.

Em poucas linhas, a ementa do acórdão indica que, “realizado pacto intercorrente, esse tem a capacidade de produzir efeitos de ordem patrimonial tanto a partir da sua celebração quanto em relação a momento pretérito à sua assinatura, dependendo de exame o caso concreto”[1].

A questão que se coloca é: por que o acórdão comete um equívoco em termos de direito civil?

O debate sobre a possibilidade de retroatividade do regime de bens adotado pelo contrato de união estável passa, na realidade, pela compreensão da Teoria Geral do Direito Civil.

Exemplos ajudam na compreensão da questão, e o caso concreto sob julgamento será utilizado. A união estável em questão se iniciou em 26 de junho de 2005, ou seja, já na vigência do atual Código Civil (em vigor desde 11 de janeiro de 2003) e terminou em 31 de agosto de 2009.

Em 8 de abril de 2008, decorridos quase três anos do início da união estável, os companheiros celebraram contrato de convivência adotando como regime a separação total de bens cuja cláusula terceira prevê:

“Que no tempo de duração deste contrato o regime adotado é o da separação absoluta de bens, ou seja, todos e quaisquer bens móveis ou imóveis, direitos e rendimentos, adquiridos por qualquer dos CONVIVENTES antes ou durante a vigência do presente contrato pertencerão a quem os adquiriu, não se comunicando com os bens da outra parte: os bens aquestos (sic) não se comunicarão”.

Note-se que todo o período de convivência do casal se deu na vigência do Código Civil aplicando-se, portanto, à relação as regras dos artigos 1723 a 1727 deste diploma.

Prevê o artigo 1725 do Código Civil o seguinte:

“Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

De início, deve-se ressaltar que imprecisamente afirma-se que há um regime de bens entre os companheiros. Isso porque, sendo os companheiros pessoas solteiras (a união estável não gera estado civil de conviventes ou companheiros), não poderiam ter um regime de bens propriamente dito.

Pela redação do Código Civil, haveria uma situação de ilogicidade em que João, vivendo em união estável, se declararia “solteiro pelo regime de comunhão parcial de bens”.

Razão assiste a Álvaro Villaça Azevedo, que, na elaboração do anteprojeto que viria a ser aprovado e transformado em lei (9.278/96), já previa condomínio e não comunhão entre as partes[2]. Afirma o autor que o artigo 1725 contém “exagerada dose de atecnia”[3].

Contudo, por força do texto legal, ainda que atécnico, os companheiros têm um regime legal ou supletivo idêntico ao do casamento: a comunhão parcial de bens (artigo 1.640 e 1725).

Apliquemos o regime de comunhão parcial ao caso concreto decidido, em arrepio ao bom direito, pelo tribunal de Santa Catarina.

Supondo, por hipótese, que após o início da união estável, antes da celebração do contrato, o companheiro adquiriu certos bens imóveis. No momento da aquisição, por força do artigo 1725, o bem adquirido passou a ser comum, ou seja, integrou a comunhão. Com a aquisição, por força da lei, o bem passou à propriedade do companheiro e da companheira (em sistema de comunhão, e não condomínio).

A regra aplicável é a existente no momento da aquisição, e, naquele momento, por ausência de contrato escrito, incidiu o regime da comunhão parcial.

No ano de 2008, as partes acordam, por contrato, que o regime adotado de maneira retroativa (volta ao início da união estável, como que por ficção) é o da separação total de bens.

O problema que se coloca é o seguinte: no ato da aquisição do bem, este passou a ser comum por força da lei, mas o contrato determina que aquele bem que já é comum “passe a ser particular”.

É de se frisar que no momento da aquisição por um dos companheiros, de imediato, o bem passa a integrar a meação, razão pela qual se incorpora a seu patrimônio ipso facto. É direito adquirido, portanto.

O companheiro ou companheira teria “perdido” a meação anteriormente adquirida. Logo, a pergunta que se coloca é: “a perda da meação” decorrente da retroatividade do contrato está inserida em qual categoria jurídica? Sim, porque um dos companheiros que já era meeiro (e coproprietário com certa leniência da linguagem) deixa de sê-lo em razão da retroatividade.

Um bem adquirido e incorporado ao patrimônio só deixa de integrá-lo se for transferido por um negócio jurídico (doação, permuta, venda), se a propriedade for perdida (usucapião, penhora e consequente adjudicação ou arrematação) ou se houver renúncia ao direito de propriedade.

Como é a vontade que faz com que a meação já adquirida seja perdida, haveria duas hipóteses apenas para se admitir a “retroatividade do contrato”, que seriam as seguintes: i) “retroatividade” é, na verdade uma doação entre companheiros; ii) “retroatividade” implica, na verdade, renúncia ao direito de propriedade sobre os bens.

Aliás, o julgado em questão “passa perto” da ideia de autonomia da vontade como poder ungido aos contratantes de reger seus interesses. Pois bem.

i) “Retroagir” significa doar o que foi adquirido.

Se o companheiro opta por “ceder a meação” por meio da “retroatividade” e nada recebe por isso, há, em tese, um negócio jurídico de “doação da meação” que fora adquirida durante a convivência do casal. Isso, por si, é inviável, pois durante a comunhão a meação não pode ser transferida, pois não se trata de condomínio (em que se transfere a fração ideal).

E mais, como a “retroatividade” implica a intenção de transferir o bem sem nada receber (animus donandi?), é necessário recolher o imposto de transmissão em favor do Estado (este imposto ora se chama ITCMD ou ITCD, a depender do estado da federação). Ainda. A “retroatividade”, como verdadeira doação, sujeita-se às regras deste contrato:

  • se recair sobre imóveis cujo valor supere 30 salários mínimos (artigo 108 do CC), necessitará de instrumento público sob pena de nulidade;
  • não pode ser da totalidade dos bens sem a reserva de renda para a subsistência (doação universal), sob pena de ser nula (artigo 548 do CC);
  • e, por fim, deve respeitar os limites legais (artigo 549 do CC) se o doador tiver herdeiros necessários. Isso porque será nula se atingir a parte dos bens do doador (nulidade parcial quanto ao excesso) que não poderia dispor em testamento (doação inoficiosa).

Se, por hipótese, por meio da “retroatividade”, um dos companheiros transferir todos os bens que tem, a doação será nula e, também, a disposição da “retroatividade”. Ainda, se invadir a legítima, nula é a doação logo também será a “retroatividade”.

Nota-se que a falta de domínio de categorias jurídicas é o que leva o julgado a afirmar que “a ampla liberdade constante dentro do ordenamento jurídico sanciona a faculdade de livremente disporem sobre as questões patrimoniais ínsitas à comunhão”. Correta a afirmação, desde que adotando o regime de separação de bens o casal faça a partilha do patrimônio anteriormente adquirido e, então, por meio de doação, haja a livre disposição.

ii) “Retroagir” significa renúncia ao direito de propriedade.

Renúncia é o ato pelo qual o proprietário declara explicitamente o propósito de despojar-se de seu direito. Para valer não necessita de aceitação de quem quer que seja[4].

A renúncia de direito de propriedade sobre imóveis cujo valor supere 30 salários mínimos também exige a forma pública (artigo 108 do CC), sob pena de nulidade. A renúncia para produzir efeitos quanto a terceiros, recaindo sobre imóveis, necessita do registro do instrumento público junto à matrícula do imóvel. Quanto aos móveis, sua eficácia não se subordina a qualquer exigência[5].

Mas qual é o problema de se compreender a “retroatividade” como renúncia? A renúncia é ato unilateral, ou seja, existe e produz efeitos independentemente da concordância ou aceitação da outra parte. Se a “retroatividade” for entendida como renúncia, o companheiro não se torna automaticamente proprietário do bem sobre o qual o outro renunciou. A coisa passa a ser de ninguém, e para o outro companheiro se tornar proprietário deverá se valer das formas de aquisição da propriedade móvel (ocupação, por exemplo) ou imóvel (usucapião, por exemplo).

Por tudo o que expusemos, a conclusão é uma só. O contrato de união estável não retroage nem pode retroagir gerando “perda da meação”, pois se trata de direito adquirido e já incorporado ao patrimônio de seu titular. Razão tem o Superior Tribunal de Justiça quando decidiu, segundo o melhor direito, pela irretroatividade da cláusula contratual:

“Com efeito, o mencionado dispositivo legal autoriza que os conviventes formalizem suas relações patrimoniais e pessoais por meio de contrato e que somente na ausência dele aplicar-se-á, no que couber, o regime de comunhão parcial. Em síntese: enquanto não houver a formalização da união estável, vigora o regime da comunhão parcial, no que couber” (REsp 1.383.624-MG, rel. min. Moura Ribeiro, julgado em 2/6/2015, DJe 12/6/2015).


[1] TJ-SC, 3ª Câmara de Direito Civil, Apelação Cível 2015.026497-8, relatora des. Maria do Rocio Luz Santa Rita, j. 18.08.2015.
[2] Artigo 5°: Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
[3] Estatuto da Família de Fato, 3ª edição, Atlas, 2011.
[4] Orlando Gomes, Direitos Reais, 19ª edição, Forense, p. 211.
[5] Orlando Gomes, Direitos Reais, 19ª edição, Forense, p. 211.

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