Necessidade e filtro

"Grande número de processos desqualifica trabalho da Corte de Cassação"

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27 de setembro de 2015, 6h31

Spacca
O número desproporcional de processos que chegam à Corte de Cassação da Itália desqualifica o trabalho do tribunal. A avaliação foi feita pelo primeiro presidente do tribunal, Giorgio Santacroce, em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico.

A Corte de Cassação da Itália equivale, em linhas gerais, ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro: é a última instância de análise de direito infraconstitucional. No entanto, como diz o nome, a Corte italiana apenas cassa ou mantém as decisões das instâncias inferiores e as devolve para rejulgamento.

Outra diferença é que a Corte de Cassação, embora não seja um tribunal constitucional, é a mais alta instância do Judiciário italiano. O Tribunal Constitucional não faz parte do Poder Judiciário na Itália.

É o maior tribunal do mundo em número de juízes: são 302 julgadores, sem quinto constitucional. E também é o maior em número de casos. Recebe, por ano, 30 mil casos civis e 60 mil casos penais, aproximadamente.

Para que o tribunal continue funcional, seu primeiro presidente defende a criação de filtros de acesso. Na opinião de Santacroce, que ocupa o cargo desde 2013, só poderiam chegar ao tribunal casos como Habeas Corpus, “de direitos fundamentais da pessoa, causas que superam certo valor monetário, e questões fundamentais de direito substancial ou processual”.

Santacroce acredita que a quantidade de advogados na Itália também contribui para a quantidade de processos em trâmite na Corte de Cassação. Segundo ele, cerca de 55 mil profissionais estão autorizados a militar na corte. Na França, por exemplo, por volta de 150 advogados podem atuar na cassação local. “O advogado mais modesto faz processos mal fundamentados para viver, e isso dá trabalho aos magistrados”, analisa.

Como procurador público e juiz, Santacroce, durante a sua carreira, já conduziu investigações e participou de processos judiciais envolvendo terrorismo internacional, crime organizado e máfia, crime econômico e roubo de obras de arte. Convidado pelo STJ para participar, em setembro deste ano, em Brasília, de seminário internacional de combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado, o magistrado disse em palestra durante o evento que o crime organizado representa um “verdadeiro desafio” do terceiro milênio e afronta a estabilidade democrática dos países.

Ele é autor de cerca de 200 publicações sobre Direito Processual Penal, Direito Trabalhista, Direito Civil, Medicina Forense e Direito Penal da União Europeia. Como acadêmico, já lecionou Direito Processual Penal na Universidade de Roma e na Escola de Administração Pública.   

Leia a entrevista:

ConJur — A formação acadêmica dos advogados impacta na morosidade da Justiça?
Giorgio Santacroce
Esse é um grande problema na Itália. Há um número de advogados desproporcional se comparado a outros países. É preciso estar inscrito em um álbum para poder advogar na Corte de Cassação. Essa exigência existe também em outros países europeus. Na França, por volta de 150 advogados podem atuar na Corte de Cassação local. Mas na Itália, são 55 mil advogados.

Conjur — Existem quantos advogados na Itália?
Giorgio Santacroce
Existem outros 250 mil advogados. Alguns são bons, mas há também os modestos. O advogado muito modesto faz processos mal fundamentados para viver, e isso dá trabalho aos magistrados. Denunciei esse fato em junho deste ano. Convoquei uma assembleia geral da Corte de Cassação para dizer que há muitos processos no tribunal, o que desqualifica o trabalho da corte.

Conjur — Existe algum filtro para impedir a chegada de tantos processos?
Giorgio Santacroce
Não existe um filtro adequado para barrar a chegada desses recursos até a corte.  Em outros países, como a Suécia, o primeiro-presidente diz se há pressuposto para o processo tramitar na Cassação e impede que seja aceito em caso negativo.  Na Itália, não existe esse filtro. Muitos recursos são declarados inadmissíveis, que o advogado não deveria ter proposto. Denunciei que há muitos advogados e que os testes para se tornar advogado deveriam ser mais sérios e seletivos. 

Conjur — Quais tipos de filtros poderiam reduzir o número de processos?
Giorgio Santacroce
Um filtro seria estabelecer quais são os processos que podem chegar ao tribunal, como Habeas Corpus, ou seja, de direitos fundamentais da pessoa. Ou de causas que superam certo valor monetário. Ou ainda questões fundamentais de direito substancial ou processual. A Corte de Cassação italiana tem algo hoje como 30 mil processos civis e 60 mil penais. São muitos processos, mesmo para 302 magistrados. Muitos processos similares são agrupados e julgados, mas na Cassação as causas parecidas. Mas não são exatamente iguais, sempre há algo diferente. 

Conjur — Como é feita a nomeação dos ministros da Corte de Cassação italiana?
Giorgio Santacroce
Por meio de mandato do Conselho Superior de Magistratura, órgão de autogoverno formado por magistrados nomeados de forma eletiva por todos os membros da categoria e também políticos, normalmente ex-parlamentares. O Conselho Superior nomeia todos os magistrados, inclusive o primeiro-presidente.

Conjur — O nomeado passa por algum tipo de avaliação?
Giorgio Santacroce
O nomeado pelo Conselho para a Corte de Cassação deve primeiro passar por uma deliberação feita por um comitê técnico e científico, que avalia a idoneidade do magistrado. O comitê é formado por um professor universitário, dois magistrados da Corte de Cassação e dois advogados.

Conjur — Qual é a divisão de seções da Corte de Cassação?
Giorgio Santacroce
A Corte de Cassação é articulada em sete seções penais e seis civis. Das penais, a 1ª se ocupa dos delitos contra a vida e resolve o conflito de competência ou jurisdição.  A 2ª julga crimes contra o patrimônio. A 3ª tem competência em matéria de crimes de contravenção, por exemplo, de poluição atmosférica, do meio-ambiente e contaminação alimentar. E trata também só de uma categoria de delito, o de violência sexual. A 4ª se ocupa essencialmente de crimes culposos, acidentes de trânsito mortais, de trabalho. A 5ª de bancarrota, casos societários. A 6ª de crimes contra a administração pública, como a corrupção e peculato.

Conjur — Alguma faz algum tipo de filtro de admissibilidade?
Giorgio Santacroce
A 7ª seção penal, que foi criada em 2006, é a da inadmissibilidade. Um grupo de magistrados analisa se há ou não motivo de recurso de cassação de todos os processos que chegam ao tribunal de caráter penal, se há motivo de fato. É uma seção para simplificar as coisas e decidir os processos que não merecem ser tratados pelo tribunal, melhorando a eficiência e velocidade do andamento dos processos. Essa seção também julga crimes em matéria de drogas e de crime organizado. Como há muitos crimes relacionados a essas duas áreas, estabeleci um turno de três meses entre as várias seções, para distribuir a matéria e não sacrificar uma só o tempo todo com o assunto.

Conjur — Qual é a divisão em matéria civil?
Giorgio Santacroce
Três seções são de competência variada.  A 1ª trata de direito da família, a 2ª, de crimes de condomínio, e a 3ª, de responsabilidade civil. A 4ª julga processos de matéria trabalhista, a 5ª, tributária e fiscal, e a 6ª faz a função da 7ª da penal, de admissibilidade, que troca de composição a cada seis meses.

Conjur — Como o conflito de jurisprudência de decisões entre as seções é resolvido?
Giorgio Santacroce
Há seções unidas tanto em matérias penais como civis, formada de nove magistrados e presidida pelo primeiro-presidente do tribunal.  Elas são chamadas para resolver conflitos de jurisprudência. Por exemplo, em matéria de droga, a 6ª seção pensa de um modo, a 3ª, de outro. Resolvemos quem tem razão na seção unida. Presido sempre a seção unida penal porque sou essencialmente um penalista. O meu vice, primeiro- presidente adjunto, que é um civilista, preside a seção unida civil. Como eu tenho também experiência civil na minha carreira, quatro vezes ao ano presido a seção unida civil, que tem a mesma função: resolver conflitos jurisprudenciais, mas também de jurisdição, ou seja, se uma matéria é de competência ordinária, administrativa ou contábil.

Conjur — Mas há também uma Corte Constitucional.
Giorgio Santacroce
Sim

Conjur — Como é a relação entre as duas cortes?
Giorgio Santacroce
A Corte de Cassação levanta questões de legitimidade constitucional e manda para a Corte Constitucional, e esta decide se acolhe ou não. Se o caso não é acolhido, o processo volta para a Cassação. A Corte Constitucional é um órgão formado por 15 membros. Cinco deles são nomeados pelos magistrados: três da Cassação, um do conselho de estado e outro do tribunal de contas. Cinco são nomeados pelo presidente da República, geralmente professores universitários.  Outros cinco são escolhidos pelo Parlamento. 

Conjur — Em 2014, a Corte Constitucional declarou inconstitucional a lei Fini-Giovanardi, que tratava de drogas.
Giorgio Santacroce
A lei regulava problemas relacionados a drogas, fazia distinções que foram consideradas ilegítimas pela Corte Constitucional. Foi criada outra lei que estabelece penas diferentes para porte de drogas leves, como maconha e haxixe, e pesadas, como cocaína e heroína. A lei declarada inconstitucional foi muito criticada porque estabelecia penas particularmente fortes e colocava no mesmo patamar o traficante e o consumidor — ou seja, aquele que possuía pouca quantidade de droga.

Conjur — Como está sendo construída a jurisprudência por causa dessa declaração de inconstitucionalidade?
Giorgio Santacroce
Os processos de drogas são muitos, e por esse motivo o distribuí entre as várias seções por turno. Resolvemos muitas questões na seção unida penal, tentamos salvar situações que foram criadas com a lei e que contrastavam com princípios da igualdade, paridade, de tratamento jurídico.

Conjur — Quantos magistrados compõem a Corte de Cassação?
Giorgio Santacroce
Ao todo, fazem parte da Corte de Cassação 302 magistrados, é a maior do tipo no mundo. Na França, são 99 magistrados, na Bélgica não chegam a 50. Na Holanda, são 18. A Corte se ocupa apenas do julgamento de processos civis, penais, trabalhistas, mas não administrativos nem contábeis. O Conselho de Estado é o vértice da magistratura administrativa e o Tribunal de Contas é o topo da magistratura contábil, que faz o controle das despesas públicas. Há também um Conselho da Magistratura Militar, porque existe uma magistratura militar que julga crimes militares, que é presidido pelo primeiro-presidente da Corte de Cassação.

Conjur — A magistratura militar foi criada depois da Constituição de 1948?
Giorgio Santacroce
Não, existe faz tempo. Durante o governo fascista tinha uma importância particular. Eram muitos os tribunais militares naquela época. Em tempos de paz, a magistratura militar se ocupa, obviamente, de casos modestos. Em tempos de guerra, o colaboracionismo com o invasor ou comportamento de deserção eram punidos com fuzilamento.

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