Limite Penal

Barbárie do processo penal não pode
ser enfrentada apenas com retórica

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

25 de setembro de 2015, 8h01

Spacca
Instrução é substantivo que decorre do verbo transitivo latino īnstrŭō (is, ěre, struxī, structum) e, em geral, apresenta-se como transmissão do conhecimento. No sentido original, porém, o verbo estava, antes de qualquer outra forma, ligado à noção de erguer, erigir, construir, embora também pudesse ser instruir, no sentido de ensinar. De qualquer modo, da base etimológica pode-se concluir que a instrução, quando ligada ao processo penal, busca dar conta daquilo que, como linguagem, vem descrito na imputação e, assim, é por ela que se trata de construir o conhecimento possível sobre o caso penal, tudo de modo a propiciar ao órgão jurisdicional competente a decisão de mérito.

Em outros tempos (não tão distantes), por certo, o jogo de palavras não permitiria uma construção dogmática processual penal como a que foi acima estabelecida, justo porque a preocupação estava vinculada sobremaneira ou à essência e, assim, ao crime do qual decorreu o caso penal ou, por outro lado, quando muito, ao objeto do conhecimento (o crime e o caso penal), conforme estabelecido pelos sujeitos (acusador e juiz) que, pela intermediação da linguagem, diriam a Verdade sobre ele.

A discussão sobre tal tema remexe fantasmas um tanto quanto apaziguados nos espíritos conciliadores, de gente que sempre pensa em resolver os problemas com as soluções de compromisso e que, não raro, vivem a paz proporcionada (melhor seria dizer o gozo) pelo conforto oferecido pela verdade, mesmo que seja ela fugidia e, com frequência, prejudique milhões de pessoas. Ora, uma das faces mais viçosas da democracia é aquela que exige serem os problemas enfrentados e, assim, não há outra forma de tratar o tema da instrução criminal senão quebrando falsos deuses.

Desde este ponto de vista há um lugar imprescindível à linguagem como protagonista; e não mais à linguagem como intermediária. Da mesma forma que perde importância o lugar da Verdade (com V maiúsculo) como central.

Afinal, como se sabe, não é que não exista a Verdade; o problema é que ela é demais para o humano, pobre mortal. Se assim é – e é mesmo! –, não lhe resta outro lugar que não aquele de mito, ou seja, em sendo impossível de alcançar linguisticamente, cria-se, pela linguagem possível (aquela que se tem), na cadeia de significantes, o que seja possível: foi assim que até 1543 (quando vem à luz a tese de Copérnico) o sol girava em torno da terra. É daí, do mito, que partem todas as ciências e teorias; e com o Direito não seria diferente, bastando pensar na Grundnorm de Kelsen: eis uma palavra que se diz na falta da palavra para dizer sobre a coisa.

No processo penal atual e sua barbárie, a “Verdade” com a qual ainda se tem convivido é aquela inventada por Inocêncio III na longa vigília do IV Concílio de Latrão, de 1215, quando, de fato, nasce o sistema inquisitório com os fundamentos que ainda se praticam. Tendo estudado Aristóteles em Paris e depois tendo estudado Direito em Bolonha, sabia ele perfeitamente as possibilidades que a adequatio aristotélica oferecia e, assim, manejou a questão da Verdade como quis, plantando as bases de um sistema que de tão bom (e diabólico, para os fins que pretende) persiste até hoje. O vital, porém, sempre esteve ligado ao conhecimento e à adequação que ele permitia em relação a uma possível conclusão prévia — ditada pela razão — em relação ao crime.

Em suma, sendo compatível com o modo de pensar da civilização ocidental (o pensamento científico baseado na analítica aristotélica), pode-se perfeitamente antecipar as decisões dado que se pode dispor das premissas. Deforma-se a lógica, enfim, mas não é um grande pecado se a coerência sempre é construída retoricamente; e segue vendendo bem no mercado das ilusões democráticas processuais penais.

No processo penal de hoje, porém, não está fácil sustentar a matriz inquisitória que preside o sistema processual penal brasileiro. Depois que Carnelutti, em 1965, fundado em Heidegger, destronou a Verdade, mostrando que se atua no processo com a parte e não com o todo, pouco sobrou dela para alguém que não queira se enganar. Ora, se no processo chega sempre uma versão — e mesmo que várias — e ela (ou elas) não é (são) o Todo; e se a Verdade está no Todo; é evidente que no processo está alguma coisa que não é a Verdade. Perceba-se: não é a coisa ou o objeto; é o que se diz sobre ela ou ele.

Daqui pode-se compreender a importância da linguagem no processo penal, aquela que constrói a versão ou as versões. O processo penal, desde este ponto de vista e dentre outras coisas, pode ser tomado como o reino da linguagem por excelência; e isso é preciso entender para, daí, extrair-se as consequências necessárias.

Imputação e sentença, por exemplo, demarcam um eixo vital para a estrutura democrática do processo penal. Ambas, como é intuitivo, são construções linguísticas pelas quais se acusa e se acerta o caso penal. De concreto — como sói acontecer com quase todos os atos do processo — não têm nada, razão por que nem sempre é fácil entender, mormente àqueles que dependem tão só da matéria para tudo, inclusive para poder pensar. Mas se é assim — e não há de duvidar —, tais construções dependem, sobremaneira, de um controle eficaz, o que nem sempre no âmbito do processo penal ocorre.

Ora, livre para construir a versão, o sujeito parte do arsenal linguístico que possui e as limitações que sofre começam pelo texto da lei (sempre dependente de exegese) e pelos fatos, os quais se apresentando sempre parcialmente acabam, em ultima ratio, na mesma limitação legal: o princípio da não contradição, ou seja, tudo é possível (inclusive os opostos) até o ponto da palavra se desdizer ao ser expressa pelo contrário. Por evidente, todos sabem que se está quase em um mundo encantado, de sonhos. No fundo, vale mesmo o conhecimento adquirido (eis o arsenal linguístico, que deveria ser bem apurado) e a ética, um tanto quanto ausente em um mundo neoliberal no qual os fins justificam os meios.

Não é por outro motivo — a falta de limites ou quando eles aparecem serem levados a sério — que o imaginário tem produzido versões estapafúrdias e difíceis de serem entendidas e aceitas, sem embargo do esforço de muitos (talvez a grande maioria) no sentido de responder pelo padrão exigido, embora de todo deficiente.

Para a sentença, o limite ao eventual ato solipsístico repousa sobremaneira na Constituição da República, mormente no chamado Livre Convencimento (que se deve saber bem o que é, em que pese o nome ruim) e no Devido Processo Legal que, no Brasil, parte da adoção da teoria fazzalariana do processo como procedimento em contraditório. É pouco, sem dúvida. Mas, na falta de uma pertinente teoria da decisão pode e deve ser considerado um avanço se comparado ao quadro quase anômico oferecido pela base constitucional anterior a 1988 e a adoção irrestrita da teoria da relação jurídica, que teve em Bülow seu grande arquiteto, mas que era datada, ou seja, para o seu tempo de tentativa de efetivação das Liberdades Públicas. Em verdade, sempre se fez de conta, no processo penal, que havia equilíbrio de armas, ou seja, algo inverídico. E isso sempre se deu (e em largos espaços segue se dando) não porque acusação e defesa sempre estivessem em posição de desequilíbrio; e sim porque, desde a base inquisitorial, o lugar do juiz sempre foi de uma primazia absoluta, de alguém que, em quase todos os sentidos, coloca-se como senhor do processo, em razão dos fundamentos do sistema inquisitorial adotado pelo CPP. Basta ver como comanda — não raro com mãos de ferro! — a instrução, nos termos do artigo 156, do CPP, podendo ordenar, para além dela e de ofício, a produção de provas na fase de investigação preliminar, o que foi introduzido pela reforma parcial de 2008 (quiçá para ajudar a não deixar dúvida ser o sistema brasileiro inquisitorial nos fundamentos) e é visivelmente inconstitucional.

Desde este ponto de vista, então, a construção do conhecimento, na chamada instrução criminal, era — e segue sendo, na maior medida, ainda não iluminada pela Constituição —, antes de tudo, obra dele, juiz. Como não entender, assim, o prejulgamento que fazem alguns? O decidir antes e depois sair à cata da prova para justificar a decisão, como sempre lembrou Franco Cordero? O primado das hipóteses sobre os fatos? A estrutura é tão fantástica que o sujeito é quase que levado a se comportar de tal forma; e como se fosse normal. No fundo, a grande garantia que resta é a vigilância dele — juiz — contra ele mesmo, se é que quer ou deseja fazer isso porque, os que não querem, não é que são forçados a tanto e, ao contrário, com frequência viram justiceiros.

At last but not least, restaria introduzir a questão referente à acolhida irrestrita do conhecimento obtido na investigação preliminar, ao depois, na instrução criminal, processual. Que isso é possível — em que pese absurdo e inconstitucional em um Brasil pós 1988 — sabe-se desde as sorrateiras e inteligentes (para o mal) manobras de Jean-Jacques-Régis de Cambacérès na construção do Código de Napoleão, de 17 de novembro de 1808, que, em seguida, ilumina a Europa continental toda. Tal conhecimento deveria servir tão somente para dar fundamentos à imputação. Na prática, serve para condenar. E por razões óbvias frauda a democracia processual penal porque, para ela, o conhecimento que serve deve, necessariamente, ser obtido sob o crivo do contraditório. Não é assim, porém, até hoje; e continuará não sendo se não houver desistência de golpes que dão com uma mão e tiram com a outra para tudo se resolver retoricamente, enganando os desavisados, com imbrogli discursivos. Como disse Cordero em passagem lapidar sobre o Code Napoleón, ele é um “mostro a due teste: nei labirinti bui dell’instruction regna Luigi XIV; segue una scena disputata coram populo” — (“monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros da instrução reina Luís XIV; segue uma cena disputada sob publicidade”). (Guida, p. 73).

A partir de agora, quem sabe (porque tem muito mais e que não cabe em um mero ensaio), pode-se começar a falar das provas como o passo seguinte da instrução criminal. Por aí, porém, pode-se ver, com toda humildade, que tem faltado alguns fundamentos — e os fundamentos dos fundamentos — em boa parte dos nossos manuais; e algumas das razões das nossas tão grandes deficiências. Ou não?

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