Direitos Fundamentais

Direito fundamental ao transporte traz novos desafios a velhos problemas

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25 de setembro de 2015, 8h02

A recente promulgação da Emenda Constitucional 90 — resultante da PEC 90/2011, de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP) — insere mais um direito fundamental social no já significativo elenco de direitos consagrado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, totalizando agora 12 direitos sociais, designadamente, educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, proteção à infância e assistência aos desamparados, que já constavam do catálogo original de 1988, bem como os direitos à moradia, alimentação e agora ao transporte, respectivamente incorporados em 2000, 2010 e 2015.

Que a inserção de um direito ao transporte guarda sintonia com o objetivo de assegurar a todos uma efetiva fruição de direitos (fundamentais ou não), mediante a garantia do acesso ao local de trabalho, bem como aos estabelecimentos de ensino (ainda mais no contexto da proteção das crianças e adolescentes e formação dos jovens), serviços de saúde e outros serviços essenciais, assim como ao lazer e mesmo ao exercício dos direitos políticos, sem falar na especial consideração das pessoas com deficiência (objeto de previsão específica no artigo 227, § 2º, CF) e dos idosos, resulta evidente e insere o transporte no rol dos direitos e deveres associados ao mínimo existencial, no sentido das condições materiais indispensáveis à fruição de uma vida com dignidade. Quanto à sua fundamentalidade substancial, portanto, poucos provavelmente levantarão suas vozes contra a inclusão no texto da Constituição desse “novo” direito.

Aliás, em se tratando de dimensão do mínimo essencial, a própria positivação textual poderia ser dispensada, justificando-se o reconhecimento do direito ao transporte na condição de direito fundamental implícito, o que aqui não será mais desenvolvido, mas terá reflexos em outro nível, como logo se verá.

Mas se quanto a tal ponto a questão ao menos aparentemente soa mais singela, a situação se revela mais complexa quando se trata de aplicar ao direito ao transporte o regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, sem o qual a própria condição de direito fundamental restaria esvaziada.

Da mesma forma resta em aberto, qual afinal o âmbito de proteção (e respectivos limites) do direito ao transporte e como o mesmo se poderá tornar operativo na dupla perspectiva objetiva e subjetiva, assim como quanto à sua titularidade, aspectos que guardam conexão entre si e que igualmente dizem respeito ao regime jurídico dos direitos fundamentais.

Ora, se a premissa, há muito assumida por nós (ademais de correspondente ao entendimento majoritário no Brasil atualmente) em nossos primeiros escritos sobre direitos fundamentais, é a de que os direitos fundamentais encontram-se submetidos a um regime jurídico-constitucional unificado, que lhes imprime uma força jurídica diferenciada e qualificada na arquitetura constitucional, não havendo, quanto a tal aspecto e ressalvada alguma matização, diferenças substanciais quanto aos direitos sociais e os demais direitos fundamentais, aparentemente não haveria quanto a tal ponto maior problema que aqui pudesse ser levantado.

Mas o fato é que a existência de um eixo comum não explica por si só as consequências propriamente ditas do referido regime jurídico e nem dispensa considerações adicionais.

Tendo em conta que os elementos centrais da assim chamada fundamentalidade em sentido formal, que se soma ao viés material, residem na aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais e na proteção privilegiada contra intervenções por parte do poder público, mas também se consubstancia no fato de que os direitos fundamentais assumem a condição de limites materiais ao poder de reforma constitucional, resta avaliar como isso poderá se aplicar ao direito ao transporte, evitando, portanto, que o mesmo se transforme em mais uma promessa constitucional carente em grande medida de efetividade.

Quanto ao primeiro aspecto, o da aplicabilidade imediata, está em causa a vinculação direta dos atores estatais (e, em certa medida, sempre também dos atores privados) ao direito ao transporte, que devem em todos os seus níveis de atuação e respeitadas as limitações quanto a competência, assegurar-lhe a máxima eficácia e efetividade.

De particular relevo nesse contexto é a discussão em torno da viabilidade de se assegurar, de modo individual e/ou transindividual, ao cidadão um direito subjetivo originário ao transporte gratuito, mesmo sem regulamentação legal ou política pública promovida pelo Poder Executivo, ou apenas limitar tal direito, na condição de posição subjetiva e exigível pela via jurisdicional, a um direito derivado a prestações, no sentido de um direito de igual acesso ao sistema de transporte já disponibilizado ou mesmo um direito a promoção pelo poder público de politicas de inclusão em matéria de transporte público, seja mediante subsídios alcançados a empresas particulares concessionárias, seja por meio de empresas públicas de transporte coletivo, em ambos os casos com tarifas diferenciadas e mesmo em caráter gratuito para determinados segmentos, a exemplo do que já se passa em sede do assim chamado “passe-livre” para idosos e pessoas com deficiência etc.

Aliás, a discussão em torno da universalização do transporte público gratuito, objeto inclusive de diversas das manifestações que varreram as ruas do Brasil nos últimos tempos, remete a outros dilemas, porquanto mais do que conhecido o caso do Sistema Único de Saúde, projetado como de acesso universal e gratuito (gratuidade estabelecida por lei a despeito de não exigida constitucionalmente de tal modo), com níveis de atendimento muito diferenciados e cada vez mais comprometidos no seu conjunto, ademais de um número impressionante de usuários dos planos de saúde privados, que já não mais suportam a qualidade do atendimento integral dispensado pelo SUS e buscam, mediante paga e encargos por vezes desproporcionais considerando a renda familiar, assegurar as mínimas condições para prevenção e tratamento em termos de saúde.

O mesmo, aliás, se aplica ao setor educacional, onde a despeito dos progressos, notadamente na maior igualdade em termos de acesso ao ensino superior (como dão conta programas como o PROUNI) o déficit quantitativo, mas especialmente qualitativo, segue imenso, especialmente na seara do ensino fundamental é médio.

Se atentarmos ao fato de que saúde e educação ao menos foram dotados, já do ponto de vista constitucional, de um percentual mínimo de investimento público,  o restante da receita (ainda que as fontes e montantes sejam variáveis caso a caso) há de ser distribuída entre todos os demais direitos sociais, o que inevitavelmente poderá tensionar ainda mais os conflitos que se estabelecem nessa seara, mormente se o direito ao transporte for divulgado como sendo direito de todos a transporte público gratuito em todos os meios de transporte, arcando o Estado integralmente com os encargos que à evidência não tem logrado atender.

Por outro lado, impor aos particulares tal ônus sem contrapartida que assegure a manutenção da empresa, a aquisição e manutenção dos meios de transporte, pagamento de pessoal, demais despesas incidentes, igualmente não se revela solução compatível com o ordenamento constitucional e de qualquer sorte resultaria no abandono completo dessa via negocial, com graves consequências para a acessibilidade diuturna dos cidadãos.

Com isso já se percebe que a situação é mais complexa e demanda uma abordagem sistêmica e que não dispensa um conjunto de ações coordenadas de caráter legislativo e administrativo, bem como uma articulação em nível federativo, ademais de equacionamento no plano tributário, orçamentário e financeiro.

Um direito subjetivo originário, portanto, há de ter caráter excepcional e vinculado ao mínimo existencial, eventualmente ante a falta ou insuficiência da ação estatal. Por outro turno, a concessão (judicial) de transporte gratuito diretamente imposta a empresas privadas para além da regulação existente, ademais de harmônica com custos previamente calculados e pactuados, deverá levar em conta — como já se sugeriu no caso de compra de vagas pelo poder público junto ao ensino privado — eventual compensação por parte do Estado, visto que do contrário, nem mais combustível poderá ser adquirido para acionar os motores que asseguram o acesso rápido, aos bens e serviços.

Em suma, aos que bradam contra a assim chamada (no nosso sentir de modo um tanto inadequado) judicialização da política e contra o ativismo judicial (outro termo que soa desconfortável), a inclusão de mais um direito social certamente fornecerá muito material e poderá levar a mais uma enxurrada de ações no Poder Judiciário.

Mas na esfera da assim chamada dimensão negativa dos direitos fundamentais, o novo direito ao transporte também não deixa de atrair questões interessantes e nem sempre de fácil equacionamento.

Além do problema do estabelecimento dos limites de tal direito, que evidentemente não é simples e convoca as categorias da reserva legal, do núcleo essencial e da proporcionalidade, ao menos para citar as mais relevantes, exsurge a indagação se o novo direito ao transporte ocupa a condição de limite material a reforma constitucional.

Também aqui as opiniões são fortemente diferenciadas. Como se trata de direito fundamental introduzido mediante emenda constitucional, as posição vão desde os que negam categoricamente tal condição, até os que a afirmam com toda a sua plenitude, sobressaindo aqui o entendimento de que em se tratando de direito que já poderia ser considerado implicitamente positivado, de modo que a previsão textual apenas a chancela, afastando toda o qualquer recusa por parte dos poderes públicos de dar cumprimento ao comando constitucional.

De qualquer sorte, em sua formatação mais modesta, a inserção de um direito fundamental ao transporte, considerando a sua condição de direito fundamental, deveria pelo menos servir de fundamento para ações judiciais impugnando toda e qualquer medida não justificada e desproporcional que tenha por escopo reduzir os níveis de acesso ao transporte.

Assim, à luz do exposto, percebe-se que são inúmeros os desafios e grande a chance de também essa nova promessa desaguar no já antigo problema da falta de efetividade das promessas constitucionais. Em suma, pergunta-se se o direito ao transporte será apenas mais um caso de frustração constitucional ou quem sabe ocupará um papel relevante para assegurar a todos uma vida com mais dignidade, pelo menos aos que necessitam de tal transporte.

Que nos limites dessa coluna apenas foi possível tematizar a questão e apontar algumas de suas dimensões, espera-se seja considerado pelo leitor.

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    é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).

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