Fora de casa

"Força de vida dos refugiados pode até desenvolver Europa", diz pesquisadora

Autor

20 de setembro de 2015, 18h09

Problema já antigo, o tema dos refugiados alcançou definitivamente a opinião pública global no início de setembro, com a morte de Aylan Kurdi – o garoto de três anos que, junto com a família, tentava escapar do destino fatal na Síria e acabou encontrado morto em uma praia da Turquia.

Flavia Piovesan, especialista em direitos humanos e Direito internacional, fala sobre o compromisso legal e a responsabilidade compartilhada que os países em desenvolvimento e as nações já desenvolvidas precisam assumir no sentido de enfrentar esse impasse.

Mestre e doutora pela PUC de São Paulo, Flavia concedeu entrevista ao podcast Rio Bravo, analisando a condição de vida daqueles que, correndo risco nos seus países de origem, têm buscado refúgio em outras nações.

A crise dos refugiados não é um problema de 2015 nem de 2014. Por que demorou tanto para que as autoridades se dessem conta da gravidade humanitária desse problema?
Flavia Piovesan –
A temática dos refugiados remonta ao pós-Guerra. Basta lembrar que a primeira convenção do Estatuto dos Refugiados, que traz a versão clássica de 1951, que aponta que refugiado é aquela pessoa que sofre um fundado temor de perseguição, em razão de sua etnia, raça, religião ou grupo social e político. É uma definição jurídica. Mas aquela definição de 1951 remetia a uma realidade específica, que era a do refugiado europeu.

Houve um protocolo de 1967 e tratados regionais no âmbito africano… houve a Declaração de Cartagena, e a nossa lei brasileira de 1997 vai além dessa definição para também entender que refugiado é toda aquela pessoa que sofre um fundado temor de perseguição e tem que sair do seu país de origem em razão de graves e sistemáticas violações a direitos. Eu entendo, como ponto de partida, que refugiada é uma pessoa que sofre um grave padrão de violação a direitos. O drama dos refugiados é o drama da violência e da dor de ser levado a sair da sua zona de conforto, de seu país, em busca de um futuro incerto, em uma terra desconhecida.

Recentemente migrantes e refugiados têm se tornado categorias comuns, mas remetem a conceitos distintos. Por que há essa confusão hoje em dia?
Flavia Piovesan –
É importante diferenciar. Os refugiados têm um tratamento específico, como eu mencionei, ao direito internacional dos refugiados, que dialoga muitíssimo com os direitos humanos. Há essa definição jurídica e nós temos, infelizmente, em razão do ocorrido na Síria e em outros países, um aumento extraordinário do fluxo de refugiados, alcançando mais de 50 milhões hoje, os refugiados são um termômetro da violência… Aí nós nos perguntamos: no que falhou? No que a ONU falhou? No que as políticas de prevenção falharam? No que a diplomacia europeia falhou? No empoderamento dos Estados Islâmicos e tudo mais que levaram a esse estado de coisas.

Já os migrantes têm outra conotação, é outro status jurídico, porque volto a insistir: os refugiados fogem, sofrem um fundado temor de perseguição. E o drama é que direitos humanos foram violados antes, podem ser violados durante e depois do processo de refúgio. Temos hoje no mundo 200 milhões de migrantes e 50 milhões de refugiados. No universo de migrantes, a maioria deles é homens jovens. Dos refugiados, a maioria é formada por mulheres e crianças. Então aquela foto dramática do menino [Aylan Kurdi] gerou uma grande comoção, gerou respostas solidárias no Brasil, no mundo, acenando ao drama do refugiado.

Os países europeus precisam assumir algum tipo de responsabilidade jurídica em relação a esses refugiados?
Flavia Piovesan – Sem dúvida. Aí nós entramos no campo da solidariedade global, das responsabilidades compartilhadas. Há muita dificuldade de se acenar quais seriam os deveres dos Estados para além do dever restrito da não devolução dos refugiados ao país em que há o temor de que sejam ameaçados ou que percam a vida. Então, para além do princípio da não devolução, há que se ter deveres dos Estados. Se não me falha a memória, mais de 70% dos países receptores de refugiados são países do mundo em desenvolvimento. Então há de se fortalecer o papel no mundo dos países desenvolvidos nessa temática.

Na Finlândia, o primeiro-ministro inclusive dispôs de uma propriedade que pouco usava para acolher refugiados, porque o mundo também recebeu refugiados europeus. A história hoje é uma em 2015, era outra em 1945. Nós temos hoje novos movimentos e creio ser fundamental estudar não só as causas do refúgio da migração, os fluxos geográficos de onde saem e para onde vão, quais são as causas, quais são as consequências, para que haja políticas públicas acertadas e adequadas.

Em relação aos países europeus, as nações que estão mais à frente nesse tratamento adequado aos refugiados seriam Alemanha, Áustria…
Flavia Piovesan – A própria Espanha hoje tem revisitado a sua posição para dizer: ‘Há direitos em jogo, há uma legislação internacional. Nós, com a guerra civil na Espanha, também fomos refugiados um dia e temos que acolher aqueles que sofrem em razão das guerras, de um estado de colapso’. É importante ver a face humana dos refugiados. É importante ver que os refugiados tinham casa, trabalho… Muitos eram médicos, professores, e se veem obrigados a largar aquela vida. Muitos têm o sonho de voltar. E aí é importante sinalizar qual é a solução dos refugiados. Há três alternativas. Ou a integração no país que os acolheu ou o retorno ao país de origem quando há uma situação mais pacífica ou a ida ao terceiro país. Mas muitos ouvidos dizem que seu sonho é poder voltar ao país das minhas raízes.

Então a presença dos refugiados em solo europeu não se justifica porque essas pessoas desejam voltar…
Flavia Piovesan – Desejam voltar porque há uma legislação própria estabelecendo direitos e deveres no campo do refúgio. É importante abrir os braços aos refugiados, seja pelo tema da solidariedade ou outros tantos, mas também a Europa hoje é envelhecida. Se nós tomarmos países europeus como a Alemanha, há cidades com crescimento negativo que correm o risco de desaparecerem.

E os refugiados vêm com uma força de vida, vêm com uma gratidão, com sonhos… Mais do que a hospitalidade que vão receber, qual é o sonho, a força que traz cada refugiado? Qual era o sonho que aquele menininho que não conseguiu chegar ao seu destino tinha? Qual era o sonho da sua família? São pessoas gratas, com uma força vital, eu creio, que vai enriquecer as sociedades. Não há dúvida de que a Europa passará por mudanças drásticas.

Mas esses mesmos países argumentam que não há espaço e capacidade para dar conta de tantos refugiados…
Flavia Piovesan –
Acho que é importante ter responsabilidades compartilhadas. É lamentável a posição da Hungria, que fechou a estação de trem enquanto, em Munique, as pessoas recebiam com palmas, com brinquedos, com cobertores. Inclusive, o prefeito disse: ‘Já basta, já é suficiente, não tragam mais, nem temos onde guardar’. Eu creio que é importante também avaliar os números e compartilhar essas responsabilidades.

De que modo organismos internacionais podem endereçar políticas públicas para que se compartilhe a questão dos refugiados?
Flavia Piovesan –
É fundamental nunca esquecer da prevenção. Vamos prevenir novos fluxos, erramos, isso é sintoma de uma política fracassada, fracassamos em não responder a conflitos dramáticos como o da Síria e outros… Aplaudo as iniciativas da Angela Merkel, abrindo as portas da Alemanha e avaliando: “Nós temos a capacidade de receber um número x de refugiados”. Acredito que cada país deve olhar para si próprio e com generosidade, curiosidade e, à luz dos direitos e da solidariedade internacional, recebê-lo.

Em relação ao garoto Aylan Kurdi, a família tinha saído da Síria. É possível analisar que, se não fosse pela operação do Estado Islâmico na região, a situação estaria menos grave neste momento?
Não sou estudiosa nesse capítulo, mas entendo que houve uma proliferação da violência com o extremismo islâmico, com os métodos de violência. Interessante avaliar que a Primavera Árabe, com exceção da Tunísia, que foi um caso exitoso, lançou situações desafiadoras e teve uma omissão inaceitável das organizações internacionais e da própria diplomacia internacional em deixar que chegássemos a esse estado de coisas.

É correto afirmar que o Brasil tem uma postura proativa em relação aos refugiados?
Flavia Piovesan – O Brasil tem uma postura pacifista, abriu as portas para os refugiados sírios.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!