Diário de Classe

É ontologicamente impossível querer
mais analítica e menos hermenêutica

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19 de setembro de 2015, 8h00

Spacca
Há algumas semanas, esta ConJur publicou uma entrevista do professor da Universidad de Alicante Manuel Atienza. Não é de hoje que o professor Atienza influencia muitos dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da teoria do Direito aqui no Brasil. Daí a importância de sua fala e a necessidade de se refletir a respeito do que foi dito.

Importante consignar que, do ponto de vista teórico, Atienza se liga à chamada teoria da argumentação, que em suas próprias palavras parte da ideia central de que “o Direito não pode ser concebido simplesmente como um sistema de normas, mas, fundamentalmente, como uma atividade, uma prática social que trata, dentro dos limites estabelecidos pelo sistema, de satisfazer a uma série de fins e valores que caracterizam essa prática”.

Nesse contexto, a importância da argumentação fica evidenciada porque, na interpretação de Atienza, é ela o “instrumento adequado para atingir esses objetivos”.

Na referida entrevista, Atienza também emite uma opinião sobre o estado d’arte do estudo da teoria do Direito no Brasil. Depois de um breve elogio, há uma critica à dispersão das pesquisas realizadas por aqui, bem como sua tendência para uma improfícua abstração e para discussões estéreis, mais preocupadas com um diálogo com autores alemães ou estadunidenses do que, propriamente, com os problemas brasileiros. Para ilustrar essa situação, Atienza relata seu estranhamento com relação à existência de pesquisas no Direito brasileiro que se ocupam da filosofia de Martin Heidegger e que, para ele, pretendem encontrar nesse filósofo a “chave para compreensão e crítica das súmulas vinculantes” (sic).

A admoestação de Atienza — que carrega consigo certo tom sarcástico — deixa-nos, de certo modo, perplexos. Em nossas pesquisas, lidamos com o paradigma filosófico que se constitui em torno do pensamento de Martin Heidegger. Todavia, nunca encontramos nenhum trabalho digno de nota que tenha afirmado algo parecido com essa assertiva do professor espanhol. Aliás, quem conhece minimamente o pensamento heideggeriano sabe que esse tipo de instrumentalização da filosofia é algo não só inútil como também impossível. Não se recorre a Heidegger para encontrar uma “chave” de compreensão ou crítica das súmulas vinculantes, em particular, ou mesmo do Direito em geral. Recorre-se a Heidegger porque, a partir do desenvolvimento de sua filosofia, é possível encontrar um horizonte interpretativo mais adequado para a colocação dos problemas relativos aos objetos da nossa lida cotidiana. Entre esses objetos está o Direito e, nesse campo, também as súmulas. Note-se: em Heidegger não está “a chave para compreensão do Direito”. Em Heidegger está a raiz de um paradigma filosófico que permite encarar o direito e seus problemas práticos a partir de uma perspectiva mais radical e originária. Para nossas pesquisas, o paradigma filosófico que melhor conseguiu descrever o modo como nos relacionamos com os objetos que estão aí, à nossa disposição, bem como a relação que desenvolvemos com nossa própria autocompreensão, é aquele construído a partir da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Nesse contexto, toda relação de conhecimento, seja ela de cunho prático ou teórico, está envolvida em uma dimensão de profundidade que pode ser nomeada como logos hermenêutico. Sempre que lidamos com algo ou o colocamos como objeto de uma investigação teórica (o Direito, as súmulas etc.), mergulhamos em uma relação de compreensão e interpretação que envolve o objeto analisado e nossa própria autocompreensão. Essa dimensão hermenêutica do processo de conhecimento é algo inescapável. Somos, de certo modo, condenados a interpretar. Inclusive a nós mesmos (o filósofo canadense Charles Taylor afirma, a partir de Heidegger, que somos animais que se autointerpretam, self-interpreting animals).

Todavia, ao contrário dos pensadores interpretacionistas que, em alguma medida, edificam suas pesquisas a partir do aforisma de Nietzsche segundo o qual “não há fatos, só há interpretações”, o paradigma da fenomenologia hermenêutica consegue projetar um horizonte interpretativo que vai além do relativismo niilista, alcançando um espaço no interior do qual é possível discutir a verdade, o acerto e a objetividade. Trata-se da dimensão denominada logos apofântico. No âmbito do apofântico, os objetos são, na linguagem e pela linguagem, “mostrados”, “apresentados”, “interpretados”; porém, essa “mostração”, “apresentação” e “interpretação” pressupõem uma antecipação de sentido que envolve sempre uma pré-compreensão que já aconteceu no âmbito do logos hermenêutico. Portanto, esse elemento hermenêutico (antecipador de sentido, pré-compreensivo) não acontece porque queremos nem é fruto de nossa vontade ou arbítrio cientifico. Ao contrário, acontece independentemente do que queremos e do que fazemos. Por isso, não pode ser instrumentalizado. O que precisamos fazer aqui é encontrar as condições para descrevê-lo adequadamente.

Essa filosofia hermenêutica de Heidegger abriu caminhos para outras matrizes filosóficas. Uma em especial é a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer que, a partir dessas premissas heideggerianas, descobriu novas formas de colocar o problema da modalidade de hermenêutica que se ocupa mais diretamente de objetos (a experiência da arte, da religião, do direito, da história e da linguagem). Tanto Heidegger quanto Gadamer advertem-nos contra algumas “infecções” que ameaçam quando o assunto é a concretização do direito (aliás, parece que o problema está em se falar em Heidegger, certo? Gadamer não é problema… como se o segundo pudesse existir sem o primeiro). Entre outras coisas, a hermenêutica retira-nos da ingenuidade objetivista que acredita no sentido inato das normas jurídicas, que deve ser revelado pelo intérprete; ao mesmo tempo, propicia um enfrentamento adequado da “cegueira da vontade”, que vê a interpretação jurídica apenas como o resultado de um ato volitivo do agente jurídico. Entre os dois extremos (objetivismo e subjetivismo), a hermenêutica possibilita o desenvolvimento de um “caminho do meio”. Por outro lado, também não acreditamos em regionalizações (hermenêutica constitucional, hermenêutica do direito privado etc..) para a hermenêutica. De algum modo, esta sempre se manifesta como “condição de possibilidade” quando o assunto é concretização do direito.      

Atienza, contudo, parece professar uma concepção instrumental de filosofia, que pergunta pela ferramenta adequada para atingir um determinado objetivo. Pela descrição que Atienza apresenta em sua entrevista, as práticas jurídicas que são nosso objeto de estudo podem surgir para nós de forma transparente, sem um envolvimento com essa dimensão hermenêutica profunda da própria relação de conhecimento. Ou seja, desconsidera-se o hermenêutico: apenas o aponfântico ou aquilo que é “visível” pode ser conhecido e instrumentalizado. O problema está em que o logos hermenêutico pode até ser ignorado (como frequentemente o é), mas isso não significa que ele não esteja aí, condicionando nossas interpretações “objetivas” e proporcionando resultados que parecem ser verdadeiros. Mas não o são. Justamente porque desconhecem o subsolo de onde se originaram.

Por tudo isso, a posição de Atienza, ao afirmar que a teoria brasileira do Direito precisa de menos hermenêutica e mais analítica, não é apenas equivocada; é também oblíqua do ponto de vista ontológico.

De nossa parte, mais do que simplesmente tentar “aplicar” Heidegger ou Gadamer aos problemas jurídicos, o que buscamos fazer é realizar uma “antropofagia” que envolve uma imersão em temas próprios das obras de Heidegger, Gadamer e Dworkin, mas não apenas para discutir o sentido correto de suas pretensões ou questões bizantinas a respeito de traduções de palavras: é justamente pelo fato de sermos sabedores dos problemas especialíssimos que são projetados pelas praticas jurídicas brasileiras que nossa apropriação do pensamento desses autores mostra-se, de certa forma, violentadora aos olhos de intérpretes mais puristas de suas obras. A Crítica Hermenêutica do Direito, portanto, aborda temas e problemas que vão além da questão das “súmulas vinculantes”. A preocupação maior está relacionada com os fundamentos do direito e as transformações que nele podemos observar nestes tempos tão ambíguos quanto confusos, propícios para a instalação do mal-entendido (irresistível não se render à tentação de dizer que vivemos uma época que, justamente pela sua complexidade, demanda cada vez mais hermenêutica).

Por outro lado, talvez essa incompreensão com relação Heidegger resida na defesa explícita que Atienza faz daquilo que ele nomeia como objetivismo moral: objetivismos e subjetivismos cedem diante da mediação hermenêutica do sentido. Eis aí mais um motivo pelo qual não se pode concordar com a frase pronunciada pelo professor espanhol em sua entrevista.

Ora, é ontologicamente impossível pretender mais analítica e menos hermenêutica. E diversos filósofos da cepa podem ser chamados à colação para corroborar esta nossa informação (v.g. Ernildo Stein e H. Schnädelbach)[1]. Não estamos dizendo que a analítica é desimportante. O que estamos afirmando é que a analítica, sem hermenêutica, não consegue contribuir com muita coisa. Isso porque nenhuma argumentação se dá num vácuo de sentido. Ao contrário, todas as condições de possibilidade de sentido da argumentação, e dentro dela, são ontologicamente hermenêuticas, porque se originam em um processo que envolve, sempre, uma antecipação de sentido mergulhada na autocompreensão do intérprete. 

Pretender mais analítica e menos hermenêutica é recair num positivismo ingênuo e carente de historicidade, que acredita que as palavras sejam mais importantes que os conceitos. E que seria possível criar uma linguagem supostamente rigorosa, fundada tão somente no arbítrio do cientista, a partir de um grau zero de compreensão. 

Ademais, essa visão meramente instrumental da linguagem desconhece que a linguagem é constitutiva da condição humana. Que o ser é linguagem. E que a linguagem, enquanto tal, não está à disposição da vontade arbitrária de ninguém. 


[1] Cf. Stein, Ernildo. Racionalidade e Existência. 2 ed. Ijuí: Unijuí, 2008, passim. No mesmo livro, conferir o epílogo Compreender, escrito por Herbert Schnädelbach e traduzido por Ernildo Stein.

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