Senso Incomum

Não é rigor comparar leis com ovos, mas, sim, com caixas de ovos!

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17 de setembro de 2015, 8h30

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]A frase do título vem de Bobbio, um positivista de cepa. Não um positivista exegético, mas já um da tradição que vem para superar o positivismo primevo. Mas ainda um positivista, de outro tipo, o normativista. Como Ferrajoli, que de há muito faz uma guerra contra o paleojuspositivismo. Sou antipositivista. Nenhuma forma dele é aceitável. Isto porque todos eles apostam em algo não democrático: o discricionarismo, em suas variadas formas. Já escrevi muito sobre isso. Em Lições de Crítica Hermenêutica do Direito (saiu a segunda edição), Hermenêutica e(m) Crise e Verdade e Consenso deixo isso bem claro. Não vou explicar aqui os detalhes, é claro. Só quero dizer que, mesmo vindo de um positivista, a advertência de Bobbio é oportuníssima para um país em que o voluntarismo judicial é a regra. Como diz Bobbio: o mesmo tipo de caixa pode ser enchido com flores e com explosivos… e o ofício de fazer caixas é diferente do ofício de enchê-las. Ele queria criticar o formalismo e o jusnaturalismo. E eu quero criticar o voluntarismo, que abarca algo como neoconstitucionalismos, pamprincipiologismos, realismos jurídicos, etc. Por isso, acrescento à frase de Bobbio o seguinte: na democracia, devemos encher a caixa… com ovos. E não com qualquer coisa. Afinal, é uma caixa… de ovos. Podem ser ovos de vários tipos. Mas são ovos. Bingo. Saindo do contexto do tempo de Bobbio, penso que isso é muito útil e oportuno para o nosso direito. Ainda que não se especifique o que deve ser posto na caixa, mesmo assim os objetos não estarão sob a livre escolha. Esse será o papel da tradição, da reconstrução da história institucional do fenômeno “caixa”, enfim, tudo o que a hermenêutica pode contribuir para a busca de respostas adequadas. Afinal, o conceito de caixa sempre estará referido a algo. Nunca será “qualquer coisa”. E sobre essa coisa não se poderá dizer qualquer coisa. E tampouco colocar qualquer coisa… E assim por diante. E não esqueçamos que, no exemplo de Bobbio, a caixa é de… ovos. O que facilita a discussão.

Nessa linha, oportuno também foi o artigo do presidente da Suprema Corte brasileira, ministro Ricardo Lewandowski. Oportuno e claro, o ministro colocou alguns pingos nos “is” que estavam perdidos no entremeio do imaginário dos juízes. Muitos “is” andavam sem o ponto por aí. Cada chapéu, portanto, deve achar a sua cabeça. Ou vice-versa.

Entre outras coisas, disse o ministro-presidente: “Por mais poder que detenham, os juízes não constituem agentes políticos, porquanto carecem do sopro legitimador do sufrágio popular”. Mas a frase mais importante foi:

"Tampouco é permitido que proponham alterações legislativas, sugiram medidas administrativas ou alvitrem mudanças nos costumes, salvo se o fizerem em sede estritamente acadêmica ou como integrantes de comissões técnicas".

Pois bem. Leio a exposição de motivos do Projeto de Lei 2.913/15, assinado pelo desconhecido deputado Victor Mendes (PV-MA), que pretende estender o prazo de vacatio do novo CPC para três anos. Sim. É isso. O deputado, ao apagar das luzes do prazo em vigor, quer dar o drible da vaca e espichar o prazo para mais dois anos. E, quem sabe, com outro projeto a ser proposto em setembro de 2018, para mais cinco anos. Poderia o deputado assistir ao filme Os Deuses Devem estar Loucos (ler aqui a coluna…). Pois ele parece ser o personagem Zi, escalado para levar para fora da aldeia o objeto que causa tanto desconforto aos nativos. Bingo. O deputado Victor é o Zi do filme.

Mas, o que diz a aludida exposição de motivos? O projeto é inspirado naquilo que entende a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). Também os corregedores-gerais de justiça aprovaram tese nesse sentido e são mencionados na exposição de motivos. Vejamos: o “Deputado Zi” do PV-MA tem uma epifania e resolve propor o projeto de lei que estende a vacatio do novo CPC. Só que essa “epifania de Zi” advém de uma fonte que deveria cumprir a lei aprovada no Parlamento. Sim. Existe um dispositivo no CPC (artigo 1046) que trata do prazo da vacatio. Ou seja: já iniciamos desobedecendo.

É incrível como o novo CPC causa desconfortos e protestos no seio de parcela significativa do Poder Judiciário. Com razão, Guilherme Rizzo do Amaral chama a isso de “neofobia”. Qual seria a razão dessa neofobia? Bom, basta ver os pedidos de veto formulados pelas associações de classe dos magistrados junto à presidente da República. Em várias notas técnicas, pediram vetos justamente aos dispositivos que podem vir a trazer aquilo que mais falta hoje na justiça: previsibilidade nos julgamentos, que somente advém da exigência de uma fundamentação que, por sinal, já existe na Constituição desde a sua promulgação (artigo 93, inciso IX). O alvo principal, como se sabe, é o artigo 489 do CPC.

Portanto, não me parece adequado à democracia que setores da magistratura sejam protagonistas (mesmo que indiretamente) de projeto de lei que pretende estender a vacatio do primeiro Código aprovado no regime democrático. O Código tem problemas? Claro que sim. Imaginemos o Código de 1973. Até hoje não estão solucionados. Mas todas as codificações do mundo apresentam problemas. As leis não são perfeitas. Nenhuma lei possui as respostas antes das perguntas. Estas só surgem da concretude, da sangria do cotidiano. Se uma lei contivesse todas as hipóteses de aplicação seria uma lei perfeita. Se fosse uma lei perfeita, não precisaria de nós, os juristas. Simples assim.

O caminho se faz caminhando. Passo a passo. Transferir o problema para daqui a dois anos e três meses somente dará azo a uma confusão política, porque não faltarão emendas para alterar o CPC antes deste ser experimentado. Na verdade, a vacatio estendida para três anos fará com que relaxemos. E como os juristas tem memória curta, corremos o risco de arquivar o novo CPC.

Como já alertei aqui tantas vezes, vivemos um paradoxo: estamos no século XXI e pensamos (e temos saudades) do direito do século XIX. Sim, naquele século se buscava respostas antes das perguntas. O direito feito pelo legislador, na França; o direito feito por professores, na Alemanha; o direito feito por precedentes (tão duros e herméticos como a lei no exegetismo e as pandectas na jurisprudência dos conceitos), na Inglaterra. Com todos os avanços paradigmáticos, os juristas adoram, ainda hoje, fazer enunciados. O que são enunciados? Conceitos sem coisas. Enfim, nada mais, nada menos do que a tentativa metafísica de encontrar respostas antes das perguntas. Ora, essa questão é tão complexa que aqui recomendo a leitura da obra de Regina Ogorek (Richterkönig oder Subsuntionsautomat? Zur Justizlehre im 19. Jahrhundert), em que a autora demonstra que os positivistas de então já estavam conscientes da impossibilidade de controlar a interpretação desde a generalidade da lei. Tratava-se de uma questão política. Bingo. Mas o mais importante é que se pode dizer que a maioria dos pandectistas não defendeu um papel mera ou puramente mecânico. O que eles não aceitavam é que fosse usada uma valoração vinda de fora do direito, como critérios pessoais dos juízes, etc. Penso, pois, que um pandectista como Windscheid faria uma boa crítica aos enunciados da Enfam. Não somente a estes… Há tantos outros enunciados por aí…

Sigo. A lo largo disso, parece que, neste momento, setores da magistratura não se contentam com enunciados, muitos deles feitos na contramão do novo CPC; agora, o ataque é frontal. O alvo? Em um primeiro momento, a extensão do prazo da vacatio; em um segundo momento, a extinção do próprio Código. Ele é ruim, dizem. Vai trazer o caos, dizem outros. Vamos salvá-lo com a feitura de enunciados. Milhares deles darão a nova conformação. O que tem sido dito em Congressos sobre o novo CPC é algo impublicável. Cobras e lagartos. Não me admira, portanto, o projeto ZI; e não me admirarei se, depois de aprovado o projeto ZI, a aprovação de um novo projeto: a da não entrada em vigor do novo CPC. Que, assim, ficará no limbo. Para as calendas.

Vejam: não sou eu que estou de implicância. Sei que é antipático fazer críticas seguidas à magistratura. Em Pindorama, país notoriamente patrimonialista, sempre se dirá que “é ruim criticar os juízes, porque eles têm a caneta na mão”. Pode ser. Mas temos de colocar o sino no pescoço do gato. Como diz o comentarista da ConJur Marcos Alves Pintar, há pelo menos dois anos que os principais temas inovadores do CPC já vinham (e vem sendo) alvo de artigos e amplas discussões. Ninguém foi pego de surpresa. Os comentários à matéria escrita por Tadeu Rover no ConJur, com raríssimas exceções, todos são no sentido de que o projeto de lei do deputado Zi é uma desmoralização do direito e da democracia. Aliás, Marcos Pintar diz uma frase que reflete a angústia dos advogados pindoramenses: a de que o advogado é detentor de direitos. Bingo! Sérgio Niemeyer também demonstra a sua contrariedade. Quando surgiu a notícia de que a Enfam tinha aprovado 62 enunciados, escreveu de forma contundente comentário à matéria. Os advogados Carlos, Marcos, Ramiro, Ademilson, Kelsen e outros — que igualmente comentaram a matéria — mostram a indignação da sofrida classe dos advogados.

Como disse, estou bem acompanhado. É só ler o que disse, na mesma matéria, o presidente da OAB, Marcus Vinícius e os juristas Bruno Dantas, Dierle Nunes, Lúcio Delfino e Alexandre Nasser Lopes.

Enfim, parece que o lema é: Para quê mudar? Sempre foi assim. Bom, o “sempre foi assim” é, na verdade, uma falácia realista, filosoficamente falando. Por isso, a feitura de enunciados tem uma relação direta com tudo isso que está acontecendo. No fundo, é uma concepção que mistura, indevida e equivocadamente, os paradigmas pré-moderno e moderno. Ao mesmo tempo, querem fazer conceitos que antecipam as respostas e, paradoxalmente, tais conceitos advém de uma concepção solipsista. Alhos e bugalhos, pois. Se ao menos se dessem conta que, para buscar a repristinação de um conceptualismo, não se podem construir tais conceitos a partir de uma livre apreciação. Misturar objetivismo como subjetivismo dá nisso.

Vamos ver no que vai dar o tal projeto. Enquanto isso, vale a pena reler o artigo do ministro Lewandowski. E reler Norberto Bobbio.

Ainda numa palavra: aceitaria de bom grado — e penso que a comunidade jurídica também — uma extensão da vacatio legis se a magistratura tivesse mostrado, desde o início, seu comprometimento na aplicação integral do novo CPC. O problema é que a extensão da vacatio se mostra como um plus em relação à desobediência civil em relação aos pontos principais do Código. E isso é inaceitável. Como disse, não estou sozinho nesse protesto em relação ao projeto capitaneado pelo deputado Zi-do-PV-do-Ma. Somos centenas de milhares de advogados e outros miles pertencentes às carreiras jurídicas. Mandem fonogramas (acho que o deputado Zi ainda usa fonograma) e e-mails para o endereço [email protected] (ou ligue (61) 3215-5580 — Fax: 3215-2580. Protestem. Não à extensão da vacatio. Sim à implementação do CPC no prazo legal.

Lembremos: leis não são ovos; se tivermos que compará-las, comparemo-las com caixas-de-ovos; mas que devem ser enchidas com ovos… de vários tipos. Vamos ter grandes discussões sobre que tipo de aves ou se os ovos são só de ovíparos ou também de vivíparos. Mas sempre ovos. Por exemplo, os ovos de cobras, neste caso, representam os casos trágicos; e ovos de peixes? Bom, neste caso, penso que ovos de peixes serão inconstitucionais, se me permitem brincar um pouco com essa complexidade que é o direito. Mas graças a essa complexidade, teremos trabalho e emprego pelas próximas décadas. Por isso, paremos de dizer que as caixas de colocar ovos não são importantes, se me permitem, agora, uma ironia epistêmica (ou um sarcasmo hermenêutico).

Post scriptum:
De todo modo, se efetivamente o prazo for estendido, que ao menos façamos uma profunda discussão acerca do tema que parece ser o mais preocupante: o dos recursos cujos juízos de admissibilidade agora não serão mais feitos na origem. Assim como é urgente que o Superior Tribunal de Justiça crie uma ou duas Turmas encarregadas de julgar habeas corpus — porque a liberdade é, junto à vida, o bem supremo — e também monte uma estrutura para o exame da nova forma de admissibilidade e julgamento dos recursos prevista pelo CPC. Isso demanda, evidentemente, um aumento significativo (quem sabe, o dobro) do número de ministros do STJ (circunstância que se estende ao STF). Sei que ninguém gosta de repartir poder. Mas parece que é desejo dos advogados e dos próprios magistrados que os tribunais tenham mais membros. Um país da dimensão do Brasil não pode conviver com um tribunal encarregado de dizer o direito ordinário com apenas 33 membros; tampouco uma Suprema Corte com apenas 11 componentes. Recurso quer dizer: só tenho mais uma chance. Só que não adianta estendermos as possibilidades de interpor recursos e não termos estrutura para implementar a inovação. Portanto, a parte de sermos contra ou a favor da extensão da vacatio legis, pensemos no futuro do país.

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