Opinião

Discussão sobre financiamento eleitoral no STF difere da Citizen United nos EUA

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17 de setembro de 2015, 6h25

“A democracy cannot function effectively when its constituent members believe laws are being bought and sold." Justice Stevens

Uma das decisões judiciais mais comentadas recentemente nos Estados Unidos trata da questão de dinheiro na política. Contudo, como Laurence Tribe destaca, “financiamento de campanha é complicado. E Citizens United é muitas vezes profundamente mal-compreendido.”[1]

Em resumo, esta decisão definiu que corporações e sindicatos tem, em respeito à liberdade de expressão, o direito de gastar ilimitadamente para defender a eleição ou a derrota de um candidato, contanto que este gasto seja independente, ou seja, que não haja articulação entre suas expressões públicas e a campanha dos candidatos.

Decisão
A decisão se baseia em uma lógica básica: “[…] que despesas ilimitadas aconteceriam de forma independente aos candidatos.”[2] Ou seja, ela não trata de contribuições para campanhas eleitorais ou partidos políticos, mas sim de gastos independentes.

Duas decisões fundamentavam o sistema de financiamento eleitoral que era seguido até Citizens United: Buckley v. Valeo, 424 U.S. 1 (1976) e Austin v. Michigan ChamberofCommerce, 494 U.S. 652 (1990).O ponto central de Citizens United é a superação do precedente de Austin.

A regulação do financiamento eleitoral está sujeita a testes de constitucionalidade, sendo a liberdade de expressão o maior deles. Conforme cita Justice Kennedy no voto da maioria, “[a] Primeira Emenda prevê que ‘[o] Congresso não fará lei … cerceando a liberdade de discurso’”[3].

Qualquer limite à liberdade de expressão depende de determinados critérios, construídos em uma extensa evolução jurisprudencial da Suprema Corte. Nesta questão, exige-se do estado um compellinginterest, pois “[…] o direito de exercer expressão política é fundamental no nosso sistema constitucional, classificações legais que atinjam este direito tem que ser adaptados na exata medida para servir a um interesse governamental convincente.”[4]

A história da regulação do dinheiro corporativo nas eleições federais americanas vem desde 1905, quando Theodore Roosevelt defendeu a sua proibição, em resposta ao escândalo envolvendo doações de corporações na sua própria campanha. Resultado disso, o TillmanAct de 1907 proibiu a contribuição de corporações em eleições federais.

A jurisprudência moderna sobre esses limites foi inaugurada apenas décadas depois, em Buckley, decisão motivada pelas alterações de 1974 no Federal Election CampaignAct (FECA) de 1971. Entre muitos pontos, foi questionada, com base na Primeira Emenda, a constitucionalidade da proibição de contribuições a campanhas eleitorais por corporações e outros limites para contribuições para os candidatos.

Nessa decisão, a Suprema Corte decidiu que há um interesse convincente para que o estado limite o discurso em campanhas eleitorais. Entretanto, “a Corte traçou uma clara linha, baseada na Primeira Emenda, entre contribuições dadas diretamente a uma campanha e gastos feitos independentemente da campanha: limites nas primeiras foram julgados permitidos constitucionalmente, enquanto limites nos segundos foram considerados como sendo inconstitucionais.”[5]

Em Buckley, o interesse convincente foi evitar a corrupção quid pro quo. Desta forma, evitar a corrupção direta, na forma de “toma lá, dá cá”, foi considerado um motivo forte para que o legislativo decidisse sobre o assunto, já que a impressão popular de corrupção ameaça diretamente a democracia e a República.

A Suprema Corte permite, então, limites em contribuições a candidatos, da mesma forma que permite a exigência de disclosure sobre as contribuições e gastos independentes. A Corte também manteve o sistema de financiamento público voluntário, em que os candidatos aceitam regras mais rígidas em troca de tais recursos.

Diversas disposições da reforma de 1974 do FECA foram, contudo, invalidadas por Buckley. A Corte derrubou limites de gastos eleitorais por candidatos, bem como de gastos independentes.

Buckleyfoi reafirmada em Citizens United. Portanto, no Estados Unidos, evitar corrupção quid pro quo ou a sua aparência é motivo para limitar a liberdade de expressão na forma de doações eleitorais.

Convidada a analisar novamente o tema, a Corte adicionou um novo motivo para limitar o discurso relativo a campanhas. Em Austin, a Câmara de Comércio de Michigan questiona a constitucionalidade da proibição do gasto direto por uma corporação para defender a eleição ou derrota de um candidato. A Corte manteve a proibição considerando que “a decisão do estado em regular apenas corporações é precisamente ajustada para servir ao interesse convincente do estado em eliminar do processo político o efeito corrosivo de ‘baús de guerra’ políticos acumulados com o auxílio de vantagens legais dadas a corporações.”[6]

A Corte continua, em Austin, “independente se esse perigo de ‘toma lá, dá cá financeiro’ possa ser suficiente para justificar a restrição a gastos independentes, a regulamentação de Michigan visa um diferente tipo de corrupção na arena política: os efeitos corrosivos e distorcivos da imensa agregação de riqueza que são acumuladas com ajuda da forma corporativa e que tem pouca ou nenhuma correlação com o suporte público aos ideais políticos da corporação. […] A lei não tenta ‘equalizar a relativa influência dos oradores nas eleições,’ ao invés disso, ela garante que os gastos reflitam efetivo apoio público às ideias políticas desposadas por corporações.”[7]

Em Citizens United, a Suprema Corte recusa (por 5 votos a 4) esses argumentos de Austin. Ela afirma que “Austin interfere com o ‘livre mercado’ de ideias protegido pela Primeira Emenda.”[8]

Mantendo a lógica de Buckley, considera que “a Corte de Buckley […] sustentou limites em contribuições diretas em ordem a assegurar contra a realidade ou aparência de corrupção. Aquele caso não estendeu esse raciocínio aos gastos independentes e a Corte não o faz aqui.”[9]

Considerando que a Suprema Corte já decidiu que a Primeira Emenda se estende a corporações[10], “a Corte rejeitou o argumento de que o discurso político de corporações ou outras associações devam ser tratados de forma diferente sob a Primeira Emenda simplesmente porque essas associações não são ‘pessoas naturais.’”[11]

Ao derrubar Austin, a Suprema Corte abriu caminho para que o dinheiro empresarial inundasse o ambiente político americano, rejeitando a noção deelectoral exceptionalism, ou seja, de que o discurso em campanha eleitoral tem uma importância ainda maior na democracia e que, portanto, deve ser regulado.

Todavia, deve-se destacar que a abertura dada pela Corte se limita apenas a gastos independentes de campanhas. Caso haja articulação entre realização do gasto e uma campanha eleitoral, a empresa continua proibida, por lei federal, de realizá-la. Contudo a prova de que há articulação é muito difícil e muitos SuperPACs são dirigidos por ex-funcionários recém saídos de campanhas, utilizando as mesma consultorias de comunicação, por exemplo.

Possibilidade de exigência de disclamer e disclosure
A Corte aceitou, nesta parte por 8 votos contra 1, outra forma de limitação da liberdade de expressão: disclamer e disclosure — divulgação de quem está pagando a comunicação, conforme já aceito em Buckley. Em outras formas de discurso, a divulgação de quem está falando pode impedir a manifestação de ser realizada, enquanto na área eleitoral trata-se de uma necessidade saber quem fala. É uma alternativa menos restritiva do que outras formas de regulamentação.[12]

A Suprema Corte acreditou que um sistema contendo livre gastos independentes, mas com efetiva divulgação de quem está financiando nunca existiu e que a transparência propiciaria aos eleitores pesar corretamente o discurso vindo de diferentes pessoas ou entidades, tomando uma decisão consciente[13].

Devido à dificuldade em evitar articulação de mensagem entre as campanhas e os gastos independentes, a transparência ficou ainda mais prejudicada pelo raciocínio de Citizens United do que antes. Ficou mais fácil propagar ideias eleitorais sem conectá-las aos interesses que as patrocinam.

Críticas à decisão
Citizens United é, sem dúvida, umas das decisões mais discutidas. As críticas começam ao dizer que ela não fundamentou a revogação de Austin adequadamente, pois não analisou nenhum dos argumentos de Austin para refutá-los.

Porém, as críticas mais profundas dizem respeito à noção de democracia que se defende. O voto dissidente de quatro dos nove Justices é forte nas críticas à opinião da maioria. Justice Stevens encerra seu voto dissidente afirmando que “enquanto a democracia americana é imperfeita, poucos além da maioria desta Corte teriam imaginado que um dos seus fracos incluiria a falta de dinheiro de corporações na política.”[14]

Conforme Tribe destaca, pesquisas de opinião pública demonstraram grande hostilidade à decisão[15], da mesma forma que o presidente Obama, numa atitude sem paralelo, criticou fortemente a decisão no discurso de State of the Union.

De qualquer forma, Tribe relativiza muitas críticas à decisão. Ele considera que o foco dado pelos movimentos sociais — de que empresas não são pessoas — não é adequado. Segundo ele, faz sentido conceder certos direitos constitucionais às corporações, pois elas são associações de indivíduos, apesar delas nem sempre gozarem dos mesmos direitos. Tribe cita quando o Chief Justice Roberts, favorável à Citizens United, afirmou em uma decisão que “invasão à privacidade pessoal” não inclui corporações, adicionando que “confiamos que a AT&T não levará isso para o pessoal.”[16]

Por outro lado, a afirmação de que corporações devem gozar de alguns direitos pode não ser suficiente para justificar o direito de influenciar eleições, até mesmo pela decisão do Chief Justice Roberts citada pelo autor. O diferente peso dado ao discurso de um ente humano e de uma empresa pode ser justificado, por exemplo, na dignidade da pessoa humana, um princípio que não protege empresas. Obviamente as empresas tem um papel relevante na sociedade e tem o interesse legítimo de influenciar políticas públicas. Como isso deve ser feito em uma democracia é a questão.

Tribe está correto ao afirmar que Citizens United não é responsável isoladamente pelo grande aumento dos gastos ditos independentes, pois muitos multimilionários aproveitaram das regulamentações pós-Citizens United para influir pesadamente na política.[17]

O autor acredita que transparência nos SuperPACs pode ser parte da solução do problema[18], bem como a opção do candidato em receber financiamento público, em troca de maior regulamentação para ele.

Já o professor Burt Neuborne tem uma crítica mais profunda à decisão. Conforme citei anteriormente, o voto majoritário afirmou que a Primeira Emenda defende a liberdade de expressão ao dizer: “[o] Congresso não fará lei … cerceando a liberdade de discurso”. Notem que a Suprema Corte cortou parte do texto da Emenda. Neuborne afirma que a Primeira Emenda — assim como outras disposições da Bill of Rights — são mal interpretadas, pois são consideradas isoladamente. Nas palavras do autor: “Hoje ouvimos apenas fragmentos quebrados da música de Madison. Ao invés de buscarmos harmonia e coerência na Primeira Emenda, nós lemos a Primeira Emenda (na realidade, toda a Bill ofRights) como um conjunto de comandos isolados e autônomos, como se os Fundadores tivessem jogado um pote de tinta na parede e permitido que a ordem, colocação e estrutura de cada previsão na Bill of Rights fosse determinada aleatoriamente pelos respingos. O resultado é uma jurisprudência constitucional arbitrária que nos deixou com uma ‘democracia’ disfuncional construída por juízes.”[19]

James Madison teve acesso a quarenta e dois documentos de garantia de direitos ao esboçar a Bill of Rights. De acordo com Neuborne[20], nenhum dos direitos enumerados na Primeira Emenda foi inédito, todos tinham um precedente nos textos que Madison estudou. Todavia, a união desses direitos, em ordem cronológica, representa uma inédita narrativa da democracia.

Liberdade de estabelecer uma religião, seguida de liberdade de exercer uma religião, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação e liberdade de petição ao governo formam a narrativa do processo democrático, em que a pessoa tem a liberdade de pensamento interno, seguido da liberdade de se expressar, de difundir as ideias pela imprensa, de se unir com outros cidadãos e, finalmente, de se dirigir ao governo pedindo soluções.[21]

Ao ler a Primeira Emenda como uma narrativa da democracia, o argumento democrático passaria a ser, como foi em Austin, um interesse convincente para que o governo possa regular democraticamente o discurso eleitoral.

Conclusão
Apesar de discutirmos o tema agora no Brasil, a questão jurídica que temos no Brasil atualmente perante o Supremo não é a mesma que tivemos em CitizensUnited. No direito americano, a contribuição empresarial direta para campanhas é proibida desde 1907.

O enquadramento da atual discussão é diferente e, de qualquer forma, aproxima-se muito mais de Buckley do que de Citizens United. A Suprema Corte americana manteve a proibição de contribuições eleitorais por empresas baseado no risco de corrupção. Não estamos, ainda, no momento em que o argumento da liberdade de expressão se aplicaria no precedente norte-americano, pois a sua limitação é perfeitamente aceita com a intenção de combater a corrupção quid pro quo.

A discussão de Citizens United tem ganhado relevância no Brasil agora com manifestações cada vez mais organizadas e, em alguns casos, articuladas com partidos políticos. Se uma fundação privada ou um sindicato financia uma manifestação contra ou a favor determinado candidato, isso é discurso eleitoral? Isso deve ser regulado? No direito americano, caso haja articulação com um partido ou campanha política, isso seria considerado como discurso eleitoral e, como tanto, sujeito à regulação legal. Já o gasto político independente é liberado.

Como lado positivo da decisão, ponto divergido apenas por um Justice, é o legítimo interesse do Estado em exigir transparência quanto aos gastos em manifestação política. Ao redor de muita controvérsia há esse ponto comum que ainda não discutimos no Brasil: disclamer e disclosure como necessários mesmo em gastos políticos independentes, como direito da audiência em saber quem está falando.

De resto, discutimos agora no Brasil apenas a proibição de contribuições empresariais em campanhas eleitorais. Um limite existente desde 1907 nos Estados Unidos, perfeitamente justificado pela necessidade de combater corrupção, como aceito em Buckley e em Citizens United. A partir, então, de questões nacionais que surgem ao analisar um precedente estrangeiro, devemos debater qual resposta queremos dar a essa questão.

1 TRIBE, L.; MATZ, J.. Uncertain justice: the Roberts courtandtheconstitution. New York: Henry Holt, 2014, p. 96.

2LEE, C.; FERGUSON, B.; EARLEY, D.After Citizens United: the story in the states. New York: Brennan Center, 2014, p. 1.

3Citizens United, 558 U.S. at 336.

4Austin, 494 U.S. at 666.

5 YOUN, M. (ed.). Money, Politics and the Constitution: beyond Citizens United. New York: The Century Foundation, 2011, p. 2.

6Austin, 494 U.S. at 666.

7Id. at 659-660.

8Citizens United, 558 U.S. at 353.

9Id. at 357.

10 Ver id.at 342.

11Ibid.

12Citizens United, 558 U.S. at 369.

13Id.at370-371.

14Id. at 479.

15TRIBE, p. 94.

16Id., p. 111.

17Ibid.

18Id., p. 112.

19NEUBORNE, B. Madison’s music: on reading the First Amendment. New York: New Press, 2015, p. 2.

20 Ver id., p. 17.

21 Cf. id., p. 17-19.

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