Opinião

Parcelamento de salários no Rio Grande do Sul viola dignidade

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17 de setembro de 2015, 7h42

Embora poucos se manifestem publicamente a respeito, o parcelamento da remuneração dos servidores do Poder Executivo, por ato do Governador do Rio Grande do Sul, vem dando o que falar. Chama a atenção não apenas a violação de direitos sociais, mas também o arbítrio com que se destaca o quadro funcional de um dos Poderes, para criar ônus desproporcional aos seus componentes. Declarou o Governador Sr. Ivo Sartori: "O parcelamento atinge a todos, inclusive o salário do governador, do vice-governador, de todos que recebem pelo Executivo. Evidentemente que nos outros poderes, pela autonomia de cada um, não temos interferência jurídica, nem constitucional"[1].

É uma declaração curiosa. O parcelamento dos salários, a um só passo, violou direitos sociais e descumpriu decisão judicial que vedava o ato. Não há como sustentar que a medida tem como diretriz o princípio da separação dos Poderes, de onde submerge a autonomia financeira destes e também o respeito às decisões judiciais. Tal princípio está complementado e garantido pelo sistema de freios e contrapesos — check and balance —, de forma que, para mantê-lo íntegro, não basta respeitá-lo em parte.

Os direitos fundamentais dos servidores do Executivo foram indiscutivelmente feridos. Ao conceder a liminar no Mandado de Segurança Coletivo Preventivo 70063956726 — decisão ratificada posteriormente, em definitivo, pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul —, a Excelentíssima Desembargadora Relatora Isabel Dias Almeida, alertou que o (então eventual) parcelamento dos salários configuraria ilegalidade administrativa, por realização de ato não previsto em lei, e violação a direitos. Desta forma asseverou:

Não obstante seja notória a precária situação financeira atual do Estado do Rio Grande do Sul, não existe viabilidade jurídica na adoção da providência de parcelamento de qualquer natureza dos salários dos servidores, seguindo-se disposição constitucional estadual que regula a matéria, in verbis:

Art. 35. O pagamento da remuneração mensal dos servidores públicos do Estado e das autarquias será realizado até o último dia útil do mês de trabalho prestado.

(…)

Cumpre destacar, ainda, que a discricionariedade política não pode ultrapassar os limites da baliza constitucional; ou seja, da obediência ao princípio da legalidade que prevalece no âmbito da Administração Pública.

Assim, tenho por evidente o risco de dano irreparável na adoção da medida, senão no mês em curso, nos meses subsequentes, o que pode afetar a subsistência de inúmeras famílias que dependem destes rendimentos para sobrevivência. E a verossimilhança do direito vem estampada pela norma constitucional acima transcrita. [grifei]

É evidente e foi previamente anunciada a lesão a direitos fundamentais dos servidores. O parcelamento dos salários violou a dignidade dos servidores do Poder Executivo. Conforme exposto, é direito líquido e certo que sejam remunerados até o último dia útil do mês de trabalho prestado. Todos têm contas a pagar, administram suas despesas, sustentam suas famílias.

É de amplo conhecimento que o salário tem caráter alimentar, constituindo-se em um instrumento de alcance da liberdade e dignidade, que deve atender às necessidades vitais básicas do servidor e “de sua família com moradia, alimentação, educação, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, como bem define o artigo 7º, inciso IV, da nossa Constituição Federal.

O Governo Estadual não somente parcelou o valor, como depositou a primeira fração em quantia inferior ao salário mínimo fixado em lei. Durante 11 longos dias, diante da atuação arbitrária do Chefe do Executivo, perguntou-se, inclusive, se a famigerada segunda parcela seria realmente paga.

De outra sorte, não necessariamente haveria violação do princípio da separação dos poderes se o ato fosse ampliado. Nossa afirmação visa não mais do que desvelar a invalidade do argumento utilizado pelo Governador. Ocorre que os objetivos centrais da autonomia financeira não estão delineados em norma, cabendo ao intérprete identificar qual o “núcleo duro” deste enunciado constitucional.

Para esclarecer o que é posto é dúvida: salvaguardar, em uma crise, os órgãos dotados de autonomia financeira é, de fato, reflexo da finalidade intrínseca à separação dos Poderes? Em outras palavras, quais os limites da autonomia financeira, quando analisada sob a perspectiva da separação dos Poderes? Pensamos que a separação do Estado em Poderes não autoriza a marginalização da crise, pois a fonte dos recursos é una, tal como o próprio Estado. Em realidade, há unidade de Poder, e pluralidade dos órgãos pelos quais ele se manifesta. Distribuem-se as funções, apenas, a divisão é meramente formal, tem por fim aprimorar o exercício do Poder.

E isso significa, para nós, que a utilização dos recursos deve respeitar uma proporção, que incidirá sobre um valor a ser reajustado diante de uma crise. Uma vez efetuado o rateio justo, somente então se impõe a autonomia financeira. Este pensamento está amparado pelo artigo 99, parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, que dispõe: “Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias”.

Ainda, o artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar 101/2000, determina que os Poderes e o Ministério Público promovam — saliente-se, todos (!) — quando a receita do estado não comportar o cumprimento das metas, a limitação de empenho e movimentação financeira. Os critérios para esta medida estão fixados em Leis de Diretrizes Orçamentárias, mais precisamente no artigo 25 da Lei Estadual 14.568/2014, LDO de 2015; e artigo 24 da Lei Estadual 14.716/2015, LDO de 2016.

Desarrazoado que seja diferente, pois sendo o Estado um ente que exerce seu poder soberano e separa este para tornar fluida sua atuação, cria-se, no mínimo, um caos administrativo — tragédia anunciada — deixando que um de seus braços, ferramentas do exercício da soberania, fique insubsistente em nome da autonomia, suportando sozinho uma crise que deve e pode ser diluída. A soberania limita a autonomia, e não o contrário.

Não se está a ignorar que o correto é falar-se em autonomia dos estados-membros, reservando-se o termo soberania ao poder exercido no âmbito da União. A forma como os termos estão aqui utilizados visa apenas facilitar a compreensão acerca da essência original do poder atribuído a cada órgão.

A intenção não é sustentar a necessidade de uma violação igualitária de direitos sociais dos servidores de todos os Poderes, que não se entenda mal! Muito pelo contrário. O artigo 9º, parágrafo 2º da Lei Complementar 101/2000, aliás, veda a limitação de despesas que constituam obrigações constitucionais e legais dos entes. Ou seja, a remuneração de todos os servidores é intocável — ou deveria sê-lo —, alternativas devem ser buscadas em outra seara. Intenta-se, tão somente, questionar a constitucionalidade de um ato que se impôs sem que fossem feitas as devidas ponderações, e demonstrar que as falhas de fundamentação estão evidentes. E, embora tenhamos simpatia pelas análises interdisciplinares, frisamos que a reflexão em tela tem caráter eminentemente jurídico, sendo desprovida da pretensão de esgotar o tema ou de sugerir soluções administrativo-financeiras ao estado.

O panorama conhecido permite que percebamos estar acontecendo algo contrário ao ordenamento jurídico; para encontrar meios de contornar a situação, deve-se ter conhecimentos técnicos e, principalmente, fáticos mais aprofundados. Não estão disponíveis dados que sejam suficientes para um exame satisfatório da situação financeira do estado do Rio Grande do Sul, as informações são reveladas pouco a pouco.

Ainda assim, a impossibilidade de conduta diversa não é argumento que se possa acolher, pois pulula a notícia de que, ao fim de agosto, quando o Governo do estado depositou os desrespeitosos R$ 600 nas contas dos servidores do Executivo, haveria, em caixa, no mínimo o suficiente para depositar mais do que o dobro.

Importa observar que limitar a violação de direitos a um grupo ameniza a força dos movimentos que contestam a ilegalidade dos atos estatais e polariza os servidores do Poder Executivo. A tendência — contempladas as exceções — é que os servidores dos outros Poderes tomem como principal preocupação não deixar que as violações lhes afetem. Assim, os que colocam de lado a empatia — e, ainda bem, não são todos — podem entender vantajoso empurrar os prejudicados à resignação.

O que talvez não percebam é que a violação maior é ao próprio sistema que nos rege e nos traz alguma segurança. Criam-se vulnerabilidades que abrem margem para futuras ilegalidades, as quais poderão, sim, afetar-lhes. Não havendo respeito à ordem ela se decompõe, deixa de existir. Em um cenário assim, nada está garantido.

Almeja-se, portanto, que, por meio do respeito aos ditames da nossa Lei Maior, a Constituição Federal, seja restabelecida a igualdade e observados os direitos sociais de todos, o que, se não for plenamente factível, deve ocorrer dentro das possibilidades. Impõe-se o exame fático ferramentado da ponderação, eis que presente uma extensa gama de valores complexos incidentes sobre o caso, sendo que a igualdade e a dignidade são apenas dois deles. O que está, de fato, em jogo é a ordem constitucional como a concebemos.


Referências
DE MENEZES, Aderson. Teoria geral do Estado. Forense, 1984.

MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. Editora Saraiva, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Curso de direito constitucional. Editora Revista dos Tribunais, 2012.


1 Notícia de 31 de agosto de 2015. Disponível em: <http://www.casacivil.rs.gov.br/conteudo/1835/?Governador_faz_an%C3%BAncio_sobre_sal%C3%A1rios_e_saque_de_dep%C3%B3sitos_judiciais >.

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