Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chileno (parte 29)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

16 de setembro de 2015, 18h53

Spacca
O professor de Direito no Chile
O sucesso educacional chileno, como já se afirmou nas colunas anteriores, vive o paradoxo de sobreviver a uma profunda reforma de seu sistema de financiamento, que é de inspiração norte-americana. Nesse processo de transformação do modelo chileno sobressai-se uma importante personagem: o professor de Direito.

Antes da reforma do ensino universitário implementada nos anos 1970 e aprofundada nos anos 1980, havia menos faculdades de Direito e o número de vagas era muito restrito. Os professores chilenos eram recrutados de entre profissionais bem-sucedidos na advocacia contenciosa ou aqueles que exerciam, em paralelo, uma rentável atividade como pareceristas.[1] A alteração do cenário pós-1990 trouxe para a sala de aula um novo perfil de docente. Muitos professores de áreas não dogmáticas foram aproveitados em disciplinas propedêuticas e um número relevante de docentes passou a se dedicar em regime de dedicação exclusiva à universidade.

É evidente que essa transformação não se deu apenas no Direito, mas em todas as áreas do ensino superior. No Direito, contudo, percebeu-se uma nova visão ideológica em muitos cursos, de modo especial porque os salários dos docentes monoprofissionais levaram a uma parcial proletarização da classe.

Existem também espaços fora da universidade nos quais se desenvolveram think tanks, com inegável alinhamento ideológico, ao exemplo da Fundación Chile 21 (CH21) e a Corporación de Estudios para Latinoamérica (Cieplan, de centro-esquerda) e o Centro de Estudios Públicos (CEP, de centro-direita), além do Libertad y Desarrollo (LyD, de direita). Todos esses think tanks empregam pesquisadores e possuem vínculos com os partidos políticos chilenos ou com personalidades do mundo empresarial.[2]

A carreira docente universitária no Chile não possui remuneração nacional uniformizada, muito menos um plano de carreiras que reproduzível em várias instituições, como se dá no Brasil. Na Universidade do Chile, por exemplo, há um Regulamento Geral da Carreira Acadêmica, que pode ser assim resumido:[3]

a) A carreira acadêmica ordinária divide-se em ajudante, instrutor, professor assistente, professor associado e professor titular. O cargo de ajudante é o nível inicial da carreira docente, equivalendo a uma etapa de formação para o ensino superior. O instrutor atua na graduação e em atividades de pesquisa mais elementar. Acima dele está o professor assistente, que tem maior autonomia, podendo ensinar na graduação, pesquisar, exercer funções administrativas e participar na realização de programas acadêmicos de especialização. O professor associado exerce as funções do assistente, com maior liberdade e com a obrigação de ser inovador e agente de criação de conhecimento.  O professor titular, que lecionará em quaisquer níveis, poderá interferir nas decisões ligadas ao desenvolvimento institucional da universidade, além de ser preponderantemente demandado a produzir conhecimento novo, a pesquisar e a propor técnicas ou expressões artísticas inovadoras.

b) Não há previsão de rebaixamento na carreira. No entanto, apenas os professores titulares serão componentes do corpo acadêmico permanente da universidade.  Os professores associados não terão prazo de permanência no cargo, no que se equivale ao modelo europeu. Os professores assistentes terão prazo máximo de 12 anos de permanência no cargo, admitida prorrogação excepcional e justificada por ato do reitor da universidade. O ajudante e o instrutor exercerão suas funções neste nível pelo máximo de 8 anos, somados os tempos de ambos os cargos. Por sua vez, o ajudante terá um máximo de 4 anos em funções.

c) A ascensão funcional dá-se por meio de processo de avaliação continuada. A mera antiguidade não constitui, por si só, um fator para a progressão na carreira. Haverá comissões de avaliação dos docentes e estas considerarão diversos aspectos, como a produção científica; as habilidades como docente ou pesquisador; a contribuição do candidato à universidade, à ciência e à sociedade; a existência de faltas funcionais e sanções aplicadas; a dedicação aos deveres funcionais e outros fatores que o comitê julgar por bem exigir que sejam demonstrados.

Não há existências formalísticas como algumas que se fazem no Brasil para o acesso a níveis superiores. Muito menos há garantia de estabilidade para os níveis inferiores e intermediários da carreira docente. Passado o tempo máximo na função e sem prorrogação excepcional do tempo de vínculo, o professor que não obtiver ascensão será desligado. O tempo de serviço, algo essencial para os professores universitários no Brasil, não é considerado como um fator preponderante para as promoções. No aspecto do tempo em cada nível, a Universidade do Chile aproxima seus critérios aos da carreira militar. No que se refere à progressão por antiguidade, ela se afasta desse modelo e segue parâmetros mais próximos do mundo empresarial.

O reitor da Universidade do Chile, um professor titular da Faculdade de Medicina, recebe um salário mensal líquido de 7.021.387,00 pesos chilenos (equivalentes a 10.345,31 dólares dos Estados Unidos ou a 39.684,88 reais). Com carga horária de 44 horas semanais, um professor titular, em nível máximo da carreira, com doutorado, possui uma remuneração básica bruta de 1.114.312,00 pesos chilenos (equivalentes a US$ 1.641,83 ou R$ 6.298,09 reais). Evidentemente que podem incidir alguns adicionais, mas, em relação aos docentes sem funções administrativas, os valores pagos correspondem a essa base.[4]

Em uma realidade monoprofissional, essa remuneração está longe de ser satisfatória e não deixa de ser interessante compará-la com o elevado nível dos cursos jurídicos chilenos nos rankings universitários.

O currículo das faculdades de Direito
No Chile, há considerável liberdade de conformação das matrizes curriculares por cada instituição. Na Universidade do Chile, o curso de Direito é oferecido em regime diurno com duração de 10 semestres acadêmicos, não havendo curso noturno. [5]  

A matriz curricular divide-se em grandes áreas: a) Direito Civil e Comercial; b) Ciências do Direito; c) Ciências Criminais e Criminologia; d) Direito Internacional; e) Ensino e Prática Jurídica; f) Direito do Trabalho e Seguridade Social; g) Economia e Direito Econômico; h) Direito Público; i) Direito Processual; j) Interdisciplinar e de Pesquisa.

No primeiro semestre, têm-se as seguintes disciplinas obrigatórias: a) Introdução ao Direito; b) História do Direito; c) Filosofia Moral; d) Microeconomia. São eletivas Teoria Social, Direito Romano (Direito das Coisas), Relações Internacionais e Ciência Política.

No segundo semestre, as obrigatórias são a)  Direito Civil 1; b) História do Direito 2; c) História do Direito 2; d) Macroeconomia; e) Direito Constitucional 1. Escolhe-se dentre estas uma disciplina eletiva: Sociologia do Direito, História Institucional do Chile (séculos 16 a 18), Constitucionalismo e Codificação nos séculos 19 e 20, Antropologia Jurídica e Informática Jurídica.

A enumeração de todas as disciplinas é excessiva para uma coluna. É interessante notar que Direito Civil é matéria obrigatória até o sexto semestre, quando se estuda a Parte Especial dos Contratos. Direito das Sucessões e Partilha dos Bens é disciplina eletiva do sexto semestre. À exceção de Introdução ao Direito, Microeconomia e Macroeconomia, são eletivas ou optativas Filosofia do Direito, Sociologia do Direito, Solução Alternativa de Litígios, Direito Ambiental, Direito Processual do Trabalho, Antropologia Jurídica. No final do curso, exige-se um exame de grau para o concluinte.

Conclusões
Encerra-se hoje a série sobre o modelo de ensino jurídico no Chile. O entorno social e econômico é profundamente influenciador das instituições. De nada adianta ter boas universidades se a realidade que as circunda é assimétrica. Com o tempo, as contradições exteriores nelas penetrarão e se iniciará o processo de corrosão de seus valores. Obviamente que centros de excelência conseguem sobreviver em meio a um ambiente hostil, mas é quase impossível que todo um sistema se mantenha íntegro.  Até agora, o Chile conseguiu produzir o melhor modelo de ensino do Direito –e não apenas do Direito – da América do Sul. Algumas hipóteses podem explicar esse êxito, várias delas foram apresentadas nas últimas colunas. Com as reformas de 2015, é de se suspeitar que o Chile não consiga mais se conservar assim nos próximos anos. Reformas educacionais não permitem que seus efeitos sejam visualizados de imediato. O comprometimento ou a melhoria só se sentem no espaço de uma ou duas gerações.

Existe hoje um desejo de revisão dessa reforma. É de se aguardar seus próximos desdobramentos. Outro aspecto de interesse no Chile está na compreensão de seus limites e no respeito meritocrático. O sistema de ascensão funcional, que despreza o tempo de carreira com fator único de promoção, é um exemplo dessa estrutura baseada no mérito, ainda que existam disfunções decorrentes de certa subjetividade na escolha dos promovidos. Essa autocontenção intelectual, tão em falta no Brasil, assegura um lugar de relativo prestígio da cultura jurídica chilena. Prestígio esse que não depende da “culpa do ex-colonizador” ou de modismos. Alguns de seus pesquisadores e docentes dialogam em alto nível com homólogos dos melhores centros internacionais contemporâneos.

Quando menos, estas colunas podem servir para descortinar os méritos do Chile para os brasileiros. E também para depositar um pouco de esperança nos próprios chilenos, de modo a que não se esqueçam das causas de seu próprio sucesso e não bebam do licor amargo que nós americanos do Sul tanto gostamos de tomar, como que a nos punir quando alcançamos algum êxito. 

Na próxima coluna, iniciaremos o estudo do modelo colombiano.


[1] FUENZALIDA FAIVOVICH, Edmundo. Derecho y cultura jurídica en Chile (1974-1999). In. FIX-FIERRO, Hector; FRIEDMAN, Lawrence M.; PÉREZ PERDOMO, Rogélio (Eds). Culturas jurídicas latinas de Europa y América en tiempos de globalización. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. p.211 e ss.
[2]  FLISFISCH, Ángel; PRIETO, Maximiliano; SIEBERT, Alejandro. Potenciando universidades y think tanks en América Latina: El caso de Chile. Flacso-Chile, 2013. Disponível em ”, FLACSO Chile, Santiago de Chile, disponible en http://www.flacsochile.org/wp-content/uploads/2014/04/Potenciando-universidades-y-think-tanks-en-Am%C3%A9ricaLatina-El-caso-de-Chile1.pdf. Acesso em 15-9-2015.
[3] Disponível em: http://www.uchile.cl/portal/presentacion/normativa-y-reglamentos/4868/titulo-ix-otras-disposiciones. Acesso em 10-9-2015.
[4] Disponível em: http://www.uchile.cl/portal/presentacion/informacion-publica/dotacion-de-personal/82171/escala-de-sueldos. Acesso em 15-9-2015.
[5] Disponível em: http://www.uchile.cl/carreras/4997/derecho-licenciado-en-ciencias-juridicas-y-sociales. Acesso em 10-9-2015.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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