Opinião

Crise fiscal revela importância de maior controle sobre incentivos tributários

Autor

  • Gilson Pacheco Bomfim

    é procurador da Fazenda Nacional mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela UERJ ex-Advogado da União e especialista em Direito Tributário

12 de setembro de 2015, 8h30

Muito preocupada com o equilíbrio das contas públicas, a presidente Dilma Rousseff iniciou seu segundo mandato apostando todas suas fichas em sua equipe econômica, cujo protagonismo ficou a cargo do novo Ministro da Fazenda, escolhido com o evidente objetivo de passar uma mensagem de austeridade ao mercado e aos investidores nacionais e estrangeiros.

Gozando de maior autonomia que seu antecessor, o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, comprometeu-se com uma gestão pública responsável, elegendo uma meta ousada de superávit primário e alçando a expressão “ajuste fiscal” à condição de “mantra” do segundo mandato de Dilma Rousseff.

De forma bem simples, o termo ajuste fiscal abarca um conjunto de medidas que busca equilibrar as contas do Estado brasileiro.  Consiste, basicamente, em duas ações: cortar despesas do governo e elevar a arrecadação – através do aumento de tributos e outras receitas[1]

A rigor, a preocupação com o equilíbrio e com a responsabilidade na gestão das contas públicas não é novidade, podendo ser identificada como uma característica comum do novo formato de Estado, que começa a ser desenhado, na maior parte dos países ocidentais, na parte final do século XX[2].  No Brasil, a responsabilidade na gestão das contas públicas é um imperativo legal, constante da Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 1º, parágrafo 1º, da LC 101/2000).

Nesse contexto, a gestão equilibrada e responsável das contas públicas não deve ser identificada ou relacionada a um tipo de Estado ou governo (ou mesmo a um partido político), já que existem dispositivos legais que impõem aos gestores públicos que se comportem dessa forma, sob pena de sua responsabilização administrativa e, até mesmo, penal. Parece claro, portanto, que a gestão responsável não é uma opção do administrador público, mas sim uma imposição legal.

Já como parte do “aclamado” ajuste fiscal, na segunda metade de maio, o governo anunciou um corte de R$ 69,9 bilhões em gastos do orçamento de 2015. O corte afetou ministérios importantes como das Cidades, Saúde e Educação, além de reduzir drasticamente investimentos importantes, como aqueles ligados ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) [3].

Não se pretende aqui discutir as opções efetuadas pelo executivo para equacionar as contas públicas, já que essas escolhas se inserem dentro da liberdade de gestão garantida ao administrador.  Não obstante isso, não se pode negar o fato de que o governo federal não tem mostrado o mesmo ímpeto ou disposição para diminuir, cortar, rever ou controlar melhor uma espécie de gasto público que produz impacto direto sobre as receitas públicas.  Seu nome: gasto tributário[4]

O pouco interesse do governo federal no que concerne a essa espécie de despesa indireta é bastante preocupante, principalmente diante dos valores envolvidos.  De fato, informações constantes do demonstrativo de gastos tributários do governo federal para o ano de 2015, elaborado pela Receita Federal do Brasil, dão conta de um gasto total envolvendo benefícios e incentivos tributários da ordem de R$ 282 bilhões[5].   Apenas a título de comparação: a previsão de renúncias de receita do governo federal envolvendo desonerações tributárias[6] supera em mais de três vezes o corte de despesas diretas e o aumento de receitas que se pretende com o ajuste fiscal.

Os números envolvidos são impactantes e impõem que seja dada maior atenção ao tema, especialmente no que tange ao controle dos resultados que motivaram a concessão dessa espécie de gasto público.  Por certo, considerando que a generalidade é dos princípios fundamentais que deve orientar a tributação, impondo que, em regra, todos aqueles que realizem o mesmo fato econômico paguem o mesmo tributo, as hipóteses de desoneração tributária devem ter sua legitimidade referendada pelo texto constitucional, bem como pela análise dos efeitos produzidos.

Ora, o mínimo que se pode exigir de uma gestão fiscal democrática e responsável é que a concessão de incentivos tributários tenha efetiva preocupação com as conseqüências ou objetivos delineados, bem como estabeleça parâmetros claros para o controle de sua eficiência.  Entretanto, tal conduta nunca foi praxe, pelo menos na esfera federal[7]

Atento aos expressivos valores envolvidos, bem como a pouca ou nenhuma preocupação dos órgãos federais responsáveis com os efeitos produzidos pelos incentivos tributários, o Tribunal de Contas da União (TCU), no exercício de sua função constitucional (artigo 70/71 da Constituição Federal de 1988), tem desempenhado papel relevante, intensificando a fiscalização sobre esse tipo de gasto público, especialmente no que tange à necessidade de maior transparência e análise de suas conseqüências[8].

Por certo, da análise da jurisprudência do TCU, é possível encontrar, a partir de 2010, auditorias e acórdãos que têm ajudado a construir e melhorar a fiscalização e o controle acerca dessa espécie de renúncia de receita[9]

Ultrapassada uma fase inicial, onde a fiscalização cingia-se apenas a aspectos formais, invariavelmente ligados ao descumprimento dos requisitos exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, o TCU tem dirigido seus esforços no sentido de exigir dos órgãos responsáveis uma verificação efetiva sobre os resultados produzidos por esse gasto público.

Nessa linha, deve ser destacado o trabalho realizado no bojo do processo 018.259/2013-8, onde se constatou que a maioria absoluta das normas instituidoras de incentivos tributários federais não estipula claramente os objetivos, metas e indicadores da política pública relacionada à desoneração, fato que prejudica a gestão das políticas públicas referentes a essas despesas indiretas, bem como o controle e a transparência da utilização dos recursos públicos[10]

No mesmo processo, a Corte de Contas chegou a uma conclusão ainda mais preocupante: o Governo Federal não realiza qualquer avaliação específica quanto aos resultados obtidos através desse instrumento tributário.  Em outras palavras: após a concessão de uma isenção, por exemplo, o governo federal não faz qualquer análise, a fim de verificar se o objetivo que motivou essa renúncia de receita está ou não sendo atingido, de forma a justificar ou não sua permanência.   Em virtude dessa constatação, foram expedidas recomendações a diversos órgãos públicos federais (dentre os quais a Casa Civil da Presidência da República e os Ministérios da Fazenda e Planejamento), para que criassem mecanismos de acompanhamento e avaliação dos incentivos concedidos, com a finalidade de apurar se essa espécie de gasto público tem ou não alcançado os fins que motivaram sua instituição[11].

Como já dito, é essencial que o gasto tributário tenha seus efeitos e sua eficiência analisados, pois a concessão e manutenção dessas espécies de gasto público dependem da produção das conseqüências que legitimaram sua instituição.  Em função disso, é necessário que os Decretos, Projetos de Lei e as Medidas Provisórias delimitem de forma clara as finalidades e objetivos pretendidos pela renúncia de receita, assim como estabeleçam parâmetros para que seus resultados e eficiência possam ser controlados. 

Importante frisar que não é suficiente somente estabelecer parâmetros de controle, é imprescindível também que os efeitos obtidos pelas desonerações tributárias sejam constantemente e efetivamente analisados e controlados, de forma a justificar ou não sua manutenção.

Embora o cenário atual, no que concerne à análise efetiva das conseqüências produzidas pelos incentivos tributários, ainda seja extremamente preocupante, não se pode deixar de reconhecer avanços na área, bem como de enxergar, no momento de profunda crise institucional, ética e econômica que assola o país, a oportunidade de construir um modelo de maior transparência na utilização desse instrumento tributário, bem como de controle efetivo de seus resultados. 

Aos operadores do direito e cidadãos, cabe estudar, debater, aprofundar o tema e torcer (bastante) para que as mudanças nesse campo não tardem.


[1] A necessidade de um urgente equacionamento das contas públicas mostrou-se ainda mais evidente com a previsão de um déficit superior a R$ 30 bilhões constante da proposta orçamentária da União para 2016.

 [2] Nessa mesma linha, conferir: DE OLIVEIRA, Weder. Curso de Responsabilidade Fiscal – Direito, Orçamento e Finanças Públicas.  Volume 1.  Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 43.

 [3] No final de julho, foi anunciado novo corte no orçamento.  Dessa vez, os valores cortados ultrapassaram a casa de R$ 8,4 bilhões de reais.

 [4] Aqui, o termo é usado como o total de renúncias de receita decorrentes de benefícios e incentivos tributários. Para um aprofundamento do conceito de gasto tributário, conferir: HENRIQUES, Elcio Fiori.  Os Benefícios Fiscais no Direito Financeiro e Orçamentário – O Gasto Tributário no Direito Brasileiro.  São Paulo: Quartier Latin, 2010.

 [5] Informação constante do sítio eletrônico da Receita Federal do Brasil, conferir aqui.
. Para o ano de 2016, a previsão de renúncia de receitas com gastos tributários supera a casa de R$ 295 bilhões de reais.  Conferir aqui.  

 [6] Para a correta delimitação e um aprofundamento dos conceitos de benefício tributário, incentivo tributário, benefício fiscal e incentivo fiscal, conferir: BOMFIM, Gilson Pacheco. Incentivos Tributários: Conceituação, Limites e Controle.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

 [7] Exemplo recente da desastrosa gestão federal com relação aos incentivos tributários pode ser colhido da política de desoneração e “reoneração” da folha de pagamento, essa última operada através da Lei 13161/2015.   Nesse caso, ficou evidente a falta de planejamento, transparência e delimitação clara dos objetivos, quando da concessão da desoneração, bem como a ausência de análises objetivas dos possíveis e efetivos resultados obtidos com esse instrumento tributário, quando da sua revogação.

[8] Para a uma ampla análise acerca do controle dos incentivos tributários, pelo executivo, legislativo, tribunal de contas e judiciário, inclusive quanto ao próprio mérito, conferir: BOMFIM, Gilson Pacheco, op. cit.

 [9] Podem ser citados os seguintes processos: nº 015.052/2009-7 (acórdão 747/2010); nº 018.011/2010-1 (acórdão nº 1385/2011; nº 030.315/2010-7 (acórdão 3137/2011); nº 018.259/2013-8 (acórdão 1205/2014). Todos disponíveis para consulta aqui.

 [10] Conferir o acórdão nº 1205/2014, TCU – Plenário – Relator Raimundo Carrero, data 14/05/2014.  Disponível para consulta (acesso 29/08/2015) aqui.

 [11] Ibidem.

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    é procurador da Fazenda Nacional, mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, ex-Advogado da União e especialista em Direito Tributário

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