Limite Penal

Freud pode nos ajudar a entender o desejo de matar o inimigo?

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11 de setembro de 2015, 8h00

Spacca
As propostas idealizadas de discursos de paz pela paz desconsideram o caráter humano das pulsões de vida e morte que assolam a todos. O desejo de uma segurança primeva, do ventre e/ou colo materno, jamais alcançada, precisa dialogar com a figura construída do inimigo a se derrotar ou subjugar. Lacan, depois de Freud, demonstrou que amor e ódio não são pares enodados, mas extremos, criando a noção de amódio, ou seja, só pode amar quem pode odiar também.

Lendo os manuscritos do professor Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, intitulado Por que a Guerra? De Einstein e Freud à Atualidade, a ser publicado pela prestigiosa editora Essere nel Mondo, senti-me feliz porque o texto reproduz boa parte daquilo que precisava ser dito. Ao buscar dialogar a partir de cartas de Einstein e Freud, Maiquel, apresentando-as na totalidade, promove um situar importante sobre as miradas do exercício do poder/violência e dos desafios a que o Direito se propõe.

A nossa tentativa moderna de acreditar o Estado como terceiro capaz de estabilizar a violência encontra o poder soberano de quem exerce as funções estatais ou dos organismos internacionais, mas que não consegue fazer barreira à política do mercado, novo personagem da sanha eficientista. A eficiência não é um conceito de fim, mas de meio, cuja otimização do custo-benefício em face das recompensas desejadas por cada um dos sujeitos joga-os em um campo em que não há ética nem limites. Até porque a violência e o desejo de sucesso fascinam. Aliás, Freud, nesse sentido é certeiro: “É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir”.

“A violência é fascinante e nossas vidas tão banais”, cantarolava uma banda de rock, a partir da angústia (que nunca mente, diz Lacan: “A angústia surge do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar”) de seu cantor e rapidamente tornada viral.

Daí a ligação entre desvio, crime, violência e sistema de controle pode ser pensada pela ausência de mecanismos externos de investimento objetal, sendo o tédio uma categoria que precisa ser chamada à colação, na linha da criminologia cultural. Por ela podemos, quem sabe, entender que a descarga de adrenalina, a sensação de gozo — efêmero, belo, fugaz, cínico — promove um lugar. Esse lugar é um lugar humano, por definição. Jeff Ferrell, Salo de Carvalho, Álvaro Oxley da Rocha, Guilherme Boës e Mateus Vieira da Rosa, dentre outros, apontam a necessidade de entendermos o desvio em primeiro plano, para, quem sabe, termos a capacidade de pensar do lugar do agente praticante da violência institucionalizada contra o outro.

E hoje ganham fôlego propostas como o Direito Penal do Inimigo, em que toda punição é insuficiente, dado que o que se pretende, no fundo, é matar. Só matando se consegue o alento aparente de que diz Freud: “O vencido não podia restabelecer sua oposição e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu exemplo”. Continua Freud a nos dizer que por interesse na força de trabalho: “À intenção de matar opor-se-ia a reflexão de que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido. Foi este o início da ideia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve de contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança”.

A força de trabalho, todavia, já não é necessária, e diante do indesejável toda punição (prisão) é insuficiente, surgindo novas modalidades de assassinatos legalizados. O Supremo Tribunal Federal acabou de reconhecer, na ADPF proposta pelo PSOL, que as prisões são máquinas estatais de matar gente, embora tenha sido muito tímido nas deliberações. O Estado, como fruto da comunidade em constante instabilidade, surgiria para dar estabilidade e funcionar como ponto fixo da violência, trazendo para si o monopólio da violência, dita autorizada, readaptando e reeducando o sujeito para o trabalho. Entretanto, não se trata mais da violência do indivíduo opressor, mas sim de uma lógica de mercado em que os sujeitos são tomados como coisas usáveis e descartáveis e na qual a força de trabalho é supérflua. Daí o dilema de que o mercado não consegue substituir o limite simbólico que o Estado representava. Trata-se da reiteração da lógica do mais forte economicamente. Neoliberalismo, novo sujeito sem gravidade (Charles Melman), nem ponto fixo à deriva.

Enquanto as leis na modernidade eram feitas para os poderosos, atualmente são feitas pelas corporações, sem mais rostos, mas a partir da lógica da empresa. E, nessa lógica, os desviantes são tratados como custos do sistema, e a saída mais eficiente é matar. São sujeitos econômicos nulos, para os quais não valeria a pena investir, sussurram eles. Então, modificamos o modelo ortopédico pelo modelo do monitoramento, em que os guetos são identificados e excluídos, quer por cercas de contenção reais, quer por simbólicas, esperando a morte chegar de inopino. O sujeito, inimigo, então, ganha um estatuto de custo a ser cortado. O slogan é: “Quem não produz e gera custo deve morrer”.

Freud mais uma vez diz: “Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator”. Contudo, diante do neoliberalismo e da redução do Estado como terceiro, descabe a possibilidade de identificação com corporações que agem por meio do que resta de Estado instrumentalizado pelo mercado, como pontuam Agostinho Ramalho Marques Neto, Jeanine Nicolazzi Philippi e Jacinto de Miranda Coutinho.

Além disso, também em sociedades em que o limite entendido pela inscrição da Lei Paterna encontra-se frouxo, pode-se exigir responsabilidade, mas não se pode impor culpa. Responsável o sujeito sempre é, mas a culpa depende de ter recebido a Lei Paterna. E buscar coesão sem lei simbólica instaurada é da ordem do impossível.

De uma coisa, todavia, não podemos nos iludir, uma vez mais com Freud: “De nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens”. Elas estão aí. Amar ou odiar faz parte de seu lugar de sujeito. Jogar-se na lógica da matança cobra um preço ético que boa parte nem sequer se dá conta, pois alguns se acreditam em missões divinas contra qualquer inimigo de ocasião. O banquete humano continua, bem assim a fascinação pela violência. Basta olhar os sites dos principais jornais agora mesmo. Aliás, hoje deve ter muita coisa, afinal, a data é marcante: 11 de setembro.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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