Opinião

ICMS x PIS/Cofins: a chance de o STJ alinhar sua jurisprudência

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

9 de setembro de 2015, 9h00

Está prevista para esta quarta-feira (9/9) a retomada do julgamento do RESp. 1.500.473 no âmbito da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça. O caso foi afetado com o objetivo de uniformizar a jurisprudência da corte sobre relevante matéria tributária, consistente na (i)legitimidade da inclusão da parcela do ICMS na base de cálculo da Cofins e do PIS.

Como se sabe, no passado remoto, o STJ editou as Súmulas 68 e 94, que dispõem, respectivamente, que: “A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS” (j. em 15.12.1992); “A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do Finsocial” (j. em 22.02.1994). Tais súmulas, à época, consolidaram o entendimento tanto do (então) recém-criado STJ como também do (extinto) Tribunal Federal de Recursos. Com efeito, antes da criação do STJ, o extinto TFR já havia consolidado a sua orientação no sentido de que “inclui-se na base de cálculo do PIS e parcela relativa ao ICM” (conforme a Súmula TFR 258), bem como, por analogia, inclui-se na base de cálculo do Finsocial a parcela relativa ao ICM.

Desse modo, verifica-se que a cristalização da jurisprudência do STJ, no início da década de 1990 (com as Súmulas 68 e 94), nada mais foi do que a reiteração da consolidação da jurisprudência então pacificada no âmbito do próprio Tribunal Federal de Recursos por meio da Súmula 258 (para o PIS) e de sua analogia (para o Finsocial).

Além disso, verifica-se, também, que a discussão da questão jurídica, tanto no âmbito do STJ como na esfera do extinto TFR, jamais se deu sob o enfoque constitucional, isto é, com o cotejo de violações da sistemática de interpretação a contrario senso engendrada pelo Fisco e dispositivos constitucionais. Ao contrário, limitou-se sempre a focar os aspectos infraconstitucionais da discussão (de mera legalidade).

Se o pronunciamento definitivo do STJ, ainda que adotado a reboque da consolidação do antigo TFR (isto é, sem nunca ter realmente adentrado ao mérito da questão jurídica sob o enfoque infraconstitucional), tivesse bastado à comunidade jurídica, então o julgamento do REsp. 1.500.473, previsto para esta quarta-feira, não teria qualquer relevância do ponto de vista jurisprudencial.

Mas não foi isso que ocorreu. A discussão foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Em 24 de julho de 1999, o RE 240.785, que versou a questão jurídica sob o prisma constitucional no âmbito do STF, foi submetido ao Pleno. Iniciou o seu julgamento ainda naquele ano. Todavia, em razão de sequenciais pedidos de vista, com destaque para o ministro Gilmar Mendes, pelo longo tempo decorrido entre o pedido e a retomada, tal julgamento somente foi concluído em 8 de outubro de 2014. Na ocasião, o tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, ministro Marco Aurélio, deu provimento ao recurso extraordinário. Foram vencidos os ministros Eros Grau e Gilmar Mendes.

Eis a ementa do acórdão:

“TRIBUTO – BASE DE INCIDÊNCIA – CUMULAÇÃO – IMPROPRIEDADE. Não bastasse a ordem natural das coisas, o arcabouço jurídico constitucional inviabiliza a tomada de valor alusivo a certo tributo como base de incidência de outro.

COFINS – BASE DE INCIDÊNCIA – FATURAMENTO – ICMS. O que relativo a tributo de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e a Prestação de Serviços não compõe a base de incidência da COFINS, porque estranho ao conceito de faturamento” (STF – Pleno – RE 240.785, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.10.2014, DJe 16.12.2014. Em razão do recesso, o trânsito em julgado ocorreu em 23.02.2015).

 

Constata-se, por conseguinte, que o foco central que foi objeto de exame pelo STF girou em torno dos aspectos constitucionais da questão jurídica, como por exemplo, o conceito de faturamento. Além de analisar a questão da interpretação a contrario senso que pretende o Fisco fazer prevalecer em confronto com o conceito constitucional de faturamento, previsto no atual artigo 195, inciso I, alínea “b”, da Constituição Federal, é possível acrescentar a violação de outros preceitos ali contidos. A título meramente exemplificativo, ofende a(o): princípio da imunidade recíproca, previsto no artigo 150, inciso VI, alínea “a”; princípio da capacidade contributiva, consagrado no artigo 145, parágrafo 1º; princípio federativo, estabelecido no artigo 60, parágrafo 4º, inciso I; princípios da equidade, da proporcionalidade e da razoabilidade, decorrentes explícita e implicitamente do artigo 194, inciso V; princípio da não cumulatividade, previsto nos artigos 155, inciso II e parágrafo 2º, I, bem como 158, inciso IV; e princípio da seletividade, consagrado no artigo 155, parágrafo 2º, inciso III. Em razão do reconhecimento da violação à luz do conceito constitucional de faturamento, previsto no atual artigo 195, inciso I, alínea “b”, pouco importa a análise das demais máculas.  

Uma vez que o RE 240.785 foi interposto anteriormente à necessidade de apresentar a repercussão geral da questão constitucional controvertida, o julgamento de tal recurso evidentemente não se deu sob o regime da repercussão geral. E nem seria necessário. Isso porque, quando foi julgado, já tinha sido reconhecida a repercussão geral da matéria/do tema nos autos do RE 574.706, conforme decisão assim ementada: “Reconhecida a repercussão geral da questão constitucional relativa à inclusão do ICMS na base de cálculo da Cofins e da contribuição ao PIS. Pendência de julgamento no Plenário do Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário 240.785” (STF – Pleno Virtual – RE 574.706-RG, rel. min. Cármen Lúcia, j. 24.08.2008, DJe 16.05.2008).

Desse modo, uma vez finalizado o julgamento do RE 240.785, que demorou 15 anos para ser concluído, restou firmado o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Tal entendimento certamente será replicado nos autos do RE 574.706 pelo STF, sob pena de absoluta incoerência e irracionalidade de seus trabalhos, inclusive da prestação jurisdicional entregue ao jurisdicionado, gerando inadmissível insegurança jurídica, sobretudo aos contribuintes.

E o que isso tem a ver com o STJ? É muito simples. Depois do trânsito em julgado do acórdão do STF nos autos do RE 240.785, é a primeira vez que a 1ª Seção do STJ está sendo chamada a decidir sobre o tema. Nesse ponto, duas são as possibilidades. Uma traz a oportunidade de alinhamento da jurisprudência dos tribunais superiores; outra volta a promover alguma confusão sobre o tema. Vejamos: a primeira se refere a oportunidade que o STJ tem de promover o alinhamento de sua jurisprudência ao precedente oriundo do STF (RE 240.785). A segunda promoveria confusão, na medida em que o STJ pretenderia manter a sua jurisprudência antiga, ignorando o precedente emanado recentemente pelo STF (RE 240.785), seja pelo frágil fundamento de que tal decisão não foi julgada sob o regime da repercussão geral, seja porque não tem caráter vinculante. Nessa última situação, o STJ perderia uma oportunidade ímpar de alinhar a sua jurisprudência ao precedente do STF sobre a relevante questão jurídica (no RE 240.785), com a rara promoção harmônica da jurisprudência dos tribunais superiores no mesmo sentido (STF e STJ). De um ponto de vista prático, de racionalidade do trabalho e da eficiência da prestação jurisdicional, a primeira situação promove o alinhamento e a harmonização, ao passo que a segunda leva ao estado de insegurança.

Aqui, um ponto deve ser destacado. A partir do momento em que o STF sinalizou que julgaria a questão jurídica sob o prisma constitucional, em princípio, a orientação antiga do STJ acerca do tema perde um pouco sua importância, na medida em que voltada ao enfoque infraconstitucional. Ora, situação diversa ocorreria se o STF decidisse, em caráter preliminar ou, ainda, em questão de ordem, que a matéria versada se limita ao enfoque infraconstitucional, ocasião em que a última palavra, aí sim, incumbiria constitucionalmente ao STJ. De igual modo, se o STJ, durante todo esse tempo, que transcorreu de 2006 (quando se formou a maioria de 6×1 nos autos do RE 240.785) até 2014 (quando foi concluído aquele julgamento), tivesse se adiantado à conclusão do julgamento pelo STF e já tivesse revisto a sua antiga jurisprudência, então o efeito que agora pode advir de um julgamento alinhado e harmônico já teria ocorrido, precisamente quando da conclusão do RE 240.785, ocasião em que a pacificação do tema seria alcançada tanto no âmbito do STF como também do STJ.

Todavia, não foi o que ocorreu. Em realidade, por diversas razões, o STJ optou por se manter inerte enquanto o julgamento do RE 240.785 não fosse definitivamente concluído. E, na esteira de sua orientação antiga, diversas turmas dos cinco tribunais regionais federais se mantiveram julgando a questão jurídica com a simplista aplicação das Súmulas 68 e 94 do STJ, em parte premidos pela necessária observância das metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça, em parte premidos pelo enorme volume de trabalho.

E, hoje, o que pode ocorrer? É muito simples. O STJ, pela sua 1ª Seção, tem diante de si uma oportunidade única no sentido de alinhar a sua antiga orientação sobre a questão jurídica em foco ao que restou decidido em última instância definitivamente pelo STF no RE 240.785.

A boa notícia é que o STJ caminha nesse sentido. De fato, em 22.04.2015, a 1ª Seção iniciou o julgamento do tema, ocasião em que o relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, negou provimento ao recurso especial interposto pela Fazenda Nacional. Logo depois, foi seguido pelo ministro Mauro Campbell Marques. Por sua vez, o ministro Og Fernandes divergiu e decidiu pelo não conhecimento do recurso especial. Em seguida, pediu vista o ministro Benedito Gonçalves, que trará o seu voto-vista nesta quarta-feira. Ainda aguardam para votar os ministros Assusete Magalhães, Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Herman Benjamin e Marga Tessler (convocada do TRF-4).

Com efeito, não seria a primeira vez que o STJ reformaria a sua orientação jurisprudencial para se adequar ao julgamento posterior que emanou do Plenário do STF. Exemplo disso ocorreu em 2008, quando o STJ decidiu cancelar a Súmula 276, que previa a isenção da Cofins sobre as sociedades civis de prestação de serviços profissionais. Tal cancelamento decorreu do julgamento da Ação Rescisória 3.761, quando o STJ se alinhou ao precedente que tinha então emanado do STF sobre o tema (STJ – 1ª Seção – AR 3.761, rel. min. Eliana Calmon, j. 12.11.2008, Dje 01.12.2008).

Vamos acompanhar para ver se o STJ se limitará a reiterar a sua antiga jurisprudência que fora herdada do extinto Tribunal Federal de Recursos ou, se ao contrário, aproveitará essa oportunidade para promover o alinhamento e a harmonia ao relevante precedente do STF sobre o tema emanado pelo pronunciamento definitivo nos autos do RE 240.785. Pela linha dos votos proferidos até agora, tudo indica que seguirá no sentido do alinhamento e da harmonização, a exemplo de outras ocasiões em que assim procedeu no passado. 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!