Consultor Tributário

Receita ofende o CTN, viola tratado
e dribla o Judiciário em tema aduaneiro

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

9 de setembro de 2015, 10h33

Spacca
O controle aduaneiro da entrada e saída de embarcações e da movimentação de cargas nos portos brasileiros é feito pela União através do Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), no módulo de controle de carga aquaviária denominado Siscomex Carga. Nesse sistema devem ser registradas as cargas movimentadas no território nacional, sejam as embarcadas e desembarcadas no País, sejam aquelas em simples passagem pelos nossos portos.

Para as importações, vale a Instrução Normativa 800/2007, que obriga o transportador marítimo a informar à Receita Federal: número e data de emissão do conhecimento eletrônico; portos de origem, destino e escalas; peso bruto, descrição e classificação fiscal das mercadorias; identificação do embarcador; CNPJ ou CPF e passaporte do consignatário; componentes do frete (valor, moeda etc.); relação das notas fiscais emitidas no país etc.

Na prática, é comum que haja erros nessas informações, imputáveis ora ao contratante (repasse de dados incorretos), ora ao transportador (falha na reprodução dos dados recebidos ou imprecisões naqueles de sua própria responsabilidade). Isso é natural face ao enorme volume e ao grau de detalhe dos dados a serem manuseados.

Outras vezes, as informações são repassadas corretamente à Receita, mas precisam ser alteradas em razão de fatos supervenientes, como mudanças determinadas pelo cliente (cancelamento de uma venda e comercialização da mercadoria embarcada a outro adquirente) ou problemas operacionais ligados ao próprio transporte (alteração de uma escala por mau tempo ou congestionamento do terminal portuário, por exemplo).

Nesses casos, os transportadores retificam os dados inseridos no sistema. Tais retificações estão autorizadas na Instrução Normativa (artigos 27-A a 27-C) e quase sempre são realizadas de forma voluntária, antes do início de qualquer procedimento de fiscalização por parte das autoridades competentes (denominado despacho aduaneiro no jargão do setor).

Porém, a Instrução Normativa equiparava o transportador que agia assim àquele que deixa de prestar informações no prazo regulamentar (artigo 45, parágrafo 1º), aplicando-lhe a multa do artigo 107, inciso IV, alíneas e ou f, do Decreto-lei 37/66: R$ 5 mil por veículo, por conhecimento de embarque, por unidade de carga ou mesmo por item retificado (a falta de uniformidade na matéria é total!).

Ao fazê-lo, ignorava o conceito de denúncia espontânea, veiculado nos artigos 138 do CTN e 102 do próprio Decreto-lei 37/1966, sendo de notar que este último estende o instituto às penalidades aduaneiras de natureza administrativa (parágrafo 2º).

Espécie de arrependimento eficaz, a denúncia espontânea visa a estimular a observância voluntária, ainda que tardia, das obrigações tributárias principais e acessórias, premiando com a exclusão das multas o contribuinte que, em vez de apostar na inércia do Fisco (e, ao cabo, na decadência), confessa a sua infração e repara os danos dela advindos, por meio do pagamento do tributo acaso devido, com juros de mora. Qualquer regra que faça pouco caso desse instituto incorre em dupla invalidade, a saber:

— ilegalidade, por violação ao artigo 138 do CTN (e, em matéria aduaneira, ao artigo 102, parágrafo 1º, do Decreto-lei 37/66); e

— inconstitucionalidade, por usurpação da competência atribuída de forma exclusiva à lei complementar pelo artigo 146, inciso III, alínea b, da Carta de 1988 (disciplina da obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários). A censura a disposições que violam normas gerais de Direito Tributário constantes do CTN tem sido recorrente no STF, como se nota dos Recursos Extraordinários 560.626/RS (prescrição e decadência decenais para a cobrança de contribuições previdenciárias) e 562.276/PR (responsabilidade objetiva do sócio de empresa limitada por dívida de contribuição previdenciária).

Bem por isso, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região afastou, para um grande número de transportadores marítimos, a aplicação da referida multa, sempre que a correção dos dados no Siscomex Carga ocorresse antes do início de qualquer medida de fiscalização (Agravo de Instrumento na Ação Ordinária 00659147420134013400).

Dois meses depois, com o nítido objetivo de burlar os efeitos dessa decisão, a Receita Federal — a mesma que diz buscar uma relação de transparência e lealdade para com os contribuintes[1] — editou a Instrução Normativa 1.473/2014, alterando o artigo 32, parágrafo 2º, da Instrução Normativa 800/2007 e passando a admitir a denúncia espontânea em sede aduaneira, mas sujeitando-a a limite temporal diverso: a chegada do navio ao primeiro porto brasileiro[2].

Aí está a questão, pois o CTN e o Decreto-lei 37/66, como bem registrava a decisão judicial, franqueiam prazo mais largo ao contribuinte, só afastando a espontaneidade “após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração”[3].

A imposição da multa revela-se ainda mais absurda quanto à retificação de informações sobre as quais o transportador não tem controle, seja porque detidas unicamente pelos seus clientes, seja porque ligadas a vicissitudes de última hora, como o cancelamento de uma escala ou a alteração do porto de desembarque em razão de variáveis climáticas.

No que toca à descrição da carga transportada, a regra internacionalmente aplicada ao transporte marítimo – seja nas importações ou nas exportações – é a Cláusula FCL/FCL (Full Container Load), segundo a qual cabe ao exportador inserir as mercadorias no contêiner e lacrá-lo antes da entrega ao transportador, que sequer tem autorização para abri-lo.

Aqui, o descabimento de multa é absoluto, e isso mesmo que a correção aconteça após o início da fiscalização, já que o fundamento não é mais a denúncia espontânea, mas a total irresponsabilidade do transportador pelas informações que repassa às autoridades.

Não bastasse o princípio da pessoalidade da sanção – que deve incidir sobre a pessoa responsável pelo ilícito, na medida de sua responsabilidade –, os transportadores têm ainda em seu benefício regra expressa da Convenção para a Facilitação do Tráfego Marítimo Internacional, promulgada pelo Decreto 80.672/77, a saber:

E – Limitação da Responsabilidade do Armador

5.10 – Norma. Os poderes públicos não responsabilizam o armador pela apresentação ou pela exatidão dos documentos exigidos ao importador ou ao exportador para fins de despacho alfandegário a menos que o armador esteja agindo na qualidade de importador ou de exportador, ou em nome do importador ou do exportador.

Tantas e tamanhas são as arbitrariedades que custa a crer não haja aí um esforço deliberado para embaraçar de forma sorrateira as importações, a bem do equilíbrio da balança de pagamentos.


[1] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dialogo-com-a-sociedade/editorial/informar-operacoes-atipicas-e-relevantes-a-administracao-tributaria-um-direito-do-contribuinte
[2] Abuso semelhante comete o Regulamento Aduaneiro, também ele um simples decreto (Decreto nº 6.759/2009), cujo artigo 683, parágrafo 3º, tem redação muito parecida com a da Instrução Normativa 1.473/2014.
[3] A redação é do CTN.

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    é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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