Academia de Polícia

Judiciário é fundamental para pacificar
a atuação da polícia com o MP

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

8 de setembro de 2015, 8h10

Spacca
IV – "Capacidade postulatória" na representação por mandado de busca e apreensão[1]
O tema "busca e apreensão" comporta inúmeras peculiaridades que continuarão sendo tratadas nesta oportunidade.

Tem-se observado uma tendência coordenada de alguns setores do Ministério Público, ao se manifestar a respeito das representações por medidas cautelares do delegado de polícia, em negar-lhes validade em razão da falta de "capacidade postulatória" ou legitimidade do representante.

Em nome do interesse público, contudo, o órgão ministerial passa a adotá-las e subscrevê-las ao Poder Judiciário. Propaga-se, assim, o sofisma da "falta de capacidade postulatória" segundo o qual a Polícia Federal não pode bater na porta do Poder Judiciário. A estratégia, viciada constitucionalmente, apresenta inúmeras falhas de construção, destacando-se a usurpação da cláusula de reserva de jurisdição, do direito ao amplo acesso e petição aos Poderes Públicos.

A competência do Poder Judiciário para decidir conflitos administrativos, na fase pré-processual, não passou despercebida no Agravo de Instrumento 5032332-92.2014.404.0000/RS, relatora, juíza convocada Simone Barbisan Fortes, do TRF-4, conforme noticiado pela imprensa[2]:

“os inquéritos policiais, mesmo na hipótese de tramitação direta, devem ser remetidos à Justiça (…), independentemente da necessidade de medidas constritivas, mormente tocantes à definição de sua futura competência (…) mesmo em casos de tramitação direta do inquérito entre a polícia e o Ministério Público, está a autoridade policial autorizada a peticionar diretamente ao Juízo, em tudo quanto disser respeito a providências úteis ou necessárias ao andamento procedimental que conduzirá a um julgamento (…)". (Negritou-se).

Cite-se outro precedente judicial da Subseção Judiciária de Manhuaçu (MG), TRF-1, processo 1458-22.2013.4.01.3819[3]: "é preciso registrar que o delegado de polícia, na qualidade de presidente do inquérito policial, tem, sim, legitimidade para postular as medidas cautelares que entender pertinentes ao sucesso das investigações".

Lamentavelmente, às vezes o óbvio precisa ser objeto de provocação e decisão judicial. Fato é que não há titularidade da ação penal na fase inquisitiva, cabendo ao delegado de polícia a condução regular do inquérito, sob sua coordenação e responsabilidade, não sendo a manifestação ministerial vinculativa da atividade policial ou judicial.

No RE 593727, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, anotou, com muita propriedade:

"Reconhecer o poder de investigação do Ministério Público em nada afeta as atribuições da polícia e não representa qualquer diminuição do papel relevantíssimo por ela conduzida. As melhores investigações decorrem de atuação conjunta, um contribuindo para a atividade do outro".

Em princípio, o procurador-geral da República teria se manifestado[4], ao final do julgamento do RE 593727, no sentido de que os dois órgãos devem atuar de modo "cooperado" e que "não se quer aqui estabelecer cisão entre Ministério Público de um lado e polícia de outro. O que se quer é a cooperação de ambos. Não se trata aqui de estabelecer o trabalho de um contra o do outro".

Contudo, em que pese as palavras conciliatórias do dirigente máximo do MP, a tendência excludente das representações policiais evoluiu para a edição da Orientação 04/2014[5], da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que “orienta os membros do Ministério Público Federal a, respeitada a independência funcional, pugnarem pelo não conhecimento do pedido de medida cautelar formulado por autoridade policial diretamente ao juízo”.

Para completar o kit de mordaça sob medida para a Polícia Federal, a orientação subsequente (Orientação 05/2014[6]) , corroborando a recomendação para que não seja conhecida a representação cautelar da Polícia Federal, menciona que não cabe à PF formular qualquer petição diretamente ao Poder Judiciário:

"Considerando a ausência de capacidade postulatória das autoridades policiais, às quais não cabe formular petições diretamente aos magistrados a qualquer título, inclusive para promover declínios de atribuição (…) ORIENTA os membros do Ministério Público Federal, respeitada a independência funcional, a recorrerem de decisão judicial que acolha requerimento de declínio de competência formulado diretamente por autoridade policial, certo que, no tocante aos inquéritos policiais não judicializados, as questões de atribuição devem ser dirimidas no âmbito do próprio Ministério Público…".

Enquanto a Polícia Federal tenta pacificar os ânimos e editar atos normativos e orientativos que compatibilizem a atuação conjunta com o MPF, certas iniciativas jogam por terra todo o esforço dos órgãos públicos para que seus servidores entendam a importância do trabalho integrado no sistema de justiça criminal e permitem que prevaleça a voz dos "fundamentalistas" em detrimento do esforço agregador.

É claro que manifestações no sentido de impossibilidade de representação pelo delegado de polícia são contra legem, mas para alguns fiscais da lei isso pouco importa. Contudo, o bom senso e o trabalho em conjunto prevalecem para aqueles que estão realmente interessados em dar uma resposta para a sociedade a respeito da repressão à crescente onda criminosa. Neste pequeno mundo do sistema de Justiça criminal, os bons profissionais se conhecem e trabalham em conjunto e harmoniosamente.

De plano, se verifica a equivocada nomenclatura "capacidade postulatória". Nem o órgão ministerial nem o policial possuem jus postulandi, ao contrário de advogados, defensores públicos, procuradores e advogados da União, quando representam seus clientes, hipossuficientes e administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, estados, Distrito Federal e municípios. O delegado de polícia "representa", e o órgão ministerial "requer".

Oportuna a lição de Borelli Thomaz[7] (2015):

"Para a efetividade da investigação, o poder postulatório do delegado poderá decorrer do exercício da representação, meio disponível para instrumentalizar e facilitar a busca da verdade material, bem como para que seja possível a adoção de medidas tendentes a restringir direitos e garantias individuais, como a liberdade (no caso de prisão) ou o patrimônio (no caso de sequestro de bens), ou de alguma medida jurídica que possa vir a atingir direitos da personalidade do investigado".

Por trás da adoção de representações policiais como se de terceiros fosse e a subjacente questão ética, há um perigoso subterfúgio para afastar o Poder Judiciário do inquérito policial, da análise das representações policiais e dos incidentes pré-processuais no inquérito. Isso é mais preocupante quando a incidência desse propósito ocorre em medidas cautelares mitigadoras de garantias constitucionais.

O tramite direto do inquérito entre o órgão policial e o ministerial, previsto na Resolução 63/2009 do Conselho da Justiça Federal, não retira a legitimidade e legalidade da representação do delegado de polícia ao Poder Judiciário. A citada resolução apenas a excepcionou na dilação de prazo da investigação, por considerar que "não há exercício de atividade jurisdicional no simples deferimento de prorrogação de prazo para a conclusão das investigações policiais".

A Resolução 63 do CJF[8] garante que, "havendo qualquer outro tipo de requerimento, deduzido pela autoridade policial, que se inserir em alguma das hipóteses previstas no artigo 1º desta resolução, os autos do inquérito policial deverão ser encaminhados ao Poder Judiciário Federal para análise e deliberação" (artigo 3º, parágrafo único). O artigo 1º prevê a representação da autoridade policial para a decretação de prisões de natureza cautelar; o requerimento da autoridade policial de medidas constritivas ou de natureza acautelatória; requerimento de extinção da punibilidade com fulcro em qualquer das hipóteses previstas no artigo 107 do Código Penal ou na legislação penal extravagante.

A Resolução 993[9], de 5 de março de 2015, do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, prevê idênticas hipóteses e acrescenta o "requerimento de declinação de competência", ao contrário do que dispõe a Orientação 05/2014-7ª CCR/MPF.

Independentemente do que estatui a Resolução 63/2009-CJF, vasta legislação federal confere prerrogativa de representação pelo delegado de polícia ao Poder Judiciário ou de requisição de dados: artigos 6º, 13, IV, 127, 149, § 1º, 282, §2º, 311 e 378, II do CPP, artigo 2º e seu § 1º e artigo 3º, inciso I, ambos da Lei 7960/89, artigo 3º, I, da Lei 9.296/96, artigo 4º e 17-b da Lei 9.613/98, artigos 51, parágrafo único, 60, 62, §2º e 72 da Lei 11.343/2006, artigo 2º,  § 2º da Lei 12.830/2012, artigos 4º, § 2º, 10 a 12 e 21 da Lei 12.850/2013, artigos 13,  § 2o e 15,  § 2o  da Lei 12.965/2014.

No aspecto "capacidade postulatória" e legitimação para representar por busca e apreensão e outras medidas cautelares, urge a sensata intervenção do magistrado, em nome de uma justa e imparcial persecução criminal, para pacificar e disciplinar a digna atuação conjunta dos órgãos policiais e ministeriais, afastando-se qualquer pretensão de impedir o amplo acesso ao Poder Judiciário, amordaçar, isolar e cercear o manejo de instrumentos regulares de investigação criminal pela Polícia Judiciária.

V- Busca e apreensão em repartição pública
A busca e apreensão em repartição pública não é uma medida de fácil execução. Problemática, costuma gerar desconforto nas relações interinstitucionais.

Para ilustrar a problemática, diga-se que inexiste previsão no Código de Processo Penal, que, de tão antigo, discorre apenas que "a busca será domiciliar ou pessoal". Não é culpa do nosso CPP, mas da criminalidade organizada brasileira que evolui muito rápido, enquanto instituições e legislações se tornam obsoletas na mesma velocidade. Naqueles tempos, não se imaginava a figura da "pessoa jurídica delinquente" e que espaços públicos pudessem ser utilizados para ocultação e cometimento de crimes e para o enriquecimento pessoal (não o enriquecimento pessoal pelo trabalho, mas aquele outro, o do enriquecimento pessoal pelo recebimento ou exigência de vantagens indevidas).

Os atos normativos das Polícias Judiciárias, em geral, limitam-se a recomendar que a busca em repartições públicas, quando necessária, será antecedida de contato com o dirigente do órgão, onde será realizada. Mesmo esse contato, em nome de uma política de boa vizinhança e de harmonia, merece várias considerações.

Recomenda-se que a busca e apreensão só seja informada ao órgão público se o alto escalão ou administração superior do órgão não estiver envolvida, sequer por omissão, com o cometimento de crimes e se essa hipótese, ainda que remota, tenha sido descartada de plano pela equipe de investigação, com absoluta segurança.

A comunicação, que seria prévia à diligência, mas não sem adoção de cautelas legais e operacionais, ocorrerá a) tão somente depois de a equipe policial chegar ao local, b) quando assegurada a segurança do perímetro, c) verificado se há pessoas na repartição ou imediações que possam comprometer a colheita de provas e indícios d) com anuência do Poder Judiciário e do Ministério Público, devendo constar a circunstância de comunicação ao dirigente do órgão na representação policial.

Em síntese, a comunicação ocorrerá só depois de adotadas todas as medidas para que não haja contaminação na produção e colheita das provas, neutralizando possível iniciativa do investigado que possa interferir no resultado útil da diligência. A partir daí, é razoável a comunicação da diligência ao dirigente da repartição pública, representante da administração superior do órgão ou seu preposto, que deverá franquear o acesso aos diversos andares, salas, gavetas, computadores, câmeras de circuito interno, com o menor impacto possível na atividade diária da repartição, por analogia ao artigo 248 do CPP.

Uma boa prática é aguardar, por prazo razoável, segundo o prudente critério do delegado de polícia, a chegada do preposto ou representante do órgão público para se iniciar a diligência, a fim de que possa acompanhar a lisura do procedimento. É claro que a presença de representante do órgão não é exigência legal, aperfeiçoando-se a diligência com o acompanhamento de testemunhas que assinarão o auto circunstanciado (artigo 245, parágrafo do CPP).

Na redação final do projeto de Lei do Senado 156/2009 (anexo ao parecer 1636/2010), persiste a falta de disciplina da busca e apreensão em repartições públicas, empresas e escritórios de profissionais liberais, repetindo-se as disposições do vetusto CPP. Peca, ainda, por não contemplar medidas singelas, como a) disciplina da leitura e  entrega de segunda via ou contrafé de mandado de busca e apreensão; b) faculdade de backup da mídia apreendida e documentos, no caso de sua apreensão; c) fornecimento de uma via do auto de apreensão ou de arrecadação; d) explicitação de acompanhamento das testemunhas em cada compartimento ou dependência do local; e) necessidade de lacrar o local arrombado, principalmente quando abandonado ou não habitado.

Ainda no PLS 156/2009, a medida cautelar, que é basicamente preparatória da ação penal, continua sendo tratada após a citação e intimações, quando melhor estaria na parte inicial do CPP, logo após a disciplina da decisão proferida pelo juiz de garantias, que é o responsável pela análise, mitigação e afastamento das garantias constitucionais.

É aplicável a Portaria 1287/2005-MJ, especialmente no que diz respeito a que "não se fará a apreensão de suportes eletrônicos, computadores, discos rígidos, bases de dados ou quaisquer outros repositórios de informação que, sem prejuízo para as investigações, possam ser analisados por cópia (back-up) efetuada por perito criminal federal especializado" (artigo 3º).

Por fim, uma última observação a respeito da busca em repartições públicas. A diligência, naturalmente, poderá acontecer com a concorrência de outros órgãos públicos parceiros, como a Controladoria-Geral da União (fraudes em processos licitatórios em prefeituras) e Ministério da Previdência Social, por sua Assessoria de Pesquisas Estratégicas (fraudes previdenciárias na concessão de benefícios em agências do INSS), por exemplo, em razão do conhecimento técnico especializado de seus auditores e técnicos, que auxiliarão a equipe policial na triagem do material a ser apreendido, inclusive na de processos físicos e eletrônicos que possam constituir corpo de delito.

Nesta clara situação de parceria e apoio interinstitucional, que reflete a imprescindibilidade do trabalho em equipe, os servidores e colaboradores não policiais devem se deslocar por meios próprios fornecidos pela instituição de origem, evitando-se o deslocamento em viaturas policiais, o que pode fragilizar a sua segurança em vez de aumentá-la, numa situação de perseguição em alta velocidade ou ação criminosa contra policiais. A presença do corpo técnico não policial, no local de busca, será consignado no auto circunstanciado, assim como a presença eventual do representante do Ministério Público. É recomendável que pessoas alheias à diligência funcionem como testemunhas do cumprimento do mandado judicial.


[1]Este texto é uma continuação da coluna da semana passada.
[2] Disponível em: http://fenadepol.org.br/reconhecida-a-capacidade-postulatoria-do-delegado-de-policia-federal.
FAUSTO, Macedo. Justiça reconhece capacidade postulatória de delegados da PF. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/justica-reconhece-capacidade-postulatoria-de-delegados-da-pf. Acesso em 5 set. 2015.
[3] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-fev-04/policia-nao-autorizacao-mpf-solicitar-apreensao. http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/policia-nao-autorizacao-mpf-solicitar.pdf. TEIVE, Renato Silvy. Capacidade postulatória do delegado de polícia. Disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=14495. Acesso em 5 set. 2015.
[4]Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/stf-confirma-poder-de-investigacao-do-ministerio-publico.html. Acesso em 5 set. 2015.
[5]Disponível em: http://www.pgr.mpf.mp.br/conheca-o-mpf/estrutura/corregedoria/AtoseNormas-AGOSTO-2015.pdf. Acesso em 5 set. 2015.
[6]Idem.
[7]THOMAZ, Thiago Hauptmann Borelli. MP pode investigar, mas delegado preside inquérito e comanda persecução. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jun-07/thiago-thomaz-mp-investigar-delegado-preside-inquerito. Acesso em 5 set. 2015.
No mesmo sentido: TEIVE, Renato Silvy. Capacidade postulatória do delegado de polícia. Disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=14495. Acesso em 5 set. 2015.
FAUSTO, Macedo. Justiça reconhece capacidade postulatória de delegados da PF. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/justica-reconhece-capacidade-postulatoria-de-delegados-da-pf. Acesso em 5 set. 2015.
[8]Disponível em: https://www2.cjf.jus.br/jspui/bitstream/handle/1234/5547/Res%20063%20de%202009.pdf. Acesso em 5 set. 2015.
[9]Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-mg-resolucao-tre-mg-no-993-de-05-de-marco-de-2015. Acesso em 5 set. 2015.

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    é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

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