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Pierre Amorim: Denúncia inepta por falta do pedido de condenação

7 de setembro de 2015, 8h33

Por Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim

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O que nos levou a tratar deste tema foi um caso prático, decorrente de nossa atividade como juiz criminal, ao percebermos que a denúncia ofertada pelo Ministério Público não continha o pedido de condenação. Pensamos, porém, que o tema possa ter alguma valia teórica que mereça divulgação, daí a adaptação da sentença, que extinguiu o processo, para o presente ensaio.

O Ministério Público, na denúncia citada, narra os fatos criminosos, faz a classificação jurídica da conduta e qualifica o réu, porém, não apresenta pedido de condenação, limitando-se a pedir a citação e o recebimento daquela.

Utilizando-se dos artigos 3º, do CPP, e 284, do CPC, facultamos a emenda da denúncia, a fim de nela constar o pedido de condenação.

O Ministério Público se manifestou no sentido de que “o pedido de condenação não se faz obrigatório quando do oferecimento da denúncia”, não emendando a inicial, o que nos levou à rejeição da denúncia, por inépcia.

Do Pedido
Como se sabe, a provocação da atividade jurisdicional está condicionada pelo devido processo legal, a exigir formas, estruturas ou procedimentos essenciais para seu regular exercício.

A ação tem seus elementos mínimos de composição (que, no mais das vezes, também lhes serve de pontos de identificação), sendo certo que, não estando presentes, a atividade jurisdicional não pode ser considerada provocada corretamente, violando-se a cláusula constitucional do devido processo legal.

O pedido do autor exterioriza sua pretensão, identifica a providência jurisdicional que se requer. O pedido é o objeto do processo, ou seja, ponto central ao qual se destina toda a atividade processual, para que se chegue ao julgamento meritório. O juiz, ao analisar o mérito da pretensão, vai julgar procedente ou improcedente o pedido que consta da inicial.

Da mesma forma que nas ações civis, eleitorais ou trabalhistas, na ação penal pública condenatória, o pedido do autor deve estar expresso.

Parte da doutrina classifica o pedido como pressuposto processual de existência, o que, deixando ao largo a clássica polêmica sobre tal categoria processual, enfatiza sua importância para a regular provocação e desenvolvimento da atividade jurisdicional.

A denúncia, apresentada sem pedido, padece da ausência de elemento constitutivo da ação, deixando de manifestar a pretensão do autor, ou seja, não requer ao Judiciário uma providência de mérito. A rigor, sem pedido não existe regular exercício do direito de ação, retratando a petição inicial uma mera notícia crime. Ademais, sem pedido, não temos sequer petição inicial, enquanto ato processual típico.

A boa técnica
Entrando já na boa técnica da elaboração da denúncia, temos a doutrina de José Frederico Marques[1] que afirma:

“A denúncia, portanto, dando forma à apresentação da ação penal, necessita trazer o pedido de prestação jurisdicional, de par com a acusação do órgão do Ministério Público”

O Ministério Público, ao denunciar, não deve se ater apenas à exposição de um fato criminoso, com suas circunstâncias. Deve atribuir esse fato a alguém, pedindo uma providência jurisdicional que, na ação penal condenatória, deve, justamente, consistir no pedido de condenação.

Aliás, o conceito de acusação é bastante negligenciado por boa parte da doutrina nacional, sendo que os manuais e cursos de processo penal modernos, mais preocupados, talvez, com os concursos públicos e provas da OAB, têm deixado a desejar no esclarecimento do tema. Acusação inclui a imputação e o pedido de condenação. A imputação é a descrição do fato criminoso, atribuição desses fatos ao réu e a classificação jurídica desses fatos. Porém, para a acusação se completar ainda falta o pedido de condenação, elemento essencial, como acima se demonstrou.

Para sanar essa lacuna teórica, traz-se o ensinamento de Afrânio Silva Jardim, mestre de todos nós[2]:

“Tratando-se de ação penal condenatória, o seu exercício pressupõe a formulação de uma acusação. Esta se compõe basicamente de dois elementos: a imputação e o pedido de condenação. Imputação e pedido de condenação formam a acusação. (…) Através do pedido, procura o autor fazer valer sua pretensão, sujeitando o réu ao processo. (…) Ainda na esteira do mestre paulista, podemos afirmar que a imputação compõe-se dos seguintes elementos: a) a descrição de fatos; b) qualificação jurídico-penal desses fatos; c) a atribuição dos fatos descritos a alguém”

Avançando um pouco mais, podemos afirmar que não bastam os requisitos postos no artigo 41, do Código de Processo Penal, para que a denúncia se considere apta. Outros requisitos essenciais e não-essenciais da denúncia escaparam à percepção do legislador, que, como cediço, no geral não revela profundos conhecimentos da técnica processual. Entre esses elementos, podemos citar o endereçamento ao órgão jurisdicional que se entende por competente, ser escrita em vernáculo, indicar o rito processual, etc.

Logicamente que nem todos os requisitos da denúncia são essenciais, como o rol de testemunhas, por exemplo. Porém, outros que não estão presentes no artigo 41, do CPP, constituem-se como imprescindíveis. É o caso da denúncia estar escrita no vernáculo, tão essencial quanto o pedido de condenação, embora não seja elemento constitutivo da ação. Tal exigência se extrai do artigo 156, do Código de Processo Civil, ainda em vigor, (norma já reproduzida no artigo 192, do novo CPC), necessariamente aplicável ao processo penal. Imagine-se uma denúncia escrita em língua bárbara (em alemão, por exemplo), obviamente, haveria de se socorrer, o juiz penal, do Código de Processo Civil, no artigo acima citado, com suporte na janela analógica do artigo 3º, do CPP, a fim de que a denúncia fosse traduzida para o português.

Nesse tópico, ainda cabe a lição de Edilson Mogenout Bonfim[3]:

“Os requisitos formais que a peça acusatória deve preencher estão contidos no artigo 41 do Código de Processo Penal e analogicamente no disposto no artigo 282 do Código de Processo Civil, que elenca os requisitos da petição inicial. Tais requisitos se resumem, basicamente, nos elementos identificadores da ação (partes, pedido e causa de pedir). Assim, deve a peça acusatória conter a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias (o que em última análise constitui a causa de pedir, pois é a exposição do fato que – ao menos em tese – violou a norma penal objetiva), e a classificação do crime; a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifica-lo, bem como a identificação do órgão do Ministério Público (ou querelante) e sua assinatura (ou seja, a qualificação das partes); o pedido de condenação (completando os elementos da ação); por fim, há de ser a peça acusatória redigida em vernáculo, contendo o devido endereçamento e o pedido de citação do réu para que integre o processo. (…)

“Ao elaborar a denúncia, deve o membro do Ministério Público ater-se ao seguinte:

VIII-Formular o pedido de condenação ou pronúncia;”

Da Inépcia da Denúncia por falta de pedido de condenação.

Já nos encaminhando para o final, diga-se que a inicial inepta, como violadora do devido processo legal, deve ser rejeitada pelo Judiciário, irregularmente provocado. No processo penal, há dispositivo expresso, artigo 395, inciso I, do CPP. Aliás, tal dispositivo sequer traz a possibilidade do juiz intimar o autor (Ministério Público ou querelante) para emendar a inicial, indicando que a rejeição deva ser imediata.

Todavia, com os olhos postos também no interesse público subjacente ao processo penal, naquele caso concreto, entendemos plausível a utilização do artigo 284, do CPC, de forma analógica.

No caso concreto, que originou este ensaio, o Ministério Público, após instado, se recusou a fazer incluir, na denúncia, o pedido de condenação. Portanto, sequer se poderia utilizar o artigo 569, do CPP, eis que as omissões, ali mencionadas, não são dos elementos essenciais, mas também e principalmente, em razão de que o Ministério Público se manifestou no sentido de que não promoveria qualquer correção à denúncia, deixando-a permanentemente inepta.

Aqui cabe esclarecer que o Ministério Público apresentou doutrina e entendimento jurisprudencial, corroborando seu atuar, no sentido de que o pedido de condenação, na denúncia, poderia ser implícito.

Como defensor dessa corrente, citamos o professor Renato Brasileiro de Lima[4], valendo suas palavras por todos que assim entendem:

“Há doutrinadores que incluem, dentre os requisitos essenciais da peça acusatória, a formulação de um pedido de condenação. A nosso ver, o pedido de condenação é implícito. Afinal, se o Ministério Público ofereceu denúncia, ou se o ofendido propôs queixa-crime, subentende-se que têm interesse na condenação do acusado. Ademais, como visto ao tratarmos do princípio da obrigatoriedade, nada impede que o promotor de Justiça, ao final do processo, opine pela absolvição do acusado. Portanto, entendemos que o pedido de condenação não é requisito essencial da peça acusatória”

Com a devida vênia, o pedido de condenação, como já visto, há de ser expresso, para que se possa regularmente provocar a jurisdição. Não é qualquer peça inicial que haverá de merecer um julgamento de mérito, para isso, aliás, existem as exigências legais para apresentação da inicial. Sendo irregularmente provocado, o Judiciário há de se abster do exame da pretensão do autor, extinguindo o processo sem resolução do mérito.

A questão referente ao pedido implícito diz respeito não à exigência de apresentação de um pedido principal e expresso, sempre presente no processo penal, civil, trabalhista ou eleitoral, mas sim, relaciona-se com as prestações vincendas, juros e correção monetária, tema este regulado no artigo 293, do Código de Processo Civil em vigor. Com a palavra, o saudoso mestre J. J. Calmon de Passos[5]:

“Pedido implícito. Esse estar contido virtualmente é característico dos chamados pedidos implícitos, ou seja, pedidos que para serem atendidos não reclamam expressa formulação. É a hipótese de prestações vincendas, se a obrigação é de trato sucessivo (art. 290) bem como da inclusão dos juros legais na condenação, ainda que não expressamente pedidos”

Note-se que o próprio Código de Processo Civil, ao admitir a categoria de pedido implícito, não deixa de esclarecer que o pedido principal deve estar expresso, sob pena de inépcia da inicial, conforme artigo 295 (nada muda com o Novo CPC, vide artigo 330).                         

Não é por outro motivo que o renomado processualista baiano, ao considerar a hipótese de inicial que não contenha o pedido de condenação, enfatiza[6]:

“A falta do pedido – Inepta é a inicial a que falta o pedido. E sem dúvida que o é, porquanto, faltando o pedido, faltará conteúdo para a sentença, em sua conclusão, uma vez que não se saberá qual o bem da vida pretendido pelo autor. E como entre nós vige o princípio dispositivo, segundo o qual não pode o juiz agir de ofício nem decidir fora, aquém ou além do pedido pelas partes, ausência do pedido impede, de modo absoluto e irremediável, o exercício da atividade jurisdicional do Estado, consequentemente, torna inviável o prosseguimento do processo”

Não poderia ser diverso no processo penal, sendo absolutamente essencial que o pedido de condenação seja expresso.

Relevante frisar que o juiz, de regra, não deve subentender o que deseja o Ministério Público, suprindo, de ofício, as eventuais falhas na atividade persecutória estatal, comprometendo a separação de funções própria do sistema acusatório. Noutras palavras, o juiz não deve tentar supor que haja um pedido de condenação na denúncia, que lhe teria sido dirigido pelo Ministério Público, para, a partir dessa suposição, julgar procedente ou improcedente o que, de fato, não existe!

Note-se que a possibilidade do Ministério Público opinar pela absolvição do réu nada tem a ver com a obrigação legal de apresentar uma denúncia formalmente apta. O Ministério Público, no processo penal condenatório, desempenha dupla atividade, conforme art. 257, do CPP, exercendo o papel de parte acusadora e fiscalizando a correta aplicação da lei penal.

Daí que que deve, o Ministério Público, como parte, provocar regularmente o Judiciário, apresentando denúncia apta, desincumbindo-se de sua carga probatória, requerendo as cautelares que entender pertinentes, etc., e, como fiscal da correta aplicação da lei penal, pode exercer a ação de habeas corpus, requerer a liberdade do réu preso, etc, inclusive, ao final, pode opinar (e não pedir) pela condenação ou absolvição do réu, bem como recorrer da sentença condenatória ou absolutória.   

Sendo inepta, a denúncia, por ausência de pedido de condenação, deve ser rejeitada, conforme artigo 395, inciso I, do CPP. Não é outro o entendimento do professor Renato Marcão[7], na obra “Curso de Processo Penal”, editora Saraiva, na pág. 266, ao dizer:

“Da narração dos fatos deve decorrer pedido lógico, correspondente.

Como petição inicial que são, a denúncia e também a queixa, devem conter pedido de condenação do apontado autor do delito, conforme os fatos narrados.

A inicial acusatória não se presta à simples comunicação de um fato, de maneira que incumbe àquele que apresentá-la em juízo deduzir pedido juridicamente possível. Cabe ao autor da ação penal postular a prestação jurisdicional condenatória.

 Se, ao contrário, a petição não contiver pedido, não poderá ser recebida. Vale dizer: deverá ser rejeitada.”     

Há de se ter, portanto, limites, e bem rígidos, na possibilidade de flexibilização das formas no processo, seja penal, civil ou de outra natureza, eis que a violação às regras processuais se traduz em agressão ao devido processo legal, garantidor da atuação escorreita do Estado na expropriação da liberdade e dos bens dos cidadãos.


 

[1] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª edição. Campinas: Millenium, 2001, p. 135.

[2] JARDIM, Afrânio Silva e AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito Processual Penal: estudos e pareceres. 13ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, pp. 170-172.  

[3] BONFIM, Edilson Mougenout. Curso de Processo Penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 233-234.

[4] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3ª edição. Salvador: Juspodium, 2015, p. 282.

[5] PASSOS, José Joaquim Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 237.

[6] PASSOS, José Joaquim Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 242.

[7] MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 266.