Opinião

Lições de Portugal sobre testamento vital e propostas para regulamentação aqui

Autor

  • Ernesto Lippmann

    é advogado em São Paulo pós-graduado pela Universidade de São Paulo e especializado em Direto médico e responsabilidade civil. Além disso é membro da comissão de bioética da OAB-SP foi assessor jurídico do CREMESP e autor do livro “Testamento vital o direito à dignidade”.

6 de setembro de 2015, 8h35

Há três anos o testamento vital (TV) foi regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, num dos mais relevantes avanços da ética deontológica e da bioética. Mesmo assim, ainda há muito por fazer. Neste artigo mostrarei a posição atual do testamento vital no Brasil, e o que podemos aprender com a experiência de Portugal.

Testamento vital é uma declaração de um cidadão mostrando, nos casos em que se atinge a terminalidade da vida, em doenças crônicas ou acidentes graves sem possiblidade de recuperação, quais são os tratamentos que este deseja receber quando a morte se aproxima, e em especial, se deseja o uso dos tratamentos paliativos, que tragam conforto, ou os agressivos e intervencionistas, e quais as medidas de suporte vital que entende serem cabíveis nestas condições, e deve ser seguido mesmo quando aquele que recebe o tratamento estiver inconsciente e não conseguir mais se comunicar com o médico.

Pode ser feito por qualquer um que tenha mais de 18 anos, devendo ser efetuado por escrito, assinado, e preferentemente com testemunhas que confirmem sua autenticidade. Não há qualquer impedimento para a elaboração de um testamento vital, pelo doente em estado grave, com câncer, ou aqueles que tenham insuficiências orgânicas avançadas (cardíaca, respiratória, hepática, respiratória, renal), os HIV positivos em estado avançado e, dependendo do caso, pelos portadores de doenças neurológicas degenerativas, se estiverem em plena consciência de suas faculdades mentais, e que tenham real ciência de seu estado para exercer a autonomia.  

O que é solicitado no testamento vital prevalece sobre os desejos da família, cabendo ao médico, por imperativo ético expresso na Resolução 1.995 do CFM, atender ao disposto na diretiva antecipada de vontades, e solicitar que esta seja incorporada ao prontuário, devendo o desejo nele expresso ser respeitado mesmo quando o paciente se encontre inconsciente.

 O testamento vital não se confunde com o pedido de eutanásia. Esta é definida como a realização do óbito, requerida pelo paciente, e no Brasil, é vedada pela lei e pela ética médica. Com o testamento vital, porém, se possibilita a escolha entre a distanásia, ou seja, o adiamento da morte, ainda que ao custo do sofrimento, e a ortotanásia, ou seja, a possibilidade de se ter uma morte digna, deixando a natureza seguir seu curso, mediante o desejo do paciente, e com ciência da família.

Com a ortotanásia, já regulamentada pela Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, não se pretende provocar a morte, mas se trata de não combater a morte, com tecnologia excessiva e desproporcional, nem apressada por ação intencional externa. Os procedimentos são denominados cuidados paliativos, que procuram trazer conforto, aliviar  a dor, angústia respiratória, depressão e outros sintomas que provoquem sofrimento. A diminuição do tempo de vida é um efeito previsível sem ser desejado, pois o objetivo primário é oferecer o máximo conforto possível ao paciente, sem intenção de ocasionar o evento morte.

Estive em Junho de 2015, a convite da Universidade do Porto para trocarmos experiências sobre o testamento vital. Tive a convicção de que temos muito a aprender com as experiências do nosso país-irmão, onde o assunto discutido há mais de uma década, já foi transformado em lei. Os principais pontos para a implantação do testamento vital e no grande mentor da ideia o professor Rui Nunes, da Universidade do Porto, que coordena o Programa Doutoral em Bioética, são de que o testamento vital abrange a possibilidade do outorgante:

a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais;

b) Não ser submetido a tratamento fútil, ou desproporcional ao seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte;

c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada,

d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental;

e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos.

Em Portugal se exige que o documento seja escrito, podendo tanto ser feito em cartório quanto inserido na rede de testamentos vitais, que é um banco de dados sigilosos, mas facilmente acessível a um médico devidamente identificado por um certificado digital, tendo o prazo de validade de cinco anos, após o que deve ser renovado.

Por outro lado no Brasil, o testamento vital, ainda que não haja uma legislação Federal sobre o assunto, tem reconhecimento legal, seja pela conclusão da legalidade da Resolução 1.995 na Ação Civil Pública, bem como pelo Enunciado 37, aprovado na Plenária da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça em 15 de maio de 2014, São Paulo, que assim dispõe:

“As diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.”

O testamento vital também pode ser feito em qualquer tabelião mediante escritura pública, sendo que, segundo o Colégio Notorial do Brasil, a procura por este tipo de documento cresceu 2000% entre 2009 e 2014[1].

O que se nota é que a regulamentação legal caminha bem atrás da área médica, em que já há várias residências e serviços especializados em cuidados paliativos. Assim, seria necessário que fosse elaborada uma lei que regulamente o assunto, pois como não há regulamentação legislativa, o assunto ainda vem sendo objeto de várias dúvidas perante a classe médica, fazendo com que, segundo matéria publicada no Jornal do CREMESP, os “médicos ainda temem respeitar as diretivas antecipadas de vontade”.

Assim, a meu ver, para que consolidássemos entre pacientes, profissionais do direito e da saúde o direito a uma morte digna propiciada pelo testamento vital, seria importante que aproveitássemos a experiência de Portugal e que fosse debatida uma legislação sobre ao assunto, que complemente a Resolução do CREMESP,  abrangendo os seguintes pontos:

 a) a prevalência do testamento vital sobre a vontade familiar, e com força vinculante para a equipe de saúde;

b) Que fosse feito por escrito,

c) A divulgação de um modelo de testamento vital na internet,  porém sem o caráter obrigatório de sua utilização;

d) Que este direito seja esclarecido com transparência para todos os usuários do sistema de saúde, inclusive com consultas médicas de orientação;  

e) Fosse criada uma rede informatizada, de acesso livre para todos os médicos, desde que devidamente identificadas, por assinatura digital, na qual houvesse um banco nacional de testamentos vitais;

f) Que o testamento vital seja desburocratizado, não sendo exigido sua elaboração por meio de escritura pública;

g) Vedação ética do médico que atende o paciente, ou for diretor clínico da instituição que atende os paciente  exercer simultaneamente a função de procurador de cuidados de saúde;

h) Possibilidade de escusa de consciência do médico, em cumprir o testamento vital, caso não concorde com seus termos, cabendo a este o encaminhamento do paciente a outra equipe.  

i) Regulamentação das questões relativas as testemunhas de Jeová, validando-se sua recusa em receber transfusão com base no princípio da liberdade religiosa, a exemplo do que ocorre em Portugal;

j) Ser exigida ratificação, ou retificação por ocasião da internação se o  documento for antigo, ou que haja um prazo de validade para o documento, exceto para os pacientes que entram inconscientes;

l) Validade expressa do disposto nos casos de Alzheimer, desde que constatado que havia capacidade civil no momento da elaboração do testamento vital;

m) Possibilidade de nomeação de um procurador de cuidados de saúde, familiar, ou não, a quem caberia fazer valer o disposto no testamento vital;

n) A ausência de diretivas escritas não deve retirar a possibilidade da família decidir;

o) Ninguém deve ser discriminado no acesso a cuidados de saúde ou na contratação de um contrato de plano de saúde, em virtude de ter ou não outorgado um documento de diretivas antecipadas de vontade, e este não pode ser exigido por ocasião da internação hospitalar.

A consultoria na elaboração do testamento vital, a ser efetuada juntamente com um médico, é um mercado novo e desafiador para os advogados, e que ainda pode ser complementado por outros serviços como o planejamento sucessório, a orientação sobre os direitos dos pacientes, como o de receber medicamentos do estado, terem isenção fiscal de imposto de renda no caso de doenças graves, o de levantar o FGTS, além das questões relativas à recusa de cobertura de planos de saúde. 

 

[1] Jornal O Estado de São Paulo 27/01/2015.

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