Olhar Econômico

Direito internacional privado fornece solução para o 'estudo de caso'

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

3 de setembro de 2015, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Completemos nosso estudo de caso, buscando a solução pelo direito internacional privado brasileiro[1]. Tal é possível face aos elementos de estraneidade nele existentes: nacionalidade e domicílio da pessoa jurídica “X” e nacionalidade do navio.

A atuação em um país, das normas de direito internacional privado (que é um dos ramos do direito do próprio país) dá-se da maneira seguinte. Se, em um dado fato jurídico, existe um ou mais aspectos que o relacionem a outro(s) ordenamento(s) jurídico(s) — elemento de estraneidade — será o caso de se percorrer o “caminho do direito internacional privado”. As normas desse direito compreendem uma categoria jurídica acoplada a um elemento de conexão. Primeiramente pela qualificação, subsumimos o fato a uma categoria jurídica. A seguir, se tal categoria encaixar-se na primeira parte de alguma norma de direito internacional privado, teremos inelutavelmente a indicação de uma norma aplicável (por meio do elemento de conexão). Se a norma aplicável for o direito do foro — do próprio país —, ela será aplicada, ficando resolvida a questão. Caso a regra indicada como aplicável for lei estrangeira, ela deverá passar por dois testes. O primeiro verificará se, conhecido o conteúdo do direito estrangeiro, não será o caso de sua não aplicação. Dentre os casos de exceção à aplicação do direito estrangeiro, o mais conspícuo é a ordem pública. Se a regra estrangeira potencialmente aplicável ferir a ordem pública do foro, ela não será aplicada, mas sim, em seu lugar, a norma jurídica do próprio foro. O segundo teste diz respeito ao reenvio, que, teoricamente, a lei estrangeira indicada pela norma de direito internacional privado brasileiro pode fazer a lei de terceiro país, mas que é proibido pelo artigo 16 da Lei de Introdução. Ultrapassado também esse segundo teste, a lei estrangeira, indicada pela norma brasileira de direito internacional privado, será aplicada, encerrando-se a prestação jurisdicional.

O Caso: “X”, empresa holandesa, é proprietária de um navio-plataforma, registrado na Libéria e, consequentemente arvorando bandeira desse país. Tal embarcação, ora fundeada em águas territoriais brasileiras para permanência longa, como sói acontecer com tal espécie de embarcação, foi hipotecada para a empresa “Y”, sendo esse direito real de garantia constituído e averbado no registro de propriedade na Libéria, em consonância com o direito local. Pergunta é válida e eficaz a hipoteca em questão em nosso país?

Duas ordens de normas jurídicas brasileiras interessam para a discussão do presente tópico.

As disposições aplicáveis da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942, redenominado pela Lei 12.376/2010), cuja natureza é de sobredireito, pois presidem a aplicação de todas as demais normas jurídicas brasileiras, inclusive as constitucionais:

Artigo 8º — “Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.

§ 1º – Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares”

E as disposições substantivas, da Lei Federal 7.652, de 3 de fevereiro de 1988, sobre registro de embarcações e respectivos direitos reais[2].

No direito internacional privado, que se desenvolveu doutrinariamente, por séculos, dentre as regras mais antigas figuram a lex rei sitae (lugar da situação da coisa, aplicável a bens imóveis, segundo Bartolo) para os bens imóveis; e a mobília personam reguntur ( as coisas móveis são regidas pela pessoa; Baldo as submetia à lei do domicílio do proprietário).

O caput da vigente Lei de Introdução consagrando o princípio unitário de Savigny, seguido no Brasil por Pimenta Bueno, Teixeira de Freitas, Carlos de Carvalho e Clóvis Bevilácqua, como regra-geral, determina que o elemento de conexão para os bens em geral seja a lex rei sitae. Daí, a indicação da lei do país em que o bem esteja situado, tanto para a qualifica-lo, quanto para regê-lo[3].

No caso concreto, o navio-plataforma por estar situado em águas territoriais brasileiras, deverá ser qualificado, pela lei do Brasil.

Por enquadrar-se na definição de bem móvel do artigo 82 do Código Civil Brasileiro vigente, a natureza do navio, segundo a lei brasileira, é de bem móvel. Ademais o artigo 478 (ainda vigente) do Código Comercial Brasileiro afirma ser o navio bem móvel.

O parágrafo 1º do artigo 8º , da Lei de Introdução de 1942 possui aplicabilidade mais ampla, se comparada com seu antecedente, o revogado artigo 10 da Introdução de 1916, cuja redação era restritiva.

A existência das pessoas jurídicas, públicas e privadas, já reconhecida anteriormente no Brasil, foi mantida pelo Código Civil de 1916, que fixou a respectiva lei nacional como elemento de conexão para determinação da capacidade. A vigente Lei de Introdução de 1942, em seu artigo 11, manteve implicitamente o reconhecimento das pessoas jurídicas estrangeiras , embora, consagrando ao invés da nacionalidade a do lugar de sua constituição.

Quanto à eventual divergência de critérios entre o fixado pela Lei de Introdução e os constantes da legislação brasileira sobre sociedades, Serpa Lopes e Dolinger as harmonizam, dizendo, em suma, que o preceito do artigo 11 prevalece para solucionar o conflito interespacial; enquanto que o artigo 60 da Lei de Sociedades por Ações, discrimina as condições atributivas da nacionalidade brasileira para essas sociedades.

Com base no exposto no parágrafo antecedente, a empresa “X” de nacionalidade holandesa, é reconhecida no Brasil, embora sua sede seja nos Países Baixos.

As ordenações francesas do século XVII foram as primeiras a se ocupar da pessoa jurídica, legislativamente. O reconhecimento da pessoa jurídica foi feito por analogia com a pessoa física e por ser sua teorização tardia, os doutrinadores não se referem a ela até o século XIX. Tal estado de coisas mudaria modernamente.

Internacionalmente o Relatório Rundstein da Sociedade das Nações, em 1927, referiu-se a domicílio de pessoa jurídica, como sinônimo de sede; e o Código Bustamante, do ano seguinte, fala em domicílio de pessoa jurídica.

A seguir vejam-se os antecedentes, bem como a evolução no Brasil, cronologicamente, da utilização do “domicílio” para a pessoa jurídica. A Nova Consolidação das Leis Civis (1899) de Carlos de Carvalho, menciona sede ou domicílio de pessoa jurídica. Rodrigo Octavio, em 1915, menciona a nacionalidade das pessoas jurídicas. O mesmo acontecia com a jurisprudência da época. No caso Companhia Chemins de Fer Espírito Santo e Minas, a Primeira Câmara de Apelação do Rio de Janeiro menciona empresa domiciliada no Brasil.

A doutrina brasileira clássica — Carvalho de Mendonça, E. Carvalho, Valladão, A. Xavier e Serpa Lopes — continua a utilizar o domicílio com referência às pessoas jurídicas[4].

Precedentes jurisprudenciais hodiernos também se referem ao domicílio da pessoa jurídica: Tribunal de Justiça de São Paulo, Agravo de instrumento 2076932-73.2015.8.26.0000 e Agravo de instrumento 0017162-28.2011.8.26.0000; e Superior Tribunal de Justiça, AgRg no REsp 31813/PR.

Por ser de uso corrente, no Brasil, a utilização de nacionalidade para a pessoa jurídica, aplica-se o parágrafo 1º, do artigo 8º da Lei de Introdução no caso concreto. Sendo o navio-plataforma um bem móvel, fundeado em território brasileiro, mas de propriedade de pessoa jurídica holandesa, tem a si aplicado a lei do país do domicilio do proprietário, no caso a lei holandesa. Como o ordenamento jurídico holandês não fere a ordem pública brasileira e confere validade à hipoteca liberiana, ipso facto, ela é válida também no Brasil.

Por essa razão conclui-se que, uma vez integralmente satisfeitos os requisitos de constituição e registro segundo a lei de sua nacionalidade, a hipoteca existente sobre o navio-plataforma deve ser reputada não apenas existente, mas também válida e eficaz no Brasil, independentemente de qualquer outra providência ou formalidade.


1 Ver a solução do direito internacional público em Rodas, João Grandino, Estudo de caso é método útil também em países de direito continental, Revista Conjur, 06-08-2015.

2 Ver Rodas, João Grandino, Hipoteca de navio estrangeiro é válida e eficaz no Brasil, Revista Conjur, 30-07-2015.

3 Ver Rodas, João Grandinho Rodas, Direito Internacional Privado Brasileiro, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 22

4 Ver: Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Editora Saraiva, 1995, p. 15/19; 203/210; 81; 90/91; 216; 327; 323; 322; e 330.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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