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As pedaladas jurídicas nos processos de julgamento de contas

3 de setembro de 2015, 8h00

Por Luciano Ferraz

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As discussões em torno das contas do Governo Federal referentes ao exercício financeiro de 2014, prestadas, na forma do artigo 71, inciso I combinado com o artigo 49, inciso IX da Constituição da República pela presidente da República ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Congresso Nacional, tem ocupado boa parte do noticiário do país. Fala-se, pitorescamente, em “pedaladas fiscais”, mas não se colocam a crivo aspectos jurídicos do julgamento das contas governamentais.

Nunca antes na história desse país, o julgamento das contas anuais prestadas pelo Chefe do Poder Executivo causou tanto alvoroço. Salvo em âmbito municipal e em alguns Estados — onde existem inúmeros exemplos de atuação firme dos Tribunais de Contas — pouco se viu e se estudou sobre o processo administrativo de julgamento das contas anuais das Administrações Públicas Brasileiras.

Até meados de 2015, por exemplo, a despeito da atuação funcional do TCU na emissão dos pareceres prévios sobre as contas governamentais federais, o Congresso Nacional sequer havia iniciado o julgamento das contas dos exercícios financeiros de 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013.

Repentinamente, ao sabor do ambiente político e nada mais, as contas federais de 2002 a 2008 tramitaram no Congresso Nacional e já se encontram no Senado Federal, após exame da Comissão Mista de Orçamento, enquanto as contas de 2009 a 2013 encontram-se em exame na referida Comissão.

O julgamento das contas de 2002 a 2013 parece não suscitar maiores embates, afinal o parecer prévio do TCU em todas elas é no sentido da aprovação das contas, com ou sem ressalvas. Já quanto à prestação de contas de 2014 a simples possibilidade de o TCU opinar pela sua rejeição causa furor generalizado.

Cabe esclarecer que o parecer prévio e o julgamento das contas pelo Congresso Nacional no sentido da rejeição das contas não periclitam, só por si, o mandato da Presidente da República, como querem fazer crer alguns; todavia, constituem ingrediente ácido para discussões referentes às infrações político-administrativas (art. 85, CR/88) e às condições de elegibilidade (artigo 1º, inciso I, alínea “g” da LC 64/90, com a redação dada pela LC 135/10).

Nesse cenário, urge discutir algumas questões de ordem técnica relacionadas com o julgamento de contas prestadas pelos chefes do Poder Executivo, tais como a natureza jurídica do parecer prévio, direito de defesa e outros aspectos relevantes que amiúde se apresentam.

A proposta deste ensaio é, portanto, contribuir para o debate em torno do processo administrativo de julgamento das contas governamentais, tomando por base um texto que escrevi há cerca de quinze anos intitulado Due Process of Law e Parecer Prévio das Cortes de Contas, publicado, entre outros, na Revista Diálogo Jurídico, Ano I, número 9, dezembro de 2001, acessível no site www.direitopublico.com.br.

Referido texto, embora direcionado mais propriamente à análise das contas dos prefeitos municipais tem pertinência com o cenário atual, fundamentalmente pela identidade entre os processos de julgamentos de contas de exercício ou contas globais em âmbito federal, estadual e municipal (princípio da simetria).

De acordo com o artigo 71, inciso I combinado com o artigo 49, inciso IX, o chefe do Poder Executivo presta contas anualmente ao Tribunal de Contas, que tem o prazo de 60 dias para emitir o parecer prévio sobre as contas do governo (artigo 71, inciso I), remetendo-as ao Congresso Nacional para posterior julgamento e apreciação sobre a execução dos planos de governo (artigo 49, inciso IX).

O conteúdo das contas globais prestadas pelo Chefe do Executivo é diverso do conteúdo das contas dos administradores e gestores de recurso público. As primeiras demonstram o retrato da situação das finanças da unidade federativa (União, Estados, DF e Municípios). Revelam o cumprir do orçamento, dos planos de governo, dos programas governamentais, demonstram os níveis de endividamento, o atender aos limites de gasto mínimo e máximo previstos no ordenamento para saúde, educação, gastos com pessoal. Consubstanciam-se, enfim, nos Balanços Gerais prescritos pela Lei 4.320/64. Por isso, é que se submetem ao parecer prévio do Tribunal de Contas e ao julgamento pelo Parlamento (art. 71, I c./c. 49, IX da CF/88). (RMS 11.060/GO, Rel. Ministra Laurita Vaz, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo Medina, Segunda Turma, julgado em 25/06/2002, DJ 16/09/2002, p. 159)

Como se vê, o processo de julgamento de contas se desenrola em duas etapas. A primeira delas acontece no Tribunal de Contas e termina com a emissão do parecer prévio; a segunda delas se desenvolve no Poder Legislativo e tem como base o parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas.

Logo, apesar da nomenclatura, esse parecer prévio não configura manifestação de controle prévio da Administração, eis que os atos e fatos submetidos a exame já se encontram consumados. Trata-se de controle a posteriori.

Além disso, embora destituído de caráter decisório stricto sensu, o parecer prévio do Tribunal de Contas tem a potencialidade de ampliar o risco de sanção jurídica ao responsável no caso de emissão pela rejeição.

O Supremo Tribunal Federal, em decisão da lavra do ministro Celso de Mello, no julgamento da SS 1.197/PE, em 15 de setembro de 1997, publicado no DJ de 22 de setembro daquele ano, já teve a oportunidade de asseverar que:

A circunstância de o Tribunal de Contas exercer atribuições desinvestidas de caráter deliberativo não exonera essa essencial instituição de controle – mesmo tratando-se da apreciação simplesmente opinativa das contas anuais prestadas pelo Governador do Estado – do dever de observar a cláusula constitucional que assegura o direito de defesa e as demais prerrogativas inerentes ao due process of law aos que possam, ainda que em sede de procedimento administrativo, eventualmente expor-se aos riscos de uma sanção jurídica.

Cumpre ter presente que o Estado, em tema de sanções de natureza jurídica ou de limitações de caráter político-administrativo, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade institucional, o princípio da plenitude de defesa, pois – não custa enfatizar – o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer restrição imposta pelo Poder Público exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF. art. 5º, LV), a fiel observância do postulado do devido processo legal.

Nessa linha, é que se tem sustentado, desde os anos 2000, que: (a) o processo de julgamento de contas é processo administrativo e o ato jurídico emanado no seu curso também é administrativo (não jurisdicional); (b) o parecer prévio do Tribunal de Contas, para além do caráter opinativo, assume natureza jurídica de manifestação quase vinculante, porquanto não é dado ao Poder Legislativo ignorar o seu conteúdo, omitindo-se de apreciá-lo (e às contas) ou simplesmente desprezá-lo, sem, motivadamente, expressar as razões pelas quais o faz; (c) se a votação no Parlamento seguir o parecer prévio do Tribunal de Contas, o ato de julgamento encontrar-se-á, automaticamente, motivado, porém, se o Poder Legislativo intentar distanciar-se do parecer prévio, deverá fazê-lo motivadamente, com base em justificativas plausíveis reveladas durante o curso do processo administrativo.

Sobre serem fundamentadas na exigência constitucional de motivação dos atos judiciais e administrativos em geral (artigo 93, incisos IX e X da Constituição), tais justificativas poderão estar consubstanciadas em parecer da comissão de orçamento (contrário à manifestação do Tribunal de Contas), nas razões de defesa apresentadas pelo prestador, em laudos técnicos acostados aos autos, em pronunciamentos individuais ou coletivos dos parlamentares, impossibilitando que o julgamento das contas se perfaça com lastro exclusivo em ingredientes políticos.

Essa constatação impõe reconhecer: (a) plenitude do direito de defesa no processo administrativo de julgamento das contas anuais como corolário do devido processo legal; (b) impossibilidade de votação secreta para apreciação do conteúdo respectivo; (c) aplicação do princípio do livre convencimento motivado; (d) pertinência da aplicação da teoria dos motivos determinantes; (e) controlabilidade da deliberação do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, sem substituição da competência.

O que se quer significar, portanto, é que o julgamento das contas no Poder Judiciário não traduz ato de natureza eminentemente política, isenta, portanto, da revisão do Poder Judiciário. Uma vez provocado a propósito do julgamento das contas realizado pelo Poder Legislativo, o Poder Judiciário poderá apreciar: (a) requisitos de validade do processo e do decreto legislativo respectivo; (b) existência formal de motivação, cuja ausência leva à nulidade do julgamento; (c) adequação e seriedade dos motivos alegados como causa determinante das conclusões do processo.

Bem de ver que a decisão do Poder Judiciário não substituirá a do Poder Legislativo, porquanto a competência para o julgamento das contas é exclusiva deste. Todavia, o desrespeito aos corolários do devido processo legal e da motivação dos atos administrativo poderá dar ensejo à declaração de nulidade do julgamento de contas no âmbito do Poder Judiciário.

Em suma, desmerecer aspectos técnico-jurídicos na apreciação parlamentar das contas do exercício não deixa de ser uma “pedalada jurídica”.