Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chileno (parte 28)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

2 de setembro de 2015, 8h05

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1. Profissões jurídicas chilenas: o significado de ser mais um na multidão
Diferentemente da maior parte dos países da América do Sul, o Chile não reconhece nas carreiras jurídicas, ao menos até agora, um papel de preeminência ou de prestígio excepcional em relação a outras profissões. A carreira militar ainda é respeitada e representa um meio eficaz de ascensão social para muitos chilenos de origem humilde e regiões periféricas do país. O fato de não haver grandes diferenças no valor das anuidades das instituições universitárias públicas e privadas também terminou por criar um movimento estudantil forte, que foi o condutor do processo de reforma do ensino chileno, embora nos últimos tempos a sociedade tem repensado os verdadeiros resultados dessa mudança. Como já salientado, o Chile experimenta o paradoxo de ter construído o mais eficiente modelo de educação superior do subcontinente, o qual é percebido como injusto e segregador dos pobres. Esse argumento, porém, seria aplicável ao modelo norte-americano.

Médicos, economistas, engenheiros e militares são personagens que ocupam uma posição invulgar na sociedade chilena, ao menos em comparação com o equivalente status de suas profissões no Brasil. Um serviço público extremamente reduzido, também se comparado ao brasileiro, torna menos amplo o acesso às carreiras jurídicas na burocracia estatal.

Em grande medida, o Chile viveu um processo de liberalização econômica antes daquele experimentado por boa parte da América do Sul entre os anos 1985 e 2000. A adoção do modelo da Escola de Chicago foi uma das marcas da ditadura do general Augusto Pinochet, mas os governos da Concertação, a aliança entre socialistas e democrata-cristãos, que o sucederam no poder, mantiveram seus fundamentos, posto que tenham iniciado uma forte política de restauração das liberdades civis e de proteção aos direitos humanos[1]

Outro ponto digno de nota foi o aumento significativo do número de faculdades de Direito nos anos finais da ditadura militar, na década de 1980, e que se prolongou nos anos 1990 com o crescimento da oferta de vagas e de bacharéis em Direito. De 1973 a 1990, havia apenas cinco cursos jurídicos no país, todos oferecidos por universidades públicas. Em 1998, tinha-se 36 cursos, sendo 13 estatais e 23 privados. O número de estudantes de Direito saltou de aproximadamente 4 mil em 1973 para quase 25 mil em 1998[2].   

No Chile atual, as carreiras jurídicas ganharam aumentos significativos de remuneração, se comparados aos níveis dos subsídios do tempo da ditadura, e parte considerável dos docentes de Direito passaram a adotar uma posição de militância política dentro das salas de aula, o que era impensável até 1989, muito em razão dos níveis remuneratórios baixos.   

Nesta coluna, examinar-se-ão as principais profissões jurídicas do Chile.

2. O magistrado chileno
À semelhança do que ocorreu no Brasil durante o regime militar, no período de 1973 a 1989, juízes e membros do Ministério Público eram mal remunerados, e muitos silenciaram ante os abusos do regime. Desde a redemocratização, houve um considerável incremento nos recursos orçamentários para o Poder Judicial e para os subsídios dos juízes, bem como no número de magistrados. A remuneração bruta mensal de um juiz com um ano de carreira é de 13.508,32 pesos chilenos (equivalentes a R$ 6.991,89 ou US$ 1.961,57). Em termos comparativos, o presidente da República ganha valores brutos mensais de 8.932.538,00 pesos chilenos (equivalentes a R$ 46.234,72 ou US$ 12.904,99)[3].

O Chile possui um Tribunal Constitucional, que é um órgão com poderes jurisdicionais, mas que não se coloca na estrutura do Poder Judiciário. Sua primeira conformação deu-se em 1970, até que foi dissolvido em 1973, após o golpe militar liderado pelo general Pinochet. Sua recriação deu-se em 1980, com a nova Constituição chilena, e, em 2005, o Tribunal de Constitucional sofreu uma significativa reforma. Sua competência primordial é exercida por meio do controle de constitucionalidade de normas constitucionais, leis orgânicas, leis ordinárias, tratados internacionais, decretos e outras normas, além de outras atribuições de caráter político.

O Tribunal Constitucional é formado por dez ministros, dos quais: a) três são eleitos dentre os ministros da Corte Suprema de Justiça, equivalente ao Superior Tribunal de Justiça e ao Tribunal Superior do Trabalho brasileiro. Sua permanência no Tribunal Constitucional depende de sua continuidade no cargo de ministro da Corte Suprema de Justiça. Com isso, terminou uma situação que só existia no Chile: o ministro da Corte Suprema era também ministro do Tribunal Constitucional. Desde 2005, ao ser integrado a este último, o juiz não mais atua na primeira corte[4]; b) três membros escolhidos pelo presidente da República; c) dois membros escolhidos pelo Senado, por meio de votação favorável de dois terços dos senadores; d) dos membros sugeridos pela Câmara dos Deputados e designados pelo Senado.

Os membros indicados ou eleitos pelo presidente e pelas Casas Legislativas devem preencher os seguintes requisitos: a) 15 anos de exercício da advocacia; b) ter-se destacado em suas atividades como advogado, professor ou servidor público; c) não apresentar impedimento para o exercício da magistratura. O mandato de ministro do Tribunal Constitucional é de nove anos. A renovação dos cargos dá-se em intervalos de três anos[5]. Não há recondução, salvo para hipótese na qual o ministro serviu anteriormente em período inferior aos cinco anos, na condição de substituto. A idade máxima para exercer os ofícios no Tribunal Constitucional é de 75 anos, como agora também admite a Constituição brasileira[6].

A atual estrutura do Poder Judiciário chileno tem como órgão de cúpula a Corte Suprema de Justiça, que exerce funções de cassação sobre os órgãos inferiores, além de exercer sua direção correcional, orçamentária e administrativa, com exceção do Tribunal Constitucional, do equivalente a nosso Tribunal Superior Eleitoral (dito Tribunal Qualificador das Eleições e seus tribunais regionais) e dos tribunais militares em tempo de guerra. É composto de 21 membros, sendo um presidente e 20 ministros, e exerce sua jurisdição sobre todas as matérias de direito ordinário. Até 1997, somente juízes de carreira poderiam ser ministros da Corte Suprema. Desde então, há uma reserva de cinco vagas para advogados com o mínimo de 15 anos de graduação em Direito e comprovado destaque em suas atividades profissionais ou acadêmicas[7].

Os nomes indicados para a Corte Suprema de Justiça são submetidos ao escrutínio do Senado da República e há vários exemplos de reprovações de postulantes apresentados pelo presidente da República. Embora, como ironiza Humberto Nogueira Alcalá, esses conflitos entre a Presidência e o Senado têm gerado situações que, “algumas vezes, culminam, não com a nomeação do melhor senão daquele que é o mais anódino ou que soube flutuar em águas turbulentas”[8].

Abaixo da Corte Suprema estão 17 Cortes de Apelação, equivalentes aos Tribunais de Justiça brasileiros. Seus membros também são chamados de ministros, e a composição desses tribunais é variável. Essas cortes correspondem ao segundo grau de jurisdição em matéria de direito ordinário.

No nível inferior, encontram-se os Juzgados de Letras, onde oficiam os juízes letrados, que exercem funções de primeiro grau de jurisdição em diversas matérias, como Direito Civil, Direito Comercial, Direito Minerário (muito importante no Chile). Há juízos específicos para o Direito do Trabalho (Juzgados de Letras del Trabajo),  o  Direito de Família (Juzgados de Familia), a cobrança de débitos trabalhistas e de seguridade social (Juzgados de Cobranza Laboral y Previsional).

Existem também os Juzgados de Garantía, cuja competência é exclusiva em matéria penal e processual penal, e os Tribunais de Juízo Oral no Penal, a quem compete julgar os crimes e delitos simples, bem como resolver os incidentes relativos à liberdade ou prisão preventiva.

A evolução na carreira judicial dá-se por critério de antiguidade combinado com o mérito. Existe uma lista nacional de precedência, dividida entre os graus de jurisdição, a partir da qual são promovidos os juízes para os postos superiores[9].

A formação dos magistrados cabe à Academia Judiciária, que é subordinada à Corte Suprema de Justiça e foi criada em 1994. A academia oferece três níveis de formação: a) curso para os que postulam ingressar na magistratura. É oferecida uma bolsa de estudos, durante o curso, para os advogados que não integram o serviço público, no valor máximo da metade da remuneração líquida do cargo máximo do nível respectivo da magistratura; b) curso de aperfeiçoamento para os que almejam o cargo de ministro de uma das Cortes de Apelações; c) curso de aperfeiçoamento para os membros dos diferentes níveis da carreira judicial.

Como já salientado, houve um expressivo aumento no número de magistrados no Chile nos níveis iniciais.  No ano de 1999, havia 376 juízes no primeiro grau de jurisdição em todo o país. Em 2007, esse número passou a 1.290. Os ministros das Cortes de Apelações eram 140 no ano de 1999 e passaram a 155 em 2007[10]. A relação entre as duas classes era, em 1999, de 2,7 juízes por 1 ministro de Tribunal de Apelação. No ano de 2007, tinha-se 8,3 juízes por 1 ministro. Os dados de 2012 são os seguintes: a) 193 magistrados de segundo grau; b) 1.605 juízes de primeiro grau[11].

Há reclamações sobre a morosidade judicial, a impunidade nos julgamentos criminais mais rumorosos e também pela deficiência do controle interno da magistratura. Trata-se de uma agenda comum à maioria dos países da América Latina. O entorno social e econômico não deixa de produzir seus efeitos na estrutura burocrática.    

O Chile e o Uruguai não possuem um equivalente ao Conselho Nacional de Justiça, mas, paradoxalmente, são os países com menores níveis de corrupção judicial na América do Sul[12].

Começa a tomar forma no Chile o debate sobre o ativismo judicial, conhecido no Brasil desde os fins dos anos 1990. Há disputas entre o Tribunal Constitucional e a Corte Suprema de Justiça sobre a última palavra nas zonas cinzentas entre o direito ordinário e as normas constitucionais, algo que não ocorreu no Brasil em razão de o STJ não ter (ainda) assumido uma posição mais independente em relação ao STF. A mudança do perfil do Tribunal Constitucional acentuou-se após a reforma de 2005 à Constituição de 1980, que implicou o acesso à corte de um maior número de professores, criando-se um contraponto aos magistrados de carreira[13]. A preocupação com o ativismo se coloca em um cenário no qual a ideologização da jurisdição ordinária tem crescido[14].

3. O Ministério Público
O Ministério Público do Chile é uma instituição que foi constitucionalizada após a reforma que introduziu o capítulo VI-A ao texto constitucional de 1980, por efeito da Lei 19.519, de 16/9/1997. As atribuições do Ministério Público são eminentemente criminais. Sua divisão interna compreende a Fiscalía Nacional, 18 Fiscalías Regionales e Fiscalías Locales. A chefia do órgão cabe ao Fiscal Nacional, que deve ser escolhido dentre os advogados com, no mínimo, dez anos de exercício profissional e com mais de 40 anos de idade, além de apresentar bons antecedentes e ter a nacionalidade chilena (artigo14 da Lei Orgânica Constitucional do Ministério Público – LOCMP).

A tradição de respeito aos atos do Poder Executivo e à higidez dos atos administrativos ainda é forte no Chile. Essa atuação mais restrita não tem causado impacto nos índices de corrupção, dado que o país é o que possui os melhores indicadores na América do Sul.

4. A advocacia
As principais normas sobre a advocacia no Chile encontram-se no Código Orgânico dos Tribunais (COT), uma lei de 1943 e que está em vigor até hoje, a despeito de inúmeras modificações. O COT define os advogados como as “pessoas revestidas pela autoridade competente da faculdade de defender, antes os tribunais de justiça, os direitos das partes litigantes” (artigo 521). O título de advogado é deferido em audiência da Corte Suprema de Justiça, após um processo no qual se verifica o preenchimento de alguns requisitos (artigo 521), tais como (artigos 523-526): a) idade mínima de 20 anos; b) graduação em Direito; c) não ter sido condenado ou acusado criminalmente; c) bons antecedentes. Não há Exame de Ordem, mas uma exigência de prática profissional mínima de seis meses nas Corporações de Assistência Judiciária. Esse estágio pode ser substituído pela comprovação do exercício de funções no Poder Judiciário.

Diferentemente do Brasil, a condição de advogado é objeto de um ato solene de declaração pelo presidente da Corte Suprema de Justiça. O Colégio de Advogados do Chile não é equiparável à Ordem dos Advogados. Trata-se de uma associación gremial, que tem por objetivo reunir pessoas, em razão de seus vínculos profissionais, para promover a racionalização, o desenvolvimento e a proteção das atividades que lhes são comuns (artigo1° do Decreto-lei 2.757, de 4/7/1979). Nem de longo identifica-se o protagonismo social e político da advocacia chilena com o que se dá no Brasil.

*** 

Na próxima coluna, encerrar-se-á a série sobre o Chile com o estudo da carreira docente e das matrizes curriculares das Faculdades de Direito.


[1]FUENZALIDA FAIVOVICH, Edmundo. Derecho y cultura jurídica en Chile (1974-1999). In. FIX-FIERRO, Hector; FRIEDMAN, Lawrence M.; PÉREZ PERDOMO, Rogélio (Eds). Culturas jurídicas latinas de Europa y América en tiempos de globalización. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003, p. 195-196.
[2]FUENZALIDA FAIVOVICH, Edmundo. Op. cit. p.211.
[3]Fonte: http://www.tusalario.org/chile/main/salario/Comparatusalario?job-id=2612010000000. Acesso em 30-8-2015.
[4]NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. El estatuto de los jueces constitucionales en Chile. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional. Madrid, n.14, p. 279-322, 2010. p.287.
[5]NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Op.cit. p.284-286.
[6]NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Op.cit. p.295.
[7]NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Op.cit. p.308-309.
[8]NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Op.cit. p.309-310.
[9]ZAPATA GARCÍA, María Francisca. Carrera judicial. Lineamientos generales para um estatuto profesional del juez. REJ – Revista de Estudios de la Justicia, n.18, p.59-81, 2013. p.63-65.
[10]VARGAS, Juan Enrique. Alternativas para estructurar el gobierno judicial respetando la independencia de los jueces. In. SALAS, Couso; LEMAITRE, Atria (Eds). La Judicatura como organización. Santiago de Chile: Expansiva, Chile, 2007.p.112. 
[11]ZAPATA GARCÍA, María Francisca. Op. cit. p.65.
[12]BASABE-SERRANO, Santiago. Explicando la corrupción judicial en las cortes intermedias e inferiores de Chile, Perú y Ecuador. Perfiles Latinoamericanos. Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Distrito Federal, México, n.42, p. 79-108, jul.-dic., 2013. p.84.
[13]PARDOW LORENZO, Diego G.;  VERDUGO RAMIREZ, Sergio. El Tribunal Constitucional chileno y la reforma de 2005: Un enroque entre jueces de carrera y académicos. Revista de derecho (Valdivia), v.28, n.1, p.123-144, jul. 2015.
[14]Sobre o tema, recomenda-se a leitura de: GARCÍA, José Francisco; VERDUGO, Sergio. Activismo judicial en Chile: Hacia el Gobierno de los jueces?. Santiago: Ediciones Libertad y Desarrollo, 2013.

Autores

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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