Tribuna da Defensoria

Método indutivo e dedutivo dos defensores na atuação com efeitos coletivos

Autor

  • Roger Vieira Feichas

    é defensor público no estado de Minas Gerais pós-graduado em Direito Público professor de Direito do Consumidor e Direito Processual Civil ex-assessor de juiz e autor do livro "Mandado de Segurança – Da Teoria à Prática".

1 de setembro de 2015, 8h05

O estudo da tutela coletiva afeiçoa-se a uma enorme complexidade de valores[1], regras, instrumentos extras[2] e judiciais, além de princípios distintos das disciplinas tradicionais. Exige-se, portanto, conhecimento técnico interdisciplinar[3] e criatividade, além de parcerias e envolvimento da sociedade civil (representatividade popular) e o basilar pressuposto de que a tutela de direitos coletivos (principalmente pela tônica do Novo Código de Processo Civil) é inconfundível com a tutela coletiva de direitos individuais.

Desta forma, a elaboração do presente texto não tem a pretensão de garantir uma solução, mas a exortação de informações e reflexões que possam ajudar no cotidiano dos órgãos de execução. Diferentemente de outras instituições, assim como da advocacia pública e privada, a Defensoria Pública tem um papel diferenciado. Seu desiderato, à luz da assistência jurídica integral, objetiva o acesso à Justiça social sem dispor da defesa da cidadania, assim como a magistratura não pode dispor da jurisdição, e o Ministério Público, da ação penal, sendo, portanto, vital “instrumento de concretização dos direitos humanos”[4].

Os órgãos de execução, isto é, seus defensores públicos, são os olhos, ouvidos e vozes de milhões de pessoas que vivem na pobreza de toda ordem — num verdadeiro “apartheid”[5] jurídico — e que não têm a quem recorrer. Trata-se, de forma inegável, da última porta. Daí a ratio que permite concluir que os defensores públicos são também agentes de transformação social.

Nesse contexto é que deve ser salientado que o seu desempenho pode se apresentar pressupondo hipossuficiência econômica (considerada típica) e, de outro viés, jurídica (tida como atípica), por exemplo da atuação enquanto curador especial, assim como nas situações onde se eleva a condição daquele grupo, classe ou categoria que forem necessitados sob o aspecto organizacional[6] [7], ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis[8] [9] [10].

Portanto, o trabalho subjacente, repita-se: vai além da abordagem da ação civil pública[11] [12], por ser ela um mero instrumento dentro do exemplificativo rol de atribuições com efeito coletivo[13] [14] colocados à disposição do defensor público. Pode parecer desapercebido, mas a todo instante o órgão de execução está diante de uma questão coletiva, que pode ser detectada de formas distintas.

O defensor público pode notar que certos temas e em determinadas localidades na comarca de sua atuação sempre há maiores conflitos que exigem contínuo atendimento jurídico. Nessas circunstâncias, impõe-se uma rotina diferenciada de trabalho.  Sugere-se que, após a prestação de atendimento jurídico específico do caso, aborde-se os assistidos (triagem de qualquer atribuição) com o cuidado de se filtrar aqueles que têm maior capacidade de interlocução[15] (se possível) quanto a eventual falta de política pública ou incidência de vulnerabilidade nos seus ambientes de moradia, por exemplo, de serviços estatais falhos, violência policial, revistas vexatórias etc.

Sob tal dinâmica, pode-se reduzir a conversação sob o crivo formal[16], colhendo-se, ainda, mais subsídios com convocação de pessoas na mesma situação de vulnerabilidade, além de representantes de associação de bairro e coautores com pertinência sobre o tema, parlamentares com apoio à causa (atuação em rede) etc., para que se inicie um debate, inclusive, se for o caso, via audiência pública.

Desta forma, pode-se apurar estratégias de solução extra e judicial, permitindo uma postura de eleição da causa a partir do contato com a necessidade, agora não mais do assistido específico (porta-voz), mas do grupo que ele integra de forma coletiva, legitimando e democratizando a atuação[17].

Tal iter no atendimento permite uma consequente visibilidade da instituição perante a comunidade decorrente da atuação, além de eleição de objetivos ligados aos interesses dos seus reais destinatários.

Observe-se, ainda, que o defensor público pode se deparar com temas repetitivos, os quais, no entanto, podem não se amoldar ao debate em sede de ações coletivas, a exemplo de situações puramente fiscais[18]. Sob tal situação, impõem-se extrema cautela[19] ao elaborar a peça de ingresso, por causa de tal atuação poder ser eleita como leading case para compor o trâmite dos recursos repetitivos e/ou repercussão geral[20] (julgamento por amostragem).

Interessante em tais conjunturas contactar[21] o núcleo temático sobre o tema[22] e o respectivo coordenador dos órgãos de execução atuante na segunda instância justamente para se aquilatar a tese conjunta para veiculação da ação, de modo a qualificar e robustecer a pretensão visando, com isso, facilitar[23] e dar eficiência qualitativa[24] ao debate no trâmite recursal no afã de se obter decisão paradigmática com efeitos benéficos a um vasto grupo.

Importante exortar que tal conjugação de esforços entre tais órgãos de execução com atribuições distintas permitem, também, a tentativa de obtenção de solução extrajudicial perante o real representante jurídico do agente causador de violação de direitos.

Nas ocorrências nas quais se averiguar não ser atribuição da Defensoria Pública, impõe-se o encaminhamento formal do assistido ao órgão ou instituição incumbida da apreciação da questão, até mesmo para que o usuário do serviço se torne agente difusor de uma correta orientação a outras pessoas em situação semelhante e evitando que compareçam sem necessidade à Defensoria Pública. De outro lado, o contato direto pode decorrer diante da busca de pessoas pelo atendimento nos moldes imaginários de consumidores reunidos que informem sobre o encerramento irregular de uma autoescola que não cumpriu suas obrigações a despeito de arrecadado o pagamento.

Tal situação, por sinal, confirma o típico “perfil indutivo” da Defensoria Pública no sentido de atuar coletivamente a partir do contato com a aflição jurídica que lhe é posta, e não pelo “crivo dedutivo”, segundo aquela atuação iniciada a partir da criação do órgão de execução.

Ambas situações se apresentam concorrentes e disjuntivas, sendo a primeira de maior ocorrência e que, por sinal, exorta, diferencia e legitima nossa atuação enquanto agentes de transformação social[25], e não como agentes de gabinete.

O acesso a casos pela imprensa na localidade de atuação que denotem perfil institucional[26], mormente quando coincidentes com casos concretos atendidos em análise, também se revelam como importante ponto de atração a atuação do defensor, quando se deve priorizar a solução extrajudicial dos litígios.

Em conjunturas repetitivas que tramitem perante o JESP Cível e Justiça comum e que cheguem à cognição direta ou indireta do órgão de execução, mister avaliar o modo de intervenção, destacando-se perante a primeira o uso da Reclamação direcionada ao STJ[27] e, na segunda, pela possibilidade de ingressar no feito como amicus curiae[28], seja durante o trâmite na fase cognitiva e/ou recursal, havendo, como requisito, nesse caso, a demonstração da pertinência temática[29], não somente em razão da atuação em diversos feitos, mas também pela identidade funcional.

Nesses episódios supra, caso não se vislumbre o objeto da atuação com o desiderato da Defensoria Pública, importante que se proceda ao encaminhamento do usuário do serviço formalmente.

Outro aspecto a ser salientado é o contato com a sociedade. A busca de atendimento por essa pode ocorrer de diversas formas, seja através de passeatas pré-agendadas, audiências públicas, integração a conselhos municipais etc., sendo de importante ocorrência para que se possa evidenciar a interação da instituição de forma direta ou na defesa coletiva e a integração de atuação em rede. Tais conselhos, por sinal, mormente em comarcas pequenas, acabam sendo compostos por cidadãos com atuação marcante nas respectivas áreas, podendo, assim, ampliar conjugação de esforços.

O que deve emergir de atenção, portanto, das Defensorias Públicas, diante tal atuação direta e indireta com situações coletivas, é o imediato disciplinamento interno sobre a condução de atuações com efeitos coletivos, para fins de uniformização e otimização, entre os núcleos de ações iniciais, temáticos e recursais, mormente por estarmos sob a égide de julgamento recaídos sobre precedentes.

Na confluência da atuação via indução e dedução, podemos enfatizar algumas searas que reputamos extremamente importantes. A atuação coletiva sob a feição política pode se dar por meio de emissão de recomendações, pareceres de veto a projetos legislativos que desfavoreçam interesses de grupos defendidos pela Defensoria Pública (ombudsman), além de encaminhamento de representação a(o) DPG para analisar a conveniência ao manejo de Adin. Ainda assim, pode-se fazer parcerias com parlamentares e/ou Executivo visando a criação de frentes parlamentares, projetos de lei que estimulem inúmeras políticas públicas. A integração a Conselhos Municipais com pertinência a área de atuação do órgão de execução também viabiliza acesso a contatos políticos, visão interdisciplinar da questão e atuação conjunta, que implica no fortalecimento Institucional.

Sob o modo de agir de forma demandista ou resolutivo, deve-se priorizar este último modo, com destaque a feição coletiva não só por ser a via de preferência legal, mas pela singela razão da judicial trazer morosidade e insegurança. Atuação resolutiva não é sinônimo, necessariamente, de atuação extrajudicial. O detalhe que permitirá tal escolha cinge-se ao objeto coletivo analisado e a conjugação de esforços com outros coautores e grupos temáticos sobre o tema de sua importância. A cultura demandista deve ser a ultima ratio, mormente por estar o Poder Judiciário refratário à tutela jurisdicional coletiva.

Importante também nesse contexto é a abordagem dos demais coautores com pertinência do caso a ser tratado pelo órgão de execução para que possa, se for o caso, integrar sua tutela administrativa à da Defensoria Pública, seja no âmbito extra ou judicial (de modo preparatório ou instrutório) como prova emprestada. Desta forma, o órgão de execução deve, ao eleger a estratégia a ser usada, verificar se o caso de massa deva ser manejado pela via individual para se obter um leading case (precedente) ou se evidenciar a relevância social com provocação jurisdicional pela via coletiva.

Engana-se aquele que pensa não ser a via individual também um viés coletivo, por está-la sujeita, a depender do caso, ao rito dos recursos repetitivos ou da repercussão geral. Portanto, o cuidado ao se deparar com uma questão com feição de litigiosidade de massa é analisar a interdisciplinaridade do caso tanto sob o aspecto material como processual, elegendo o meio aparentemente mais eficaz.

O microssistema também permite inferir a ideia já propagada no sentido de a Defensoria Pública atuar na promoção social, e o Ministério Público, na defesa do patrimônio público. Independentemente de alguns corporativismos, tem-se como conduta interessante a de se expedir recomendações prévias à interposição de ação para o fim de, se o caso, compelir o poder público a fazer ou deixar de praticar certas condutas abusivas por si ou por quem o faça em seu nome (fiscalização), sob pena de ser acionado e evidenciar conivência com ares de improbidade administrativa que pode e deve ser apurada pelo parquet.

Portanto, longe de traçar uma regra, depreende-se do presente artigo, em linhas gerais, o modo diferenciado de agir da Defensoria Pública, diante do método dedutivo e indutivo no atendimento e na sua confluência entre diversas searas.


[1]http://www.anadep.org.br/wtksite/Preview_Livro_Defensoria_II_Relat_rio(1).pdf;
[2]Artigo 4º, II, da LC 80/94;
[3]STJ, REsp 510.150/MA;
[4]STF  – ADI 3819/PE, rel. min. Sepúlveda Pertence, Pleno, julgado em 02.04.2007, DJ 11.05.2007.
[5]STF – ADI 3.643-2, rel. min. Sepúlveda Pertence. DJ 08.01.2006.
[6]STJ – Resp. 555.111-RJ.
[7](Ada Pelegrini Grinover – Parecer lançado na Adin 3.943).
[8]O critério típico ou atípico afeiçoa-se equivocado, porquanto o exercício da função é uno. O que pode alterar é a estratégia e instrumento pré e processual a ser eleito para solucionar a questão, que necessariamente não precisa se dar pela via judicial.
[10]Artigo 554, parágrafo 1º e artigo 565, parágrafo 2º, ambos do NCPC; Ex: art. 1.228, parágrafos 4º e 5º, do CC.
[11]Cuja constitucionalidade restou afirmada pelo STF na Adin 3943.
[12] www.defensoria.al.gov.br/defensoria/defensoria/jurisprudencia/Jurisprudencia%20sobre%20Defensoria%20Publica.pdf.
[13]Art. 4º, VII, da LC 80/94 — promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes.
[14]Defesas coletivas em prol de manifestações momentâneas e movimentos sociais.
[15]Buscar qualidade no atendimento para se identificar uma lesão coletiva, garantindo atendimento diferenciado e consideração às características específicas do grupo.
[16]Porquanto, se trata de uma representação com ares de direito de petição — artigo 5º, XXXIV, da CF — dotada de informações relevantes.
[17]Permite-se aferir já de antemão até mesmo a competência a depender da lesão quanto a sê-la local, regional ou nacional (artigo 93, do CDC).
[18]Parágrafo único do artigo 1º, da Lei 7.345/85 (de duvidosa constitucionalidade por ter sido inserido por medida provisória).
[19]Tal exegese parte do pressuposto de se evitar ações temerárias que podem gerar efeitos negativos diretos ou indiretos sobre o pretenso beneficiário e, por ricochete, aqueles que estejam enfrentando a mesma causa subjacente (solidariedade processual).
[20]Artigo 543-CPC e artigo 1.036, NCPC.
[21]Atuação proativa em consonância ao artigo 4º, VII, da LC 80/94.
[22]Em analogia ao instituto da notificação compulsória da área de saúde.
[23]A atuação do órgão de execução perante os tribunais depende e muito da eficiência da atuação do responsável pelo feito desde a sua distribuição.
[24]Orientar-se como driblar a chamada jurisprudência defensiva.
[25]“O critério orientador da estratégia científica é o fazer social, e não simplesmente o fazer técnico”, in. GALLIEZ, Paulo. Princípios Institucionais da Defensoria Pública, 2ª Ed., pág. 51.
[26]http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-01-13/defensoria-inicia-indenizacao-de-vitimas-de-acidente-com-trem-da-supervia.html
[27] Resolução 12/2.009 do STJ http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/26389/Res%20_12_2009_PRE.pdf?sequence=1
[28]Artigo 138, NCPC.
[29]Como precedentes que viabilizaram a atuação da DP perante o STF na condição de amicus curiae vide: ADI 4.636, RE 580.963, ADPF 186 e STJ confira: REsp 1.111.566, REsp 1.133.869 e REsp 1.339.313.

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    é defensor público no estado de Minas Gerais, pós-graduado em Direito Público, professor de Direito do Consumidor e Direito Processual Civil e ex-assessor de juiz.

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