Academia de Polícia

Na busca e apreensão, policial se depara com novas orientações

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

1 de setembro de 2015, 8h10

Spacca
I – Introdução
A maior conscientização da população, o jornalismo investigativo e a especialização e integração dos órgãos públicos encarregados da apuração de crimes de corrupção, atos de improbidade e desvio de recursos públicos têm propiciado ricas investigações de natureza administrativa ou criminal.

Os órgãos de segurança pública avançaram muito, nas últimas décadas, no planejamento operacional, nas novas estratégias para lidar com a criminalidade, nos estudos de análise criminal (mancha criminal), na revelação de cifras negras (subnotificação de crimes) e na criação de centros de estudo da violência em academias de polícia. Houve, enfim, a evolução da tecnologia, da política e de sistema de segurança pública, muito embora os problemas de recursos humanos e logísticos pareçam crônicos e sem a devida priorização pelos gestores.

Nesse contexto, a visão e a técnica investigativa também se apuraram, e passou-se a enxergar que, relacionado a algumas modalidades criminosas específicas, como aquelas contra a administração pública, a regularidade das licitações, os crimes financeiros e a lavagem de dinheiro, há um braço instrumental e viabilizador da empreitada criminosa que se vale, indevidamente, não apenas da proteção constitucional domiciliar, mas também de espaços públicos e privados para se preservar ou ocultar o corpo de delito, o que acontece, na maior parte dos casos, sem o conhecimento e a participação de seus pares, sócios ou colegas de trabalho.

A diligência policial de busca e apreensão, sempre autorizada judicialmente, ressalvada a situação flagrancial, tem ocorrido, lamentavelmente, com maior frequência do que antes em locais como repartições públicas e escritórios de profissionais liberais.

Diz-se "lamentavelmente", porque nomes de grandes instituições públicas são expostos por atos ilícitos praticados individualmente, e classes honradas de profissionais liberais, como contadores e advogados, bem como os servidores públicos, acabam presenciando ou recebendo notícia de diligência policial no seu local de trabalho ou que atinja um colega de profissão.

A diligência policial é, por natureza, ostensiva, e, claro, apesar da ostensividade que lhe é inerente, a discrição, independentemente de consignação no mandado judicial, deve ser a regra. A natureza ostensiva do trabalho policial, que imprescinde de coletes balísticos, armamento, viaturas e multiplicidade de atores para a segurança da equipe e do investigado, não é bem compreendida, principalmente por estigmas[1] em relação à atividade policial: "eu sou muito digno para receber a polícia em minha casa ou local de trabalho" ou "a polícia não pode ‘invadir’ uma repartição pública, escritório ou residência oficial, porque é uma afronta a toda categoria ou ao órgão".

Conforme diretrizes contidas no artigo 12 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, “a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública. Esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada”. A ostensividade que decorre do socorro à força pública inibe, ou pelo menos minimiza, a possibilidade de uma agressão indesejável e ilegítima por parte do investigado, situação que redundaria no uso autorizado e legítimo da força física à superação da resistência.

A ideia estigmatizadora, em desacordo com a nobreza da função policial e as renúncias familiares e pessoais diárias de cada um desses profissionais, é fruto de a) deficiente aproximação com a população, b) pouca ênfase nos trabalhos sociais conjuntos e c) fraca política institucional de valorização dos recursos humanos.

O resultado da pouca compreensão da ostensividade do trabalho policial, conjugado com ideias estigmatizadoras da respectiva função, levam ao etiquetamento[2] da diligência policial em repartições públicas e escritórios, como se fossem "invasões", antidemocráticas ou mesmo violadoras de prerrogativas profissionais, parlamentares ou dos poderes públicos. Antes do julgamento de eventual ação penal, o cumprimento do mandado de busca e apreensão (MBA) passou pelo crivo inicial judicial e pela opinião do Ministério Público (MP), e, após cumprido, pelo prejulgamento popular, por uma série de julgamentos de Habeas Corpus (HC) e liminares e por uma cadeia de preconceitos alimentados pelos investigados, simpatizantes, militantes partidários, órgãos e associações de classe.

É por essas razões que um inovador manual de planejamento operacional (PO) policial ou um bom briefing momentos antes da operação deve contemplar, além das disposições legais, recomendações consentâneas com o império do Direito[3], para que a diligência policial seja executada a) de forma circunstanciada, de tudo lavrando-se auto, b) com cortesia, harmonia, transparência e discrição, c) com proatividade da equipe, d) observada a discrionariedade regrada pelo interesse público e pelos instrumentos legais e normativos, e) de forma eficaz, eficiente, proporcional e razoável, f) com uso excepcional e progressivo da força nas situações que a legitimem, g) sem constrangimentos que não sejam os decorrentes do cumprimento da lei e do mandado judicial, h) em parceria ou regime de força-tarefa com as demais instituições; i) de forma sigilosa, sendo que a política de comunicação social do órgão policial deve se pautar pelo interesse público e pela preservação dos direitos dos investigados, inclusive o de imagem.

Quanto ao exposto na letra "i", é de capital importância o artigo 201[4] da recente Instrução Normativa (IN) 1/2015 da Polícia Civil do Estado do Paraná (PC-PR):

"Artigo 201. Os delegados de polícia deverão abster-se da divulgação, pelos órgãos de comunicação, de imagens de pessoas tidas como suspeitas ou indiciadas em inquéritos policiais, face aos princípios estatuídos nos incisos X, XLI, XLIX e LVII, do artigo 5º da Constituição Federal, artigos 1º, 2º e 3º, parágrafo único do Decreto Estadual 465 de 11 de junho de 1991, Ordem de Serviço 14/2014, do Departamento da Polícia Civil, salvo quando por elas expressamente autorizadas, a critério e sob responsabilidade do delegado de polícia encarregado da investigação".

Some-se às orientações contidas nas letras “a” a “i” um extenso rol normativo disciplinador do cumprimento do MBA[5]: artigo 5º da Constituição Federal (CF), dos artigos 240 a 250 do Código de Processo Penal (CPP), da Lei 8.906/94, das Portarias 1.287 e 1288-Ministério da Justiça (Diário Oficial da União – DOU I, de 1 de julho de 2005), da IN 11/2001-DG/DPF (DOU I, de 2 de julho de 2001, em vias de revisão e atualização).

II – Dispensabilidade do MBA na prisão em flagrante
A primeira questão que se põe em análise é a respeito da necessidade de MBA em situações flagranciais.

Na esteira do pensamento dos tribunais superiores, em caso de prisão em flagrante, dispensa-se o MBA:

"(…) 1. Este Tribunal Superior prega que, por ser permanente o crime de tráfico de drogas, a sua consumação se protrai no tempo, de sorte que a situação de flagrância configura-se enquanto o entorpecente estiver sob o poder do infrator, sendo possível, portanto, em tal hipótese, o ingresso da polícia na residência, ainda que não haja mandado de prisão ou de busca e apreensão, já que incide a excepcionalidade inscrita no artigo 5º, inciso XI, da CF, a afastar a inviolabilidade do domicílio.

2. Outrossim, não há falar em vício na operação policial, se houver a permissão de entrada dos policiais na residência do investigado, a descaracterizar a inviolabilidade de domicílio, que pressupõe, justamente, o não consentimento do morador. (…)" (HC 208.957/SP, rel. desembargador convocado Vasco della Giustina, 6ª. T. do STJ, DJe 19/12/2011).

"(…) 2. Estando o agente em situação de flagrante delito, tornam-se desnecessários para acesso ao seu domicílio, o mandado de busca e apreensão judicialmente autorizado, bem como o consentimento do morador". (AgRg no Ag 1357515/DF, rel. min. Jorge Mussi, 5ª T. do STJ, DJe 26/08/2011).

No âmbito da PF o trato normativo é semelhante:

"66. O ingresso em casa, sem consentimento do morador, somente poderá ocorrer nas hipóteses de flagrante, desastre ou para prestar socorro, conforme previsão do inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal.

66.1. No caso de consentimento do morador a busca será presenciada por duas testemunhas não policiais, que assinarão o respectivo auto, além do termo de consentimento de busca".

O termo de consentimento do morador é tranquilamente aceito pelos tribunais:

"(…) O consentimento do morador supre a determinação judicial para o ingresso em residência, não havendo qualquer exigência de que tal consentimento deva ocorrer na presença de testemunhas do povo". (HC 18.863/DF, rel. min. Gilson Dipp, 5ª. T do STJ[6]).

III – Da prévia instauração de inquérito e formalização dos atos de polícia judiciária como requisitos para o MBA
O inquérito policial é instrumento formal, inquisitivo, sigiloso, escrito e oficial, características tratadas uniformemente pela doutrina e jurisprudência.

Por mais que se confunda a formalização de atos de polícia judiciária com burocracia no inquérito, é da lei a sua forma escrita, o que a) garante ao investigado e seu advogado o acesso aos autos da investigação, b) confere transparência pré-processual, c) registra a sequência cronológica de atos e a cadeia de custódia de provas, d) demonstra o procedimento de indicação de autoria e materialidade a serviço da busca da verdade real, e não apenas como subsídio da ação penal, que pode não haver por atipicidade ou inexistência do fato, por exemplo.

Em princípio, ressalvada a apuração de situação flagrancial que não possibilite a imediata instauração de procedimento policial, a representação por MBA e demais medidas cautelares ocorrerá em inquérito preexistente, o qual, quando possível, mencionará na portaria inicial, subscrita pelo delegado de polícia, a delimitação do fato, sua tipicidade penal e possível autoria.

As medidas cautelares, a exemplo da representação por MBA, serão apensadas ao inquérito após o levantamento de sigilo judicial e quando não sejam mais consideradas pendentes ou "em andamento", não sendo possível o acesso "à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso" (HC 82354/PR, rel. min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma do STF[7]). No AgR Rcl 18191, rel. min. Roberto Barroso, a 1ª Turma do STF[8], não autorizou o acesso à interceptação telefônica “sob o fundamento de ainda estarem em curso as diligências. Em razão da natureza sigilosa do feito, bem como da não conclusão de diligências, não há ofensa à Súmula Vinculante 14".

Em síntese, é fundamental a prévia formalização ou documentação dos atos de polícia judiciária executados e determinados, inclusive cautelares pois, embora o inquérito seja sigiloso, o ordenamento jurídico pátrio não compactua com investigações secretas, assim, essas não se iniciam e não se encerram sem atos formais, justamente para que não fiquem na esfera subjetiva do investigador. Equipes policiais, salvo apurações urgentes de delitos em curso, diligenciam mediante ordens de missão policiais (OMP) ou de serviço expedidas em sede de procedimento policial (inquérito, termo circunstanciado, verificação de procedência de informação com notícia-crime registrada nos sistemas policiais), com apresentação de relatório circunstanciado após prazo determinado.

Da IN 1/2015-PC/PR, destaca-se:

"Artigo 197. Sendo o inquérito policial um instrumento que registra a atividade de polícia judiciária, a atuação do servidor policial há que ter sempre o respaldo de uma ordem de serviço expedida pelo delegado de polícia, em face do caso concreto, exceto nos casos de flagrante delito”.

O artigo 2 da IN 5/2000-DG/DPF, reproduzido nos artigos 6 e 28 da IN 1/2013- PC/BA, pontua que a OMP “é documento de natureza policial de caráter sigiloso, de uso interno, obrigatório em qualquer missão de policiais federais, expedido por autoridade competente”.

A formalidade do ato de investigação é exigência legal e constitucional, garantindo-se ao investigado, desde o ato de prisão, 1) o direito de comunicar-se com familiares e advogado, 2) o direito de não se autoincriminar (fornece-se nota de ciência das garantias constitucionais), 3) a identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial (artigo 5º, incisos XLIX, LXI a LXVI da CF), 4) nota de culpa (artigo 306, parágrafo 2º do CPP), 5) comunicações ao Poder Judiciário, MP (artigo 306 do CPP), Defensoria Pública (na ausência de advogado constituído), consulado ou embaixada, Funai (índio não integrado), MJ (caso de abertura de inquérito de expulsão de estrangeiro), 6) ofícios para realização de exame de integridade física do preso (ad cautelam), de seu encaminhamento ao sistema prisional.

A investigação policial não é formada apenas pelos atos escritos do delegado de polícia como a portaria (ato inicial), decisão fundamentada de prisão e de indiciamento, despacho de impulso da investigação, representações por medidas cautelares (como a de busca e apreensão) de afastamento ou mitigação de garantias constitucionais e o relatório (ato final), mas por uma coletividade de iniciativas e diligências executadas por todos os policiais envolvidos.

O delegado e o escrivão de polícia e igualmente o agente de polícia, inspetor ou investigador (que atua como olhos, ouvidos, voz, braços e pernas da autoridade policial, em diligências externas) são responsáveis por atos formais no inquérito. Cabe ao agente, por exemplo, a confecção de informações, autos circunstanciados, relatórios de missão policial  (RMP), de análises e de vigilância, que, se não forem bem lavrados e diligenciados com proatividade, levarão ao retardo, fracasso da investigação ou frustração do objeto do MBA. A equipe policial deve ser boa e competente tanto na linha de tiro como na caneta, no tablet, no computador e na consulta de sistemas informatizados, afinal de contas, o sucesso da investigação e a celeridade do inquérito são resultados de um trabalho em equipe.

Retomando o tema, ainda quanto à formalização dos atos de polícia judiciária – que é uma decorrência lógica também da Súmula Vinculante 14 do STF, para que o advogado possa ter acesso aos documentos já produzidos para atuar em defesa de seu cliente -, o excelso STF já se manifestou que eventual investigação pelo MP deverá observar o rol de direitos constitucionais do investigado e conterá todas as peças, termos de declarações e demais subsídios probatórios coligidos:

"O procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos, laudos periciais e demais subsídios probatórios coligidos no curso da investigação, não podendo, o parquet, sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por referir-se ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível tanto à pessoa sob investigação quanto ao seu advogado. O regime de sigilo, sempre excepcional, eventualmente prevalecente no contexto de investigação penal promovida pelo Ministério Público, não se revelará oponível ao investigado e ao advogado por este constituído, que terão direito de acesso — considerado o princípio da comunhão das provas — a todos os elementos de informação que já tenham sido formalmente incorporados aos autos do respectivo procedimento investigatório." (HC 94173, rel. min. Celso de Mello, 2ª T. do STF, DJe-223, 27-11-2009).

Ou seja, em razão dos gravames que lhes são inerentes, toda e qualquer medida cautelar invasiva da intimidade do cidadão e investigação criminal que se inicie — seja qual for o nome que a ela se dê ou roupagem, de iniciativa do MP ou da polícia judiciária —, assegurarão ao investigado os seus direitos e se revestirão de forma escrita, como garantia de não haver atos secretos nem subjetivismo do investigador.


[1]BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um Estudo Sobre os Preconceitos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[2]CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983.
[3]DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[4]Disponível em: http://www.corregedoriapoliciacivil.pr.gov.br/arquivos/File/INSTRUCOES/2015/IN_01_2015_B.pdf. Acesso em 30 ago.2015.
[5]Disponível em: http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/741/921. Acesso em 30 ago. 2015. GOMES, Rodrigo Carneiro.
[6]DJ 16/09/2002, p. 207.
[7]DJ de 24/09/2004.
[8]DJe-107, 05-06-2015.

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    é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

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