Opinião

Aborto e a questão de gênero precisam ser enfrentados

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29 de outubro de 2015, 6h13

A jovem de 17 anos entra no escritório acompanhada da avó, já que a mãe, sua representante legal, nunca se preocupou com a questão que a trouxe até aqui e está sempre ocupada demais para tratar dessas coisas da justiça… Apesar da personalidade forte, que se impõe desde o primeiro momento, trata-se apenas de uma menina carregando os traumas do abandono paterno. A dor da rejeição ao longo dos anos fez nascer o desejo de "punir" o pai, com quem sempre teve contatos escassos, obrigando-o a pagar alimentos ainda que tardiamente.

A convivência com o genitor sempre foi mínima já que o mesmo evita contato. "Meu pai queria que eu fosse abortada", diz a jovem enquanto a avó lança um olhar entristecido, afirmando que foi ela, a avó materna, quem não permitiu o aborto. A menina prossegue a narrativa contando um pouco sobre o pai e a mãe. Ambos refizeram suas vidas. O pai constituiu nova família, tem um bom emprego, mora em um bairro nobre do Rio de Janeiro. A mãe vive uma vida simples na Baixada Fluminense ao lado do marido, com quem teve outros filhos. Os conflitos com o padrasto acabaram por afastá-la da mãe, motivo pelo qual buscou amparo na casa da avó, que agora a acompanha. Residem em uma das comunidades mais perigosas da Cidade Maravilhosa e conta que já esteve no meio do fogo cruzado. "Se meu pai me ajudasse, eu não precisaria passar por isso", registra em palavras carregadas de mágoa e sofrimento.

Do pai, nunca teve amparo material ou emocional e confessa que já quis morrer por causa disso. Com a ajuda de psicólogos da Pastoral do Menor que atuam na comunidade, superou a depressão e recuperou o gosto pela vida. Hoje, pensa em ser psicóloga e foi pelo sonho da faculdade que resolveu entrar na justiça, na tentativa de obter alimentos até que conclua seus estudos.

Diante do caso, algumas reflexões são necessárias: Se a mãe tivesse abortado, além dos riscos inerentes a um procedimento dessa natureza em uma clínica clandestina, ainda poderia responder pelo crime de aborto, além de sofrer a condenação exemplar da nossa sociedade. Mas qual a sanção que esse pai está recebendo ao longo desses 17 anos de abandono?

Hoje, a Constituição Federal protege o direito à vida (artigo 5º, caput, da CRFB/88) e o aborto, salvo nas hipóteses excepcionadas pelo Código Penal (artigo 128, I e II), constitui crime punido com detenção de 1 a 3 anos (artigo 124 do CP). Mas o direito à vida impõe não apenas a proibição de matar, mas também a garantia de uma existência digna, possuindo, portando, uma “dupla acepção”[1].

O abandono material e afetivo perpetrado por esse pai, que desde o início desejou o aborto da filha, não é ainda reconhecido pela legislação como crime e talvez criminalizar nem seja mesmo a solução, embora já se construa na jurisprudência pátria a possibilidade de reparação na esfera civil[2]. Mas é necessário chamar a atenção para a conduta abortiva do genitor, talvez não no sentido mais técnico, na medida em que o aborto pressupõe atentar contra a vida do nascituro. Entretanto, há de se reconhecer que diuturnamente, no caso narrado, o pai atenta contra a vida da filha.

Se a conduta de abandono paterno ainda é tolerada pelo Direito e pela sociedade ao passo que a recusa precoce à maternidade é crime previsto no Código Penal e nas leis morais da nossa tribo, não resta dúvida de que há uma relação intrínseca entre esse cenário e o machismo nosso de cada dia.

Na última semana, tivemos mais um exemplo do quanto ainda estamos longe de uma sociedade em que homens e mulheres sejam tratados como iguais: a aprovação na CCJ da Câmara do PL 5.069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que modifica a lei de atendimento às vítimas de violência sexual (Lei 12.845/13). O texto aprovado proíbe a venda de abortivos e pune quem facilitar a prática de aborto, além de acrescentar a necessidade de exame de corpo de delito para atendimento pelo SUS em casos de estupro.

Entre as muitas críticas que permeiam a proposta[3], segundo deputados contrários ao projeto, caminha-se na direção de mudar o enquadramento da “pílula do dia seguinte” para que seja considerada abortiva, ampliando as restrições legais à autonomia da mulher. Cabe resgatar o voto do ministro Ayres Brito no julgamento da ADI 3510 (Lei de Biossegurança), segundo o qual “a nossa Magna Carta não diz quando começa a vida humana” e qualquer tentativa de se estabelecer o marco temporal de início da vida esbarrará em concepções não apenas científicas, mas também filosóficas, morais e religiosas, tornando o direito um pano de fundo para uma profusão de ideologias, que pouco ou nada se comunicam.

Por fim, cabe esclarecer que este artigo não é uma defesa do aborto, mas sim uma defesa do direito ao aborto e sem qualquer contradição, uma defesa da vida, de uma vida digna, não podendo a mulher ser a única responsável pela frustração de uma existência, seja antes ou depois do parto.


1 NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. P.459.

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